Pareceres do CRLisboa

Consulta 26/2010

 

Consulta n.º 26/2010

 

 Questão

 

A Senhora Advogada Dra. A veio solicitar que o Conselho Distrital de Lisboa emita parecer sobre uma situação de eventual conflito de interesses.

 

O enquadramento factual, tal como exposto pela Dra. A  é, em síntese, o seguinte:

a.       Em sede de apoio judiciário, a Senhora Advogada Consulente foi nomeada Defensora Oficiosa dos arguidos, Banco B e Banco C, no âmbito do processo n.º .., actualmente pendente no 1º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa.

  1. Sucede que a Senhora Advogada Consulente é mandatária constituída de diversos executados, em processo de natureza cível, cujo exequente é o Banco C e um dos credores o Banco B (mas o Banco B não é exequente).
  2. Este processo cível tem autos apensos, pelo menos dois de reclamação e um de habilitação de herdeiros.
  3. Neste último, a Senhora Advogada Consulente patrocina diversos dos habilitados, sendo habilitante o Banco C.

 

Da competência consultiva do Conselho Distrital de Lisboa

 

Nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 50º do Estatuto da Ordem dos Advogados (E.O.A.), aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, compete aos Conselhos Distritais pronunciarem-se sobre questões de carácter profissional, que se suscitem no âmbito da sua competência territorial.

 

A competência consultiva dos Conselhos Distritais está assim, limitada pelo E.O.A. a questões inerentemente estatutárias, isto é, as que revelam dos princípios, regras, usos e praxes que regulam e orientam o exercício da profissão, maxime as que decorrem das

 

normas do E.O.A., do regime jurídico das sociedades de advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido pela lei aos órgãos da Ordem dos Advogados.

 

Ora, a matéria colocada à apreciação deste Conselho Distrital subsume-se, precisamente, a uma “questão de carácter profissional” nos termos descritos, pelo que há que proceder à emissão de parecer sobre a questão colocada.

 

Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa

 

“A Deontologia é o conjunto de regras ético-jurídicas pelas quais o advogado deve pautar o seu comportamento profissional e cívico. (...) O respeito pelas regras deontológicas e o imperativo da elevada consciência moral, individual e profissional, constitui timbre da advocacia.” – António Arnaut, Iniciação à Advocacia – História – Deontologia – Questões Práticas, p. 49 e 50, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996.

 

O Advogado, no exercício da sua profissão está vinculado ao cumprimento escrupuloso de um conjunto de deveres consignados no Estatuto da Ordem dos Advogados e ainda àqueles que a lei, os usos, os costumes e as tradições profissionais lhe impõem.

O cumprimento escrupuloso e pontual de todos esses deveres garante a dignidade e o prestígio da profissão.

 

O Título III do Estatuto da Ordem dos Advogados trata da “Deontologia Profissional”, fixando no Capítulo I, os Princípios Gerais e abordando no Capítulo II, a questão das relações entre o advogado e o cliente. 

É neste último Capítulo e, mais especificamente no seu artigo 94º, que se encontra regulado o denominado “Conflito de Interesses”.

 

Aí estão plasmadas várias situações em que existe uma situação de incompatibilidade para o exercício do patrocínio.

 

 

A matéria do conflito de interesses, regida estatutariamente pelo teor do art. 94º do EOA, resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão e constitui expressa manifestação do princípio geral estatuído no art. 84º do EOA, segundo o qual o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros”.

Nesta medida, o regime legal estabelecido a propósito do conflito de interesses cumpre uma tripla função[1]

a)      Defender a comunidade em geral, e os clientes de um qualquer Advogado em particular, de actuações menos lícitas e/ou danosas por parte de um Colega, conluiado ou não com algum ou alguns dos seus clientes;

b)      Defender o próprio Advogado da possibilidade de, sobre ele, recair a suspeita de actuar, no exercício da sua profissão, visando qualquer outro interesse que não seja a defesa intransigente dos direitos e interesses dos seus clientes.

c)      Defender a própria profissão, a Advocacia, do anátema que sobre ela recairia na eventualidade de se generalizarem este tipo de situações.

Decorre, assim, da norma em apreço que:

“1 – O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.

2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3 – O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

 

 

5 - O Advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.  

6 - Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.

 

No caso concreto, a Senhora Advogada Consulente:

  • É mandatária de diversos executados, em processo cível pendente, em que é exequente o Banco C e em que o Banco B é também credor.
  • Foi agora nomeada para, em processo-crime, patrocinar os arguidos: o Banco C e o Banco B.

 

Refere a Senhora Advogada Consulente que estão em causa questões e processos totalmente distintos e de natureza claramente distinta, sem qualquer conexão entre si.

 

Atenta a factualidade descrita pela Senhora Advogada Consulente existe conflito de interesses?

 

Uma errada interpretação do disposto no n.º 2 do artigo 94º do EOA, poder-nos-ia levar a pensar que, em virtude do facto de, no processo-crime, a Senhora Advogada Consulente não estar a patrocinar contra quem é seu cliente no processo civil, nenhum óbice seria de levantar ao patrocínio para o qual foi nomeada.

Mas o problema tem de ser, antes de mais, encarado a montante.

O conflito de interesses nascerá, em nossa modesta opinião, porque a partir do momento em que aceitou mandato dos executados para os patrocinar contra o Banco C estará, pois, impedida de aceitar mandato ou nomeação oficiosa deste último noutros assuntos enquanto aquele primeiro processo judicial pendente, tal como é caso.

Efectivamente, o que a mencionada norma pretende evitar é que um Advogado patrocine uma parte contra quem, noutra causa pendente, litiga.

 

 

 

Se a Senhora Advogada Consulente aceitasse agora o patrocínio para o qual foi nomeada passaria, pois, a patrocinar alguém (no caso, o Banco C) que noutra acção é parte contrária dos seus aí clientes, o que, de “per si”, é gerador de conflito de interesses.

 

E, considerando que a mens legis da norma contido no artigo 94º do EOA é necessariamente preventiva, frise-se que é nosso entendimento que a desvinculação do patrocínio oficioso para o qual foi nomeada deverá operar-se identicamente em relação ao outro arguido, o Banco B, atendendo ao facto de também ser credor dos executados, e ainda que não seja, por ora, também exequente poderá (em tese) vir a sê-lo.

 

 

CONCLUSÕES:

 

1.       A matéria do conflito de interesses, regida estatutariamente pelo teor do artigo 94º do EOA, resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão e constitui expressa manifestação do princípio geral estatuído no art. 84º do EOA, segundo o qual o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros”.

2.      Dispõe o n.º 2 do artigo 94º do EOA, sob a epígrafe “conflito de interesses” que o Advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3.      Será geradora de conflito de interesses a situação em que a Senhora Advogada Consulente patrocina diversos executados numa acção executiva que lhe é movida pelo Banco C e em que é também credor o Banco B, e vem, posteriormente, a ser nomeada oficiosamente defensora dos arguidos Banco C e do Banco B, estando aquela primeira acção ainda pendente.

 

 

4.      E, considerando que a mens legis da norma contido no artigo 94º do EOA é necessariamente preventiva, frise-se que é nosso entendimento que a desvinculação do patrocínio oficioso para o qual foi nomeada deverá operar-se identicamente em relação ao outro arguido, o Banco B, atendendo ao facto de também ser credor dos executados, e ainda que não seja, por ora, também exequente poderá (em tese) vir a sê-lo.

 

Notifique-se.

Lisboa, 11 de Junho de 2010.

 

A Assessora Jurídica do C.D.L.

 

 

Sandra Barroso

 

 

Concordo e homologo o despacho anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

 

Lisboa,

 

O Vice-Presidente do C.D.L.

(por delegação de poderes de 4 de Fevereiro de 2008)

 

 

Jaime Medeiros

 



[1] Cfr. Processo de Consulta do C.D.L. n.º 6/02, aprovado em 16.10.2002, e no qual foi relator o Dr. João Espanha.

 

Sandra Barroso

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