Consulta n.º 24/2010
Âmbito da consulta
A Senhora Advogada, Dra. A, veio cuidadosamente solicitar ao Conselho Distrital de Lisboa
a emissão de parecer sobre uma questão específica em matéria de
incompatibilidades.
Tendo delimitado com rigor o âmbito da consulta, pretende a Senhora
Advogada ver esclarecida a seguinte questão:
Os Advogados trabalhadores da Comissão do
Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) que exercem legitimamente a Advocacia ao
seu serviço em regime de subordinação e exclusividade podem também exercer a
advocacia, como Advogados ou como juristas, em
representação do Sistema de Indemnização aos Investidores
(Sistema), criado pelo Decreto-Lei n.º 222/99,de 22 de Junho?
Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa
Conexa com a independência e a dignidade
da advocacia está a questão das incompatibilidades e dos impedimentos para o
exercício da advocacia.
A norma basilar em
matéria de impedimentos para o exercício da advocacia é o artigo 76º do Estatuto
da Ordem dos Advogados
(EOA), aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, que prescreve o
seguinte:
“1 - O advogado exercita a defesa dos direitos e
interesses que lhe sejam confiados sempre com plena autonomia técnica e de
forma isenta, independente e responsável.
2 - O exercício da advocacia é inconciliável com
qualquer cargo, função ou actividade que possam afectar a isenção, a
independência e a dignidade da profissão.”
Esta norma
pretende, nomeadamente, garantir a inexistência de colisão de interesses e
deveres entre a advocacia e o exercício de qualquer outra actividade que com
ela possa conflituar.
Por seu turno, o n.º 1 do artigo 77º do E.O.A. especifica, de uma forma
não taxativa, situações concretas de incompatibilidade, em face das quais o
legislador revela uma preocupação especial.
Desde logo, a
incompatibilidade prevista na alínea j) do n.º 1 do artigo 77º do E.O.A., nos
termos da qual é incompatível com o
exercício da advocacia a assunção da qualidade de “funcionário, agente ou contratado de quaisquer serviços ou entidades
que possuam natureza pública ou prossigam finalidades de interesse público, de
natureza central, regional ou local”.
Sendo a Comissão
do Mercado de Valores Mobiliários (doravante CMVM) uma pessoa colectiva de
direito público[1],
dúvidas não existem de que o Advogado que simultaneamente seja funcionário da
CMVM está numa situação de incompatibilidade, não podendo livremente exercer a
advocacia, mas tão só e apenas em regime de subordinação e em exclusividade ao
serviço da CMVM, tal como decorre do n.º 3 do artigo 77º do EOA.
E o que deve entender-se por
subordinação e exclusividade?
A
incompatibilidade prevista na alínea j) do n.º 1 do artigo 77º do E.O.A. foi
criada precisamente por se ter entendido que os cargos ou funções aí previstas
poderiam afectar, de forma particular, a isenção e a independência da
advocacia.
Contudo, o
legislador entendeu abrir uma excepção e permitir o exercício da advocacia aos
que se encontrassem em situação de incompatibilidade, mas preenchessem os
pressupostos, também eles excepcionais, fixados no n.º 3 do artigo 77º do EOA –
o exercício da advocacia em regime de subordinação e exclusividade ao serviço
da entidade pública para a qual trabalham.
E a norma
pressupõe e exige que, nestes casos, a advocacia seja única e exclusivamente exercida
ao serviço da entidade pública para a qual o Advogado trabalha.
Ou seja, enquanto
funcionário da CMVM, o Advogado não poderá ter qualquer outro cliente que não a
entidade pública para a qual actualmente trabalha ou não patrocinar, directa ou
indirectamente, questão que não seja própria da entidade a que está adstrito.
Assim, o Advogado
que seja simultaneamente trabalhador da CMVM e que aí exerça a advocacia em
regime de subordinação e exclusividade não poderá ter outro cliente, ou
assuntos de outro cliente, apenas podendo exercer a advocacia, portanto,
praticar actos próprios da profissão, ao serviço da CMVM.
E esse Advogado,
trabalhador da CMVM a exercer a advocacia ao abrigo da excepção contida no n.º
3 do artigo 77º do EOA, pode exercer a advocacia, como Advogado, ao serviço do Sistema
de Indemnização aos Investidores?
Estará esse Advogado a violar a excepção
a que está vinculado por força do seu Estatuto profissional?
Genericamente, a CMVM
tem por missão supervisionar e regular os mercados de valores mobiliários e
instrumentos financeiros derivados e a actividade de todos os agentes que neles
actuam.
Entre os
objectivos prosseguidos pela CMVM, está a protecção de investidores.
A CMVM protege os
investidores, quer mediante o exercício permanente das funções de supervisão e
regulação que lhe são conferidas, quer ainda desenvolvendo serviços que visa,
assegurar um apoio directo ao público em geral e aos investidores em
particular.
E, de entre os
serviços que são disponibilizados ao público pela CMVM, temos o Sistema de
Indemnização aos Investidores (doravante Sistema), criado pelo Decreto-Lei n.º
222/99, de 22 de Junho.
O Sistema é uma
pessoa colectiva de direito público dotada de autonomia administrativa e
financeira e funciona junto da CMVM, que assegura os serviços técnicos e
administrativos indispensáveis ao bom funcionamento do Sistema[2].
E, neste âmbito, o
Advogado trabalhador da CMVM que exerça a advocacia ao serviço desta em regime
de subordinação e exclusividade pode também exercer a advocacia ao serviço do
Sistema?
Entendemos que
não.
A CMVM e o Sistema
são pessoas jurídicas distintas, disso não há dúvidas.
E, ainda que os
serviços (jurídicos) sejam assegurados através da CMVM, por intermédio de
Advogado trabalhador desta em regime de subordinação e exclusividade, o certo é
que existiria sempre uma relação de mandato directo entre o Advogado
trabalhador da CMVM e o Sistema.
Ou seja, em termos
práticos, o Advogado nessas condições passaria a ter dois “clientes”, o que
contraria, a nosso ver, o espírito com que foi pensada e criada a excepção
contida no n.º 3 do artigo 77º do EOA.
E o Advogado
trabalhador da CMVM em regime de subordinação e exclusividade pode patrocinar
como jurista, ao abrigo do artigo 11º n.º 2 do CPTA, o Sistema nas acções que
tenham por objecto relações contratuais e de responsabilidade?
Estipula o artigo
11º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aprovado pela
Lei n.º 15/2002, de 22 de Fevereiro, o seguinte:
“1 – Nos processos da competência dos tribunais
administrativos é obrigatória a constituição de advogado.
2 – Sem prejuízo da representação do Estado pelo
Ministério Público nos processos que tenham por objecto relações contratuais e
de responsabilidade, as pessoas colectivas de direito público ou os ministérios
podem ser representados em juízo por licenciados em Direito com funções de apoio
jurídico, expressamente designado para o efeito, cuja actuação no âmbito do
processo fica vinculada à observância dos mesmos deveres deontológicos,
designadamente de sigilo, que obrigam o mandatário da outra parte”.
Da leitura destes
preceitos, decorre claramente que é obrigatória a constituição de Advogado nos
Tribunais Administrativos e que a “representação em juízo por licenciado em
Direito com
funções de apoio jurídico” é equiparada ao patrocínio por
Advogado nas acções que tenham por objecto relações contratuais e de
responsabilidade.
Portanto, se é
obrigatória a constituição de Advogado e se a entidade pública pode optar entre
o patrocínio por Advogado e a representação por jurista nomeado para o efeito,
sendo que ambos estão subordinados aos mesmos deveres deontológicos, é porque
desempenham as mesmas funções no processo.
Portanto, a lei
fez equiparar o exercício do licenciado em Direito ao exercício do Advogado
constituído, pelo que a posição no processo, com os consequentes direitos e
obrigações processuais, é a mesma, quer a entidade pública seja patrocinada por
Advogado, quer seja representada por licenciado.
Ora, na qualidade
de Advogado, já vimos que o Advogado trabalhador da CMVM não poderá intervir mesmo
neste tipo de acções.
E, a nosso ver, também
não será possível a representação do Sistema pelos Advogados trabalhadores da
CMVM na qualidade de meros “licenciados em direito” nas acções previstas no n.º
2 do artigo 11º do CPTA.
Nos casos
previstos neste preceito legal, já vimos que, processualmente, a intervenção do
Advogado ou do “licenciado em Direito” é similar.
A lei não impõe qualquer
restrição ou limitação à função desempenhada pelo “licenciado em direito” no
processo.
Antes pelo
contrário, a Lei equipara o exercício do licenciado em Direito ao exercício do
Advogado constituído.
Admitir a
intervenção do Advogado trabalhador da CMVM nestes casos seria permitir que o
mesmo interviesse, materialmente, como Advogado, munido de todo o seu saber em
matéria de patrocínio judicial, e, ao mesmo tempo, admitir que interviesse, formalmente,
na qualidade de “licenciado em Direito” nomeado pela entidade pública para quem
trabalha, sabendo que esta intervenção do ponto de vista formal visa, nem mais
nem menos, do que contornar um impedimento para o livre exercício da advocacia
a que o Advogado trabalhador da CMVM está vinculado por se encontrar na
situação excepcional do n.º 3 do artigo 77º do EOA.
Ora, esta situação
não é, a nosso ver, e salvo melhor opinião, admissível por consubstanciar uma
forma ínvia de contornar a lei, e a exclusividade nela exigida, que em nada
dignificaria a advocacia.
CONCLUSÕES:
- Sendo
a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (doravante CMVM) uma pessoa
colectiva de direito público, dúvidas não existem de que o Advogado que
simultaneamente seja funcionário da CMVM está numa situação de
incompatibilidade, não podendo livremente exercer a advocacia, mas tão só
e apenas em regime de subordinação e em exclusividade ao serviço da CMVM,
tal como decorre do n.º 3 do artigo 77º do EOA.
- E a
excepcionalidade desta autorização legal do exercício da profissão pressupõe
e exige que, nestes casos, a advocacia seja única e exclusivamente exercida
ao serviço da entidade pública para a qual o Advogado trabalha;
- Ou
seja, enquanto funcionário da CMVM, o Advogado não poderá ter qualquer
outro cliente que não a entidade pública para a qual actualmente trabalha
e não poderá patrocinar, directa ou indirectamente, questão que não seja
própria da entidade a que está adstrito.
- Assim,
o Advogado trabalhador da CMVM que exerça a advocacia ao serviço desta em
regime de subordinação e exclusividade não poderá também exercer a
advocacia ao serviço do Sistema de Indemnização aos Investidores – pessoa
colectiva de direito público dotada de autonomia administrativa e
financeira que funciona junto da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários,
e isto ainda que assegurando esta os serviços técnicos e administrativos
indispensáveis ao bom funcionamento do Sistema de Indemnização aos
Investidores.
- E
também, a nosso ver, não será possível a representação do Sistema de Indemnização
aos Investidores pelo Advogado trabalhador da CMVM na qualidade de
“licenciado em direito” nas acções previstas no n.º 2 do artigo 11º do
CPTA por consubstanciar uma forma ínvia de contornar a lei, e a
exclusividade nela exigida, que em nada dignificaria a advocacia.
Notifique-se.
Lisboa, 5 de Maio de 2010.
A
Assessora Jurídica do C.D.L.
Sandra Barroso
Concordo e homologo o despacho anterior, nos
precisos termos e limites aí fundamentados,
Lisboa,
5 de Maio de 2010
O Vice-Presidente do Conselho Distrital de Lisboa,
com poderes delegados
Jaime Medeiros
[1] Cfr. Artigo 1º do Estatuto da Comissão do Mercado
de Valores Imobiliários, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 473/99, de 8 de Novembro,
alterado pelos Decretos-Leis n.ºs 232/2000, de 25 de Setembro, 183/2003, de 19
de Agosto e alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 169/2008, de 26 de
Agosto.
[2] Cfr. Artigo 16º do Decreto-Lei n.º 222/99, de 22
de Junho e Artigo 1º da Portaria n.º 1266/2001, de 6 de Novembro.
Sandra Barroso
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