Consulta n.º 1/2011
Questão
O Senhor Advogado, Dr. A– sócio da Sociedade de Advogados, B –, veio solicitar ao Conselho Distrital de Lisboa a emissão de parecer sobre uma situação de eventual conflito de interesses.
O enquadramento factual, tal como exposto pelo Senhor Advogado Consulente é, em síntese, o seguinte:
a. Corre termos no 3º Juízo do Tribunal do Comércio de Vila Nova de Gaia, sob o n.º --, um processo de insolvência, em que é insolvente a Sociedade C, S.A.
b. No mencionado processo judicial, o Senhor Advogado Consulente é mandatário de dois credores, a Sociedade D, S.A., e a Sociedade E, Lda.
c. No dia 11 de Outubro de 2010, realizou-se a Assembleia de Credores no âmbito do referido processo judicial.
d. Na Assembleia de Credores, ficou decidido que os credores se deveriam pronunciar, por escrito, dentro do prazo fixado para o efeito, acerca da modalidade de liquidação da insolvente.
e. Sucede que as constituintes do Senhor Advogado Consulente têm posições diferentes quanto à modalidade de liquidação a adoptar no âmbito do processo de insolvência.
Considerando a factualidade exposta, vem o Senhor Advogado Consulente solicitar a pronúncia deste Conselho quanto a duas questões:
1. Se existe, ou não, uma situação de conflito de interesses nos termos do artigo 94º do E.O.A.
2. Na afirmativa, se poderá substabelecer, sem reserva, o mandato conferido por um dos seus constituintes em Advogado colaborador em regime de prestação de serviços, de não exclusividade, na Sociedade de Advogados da qual o Senhor Advogado Consulente é sócio.
Da competência consultiva do Conselho Distrital de Lisboa
Nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 50º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante E.O.A.), aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, compete aos Conselhos Distritais pronunciarem-se sobre questões de carácter profissional, que se suscitem no âmbito da sua competência territorial.
A competência consultiva dos Conselhos Distritais está, assim, limitada pelo E.O.A. a questões inerentemente estatutárias, isto é, as que decorrem dos princípios, regras, usos e praxes que regulam e orientam o exercício da profissão, maxime as que decorrem das normas do E.O.A., do regime jurídico das sociedades de advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido pela lei aos órgãos da Ordem dos Advogados.
Ora, a matéria colocada à apreciação deste Conselho Distrital subsume-se, precisamente, a uma questão de carácter profissional nos termos descritos, pelo que há que proceder à emissão de parecer sobre a questão colocada.
Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa
“A Deontologia é o conjunto de regras ético-jurídicas pelas quais o advogado deve pautar o seu comportamento profissional e cívico. (...) O respeito pelas regras deontológicas e o imperativo da elevada consciência moral, individual e profissional, constitui timbre da advocacia.” – António Arnaut, Iniciação à Advocacia – História – Deontologia – Questões Práticas, p. 49 e 50, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996.
O Advogado, no exercício da sua profissão está vinculado ao cumprimento escrupuloso de um conjunto de deveres consignados no Estatuto da Ordem dos Advogados e ainda àqueles que a lei, os usos, os costumes e as tradições profissionais lhe impõem.
O cumprimento escrupuloso e pontual de todos esses deveres garante a dignidade e o prestígio da profissão.
O Título III do Estatuto da Ordem dos Advogados trata da “Deontologia Profissional”, fixando, no Capítulo I, os Princípios Gerais e abordando, no Capítulo II, a questão das relações entre o advogado e o cliente.
É neste último Capítulo e, mais especificamente no seu artigo 94º, que se encontra regulado o denominado “Conflito de Interesses”.
Aí estão plasmadas várias situações em que existe uma situação de incompatibilidade para o exercício do patrocínio.
A matéria do conflito de interesses, regida estatutariamente pelo teor do art. 94º do E.O.A., resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão e constitui expressa manifestação do princípio geral estatuído no art. 84º do E.O.A., segundo o qual o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros”.
Nesta medida, o regime legal estabelecido a propósito do conflito de interesses cumpre uma tripla função:
a) Defender a comunidade em geral, e os clientes de um qualquer Advogado em particular, de actuações menos lícitas e/ou danosas por parte de um Colega, conluiado ou não com algum ou alguns dos seus clientes;
b) Defender o próprio Advogado da possibilidade de, sobre ele, recair a suspeita de actuar, no exercício da sua profissão, visando qualquer outro interesse que não seja a defesa intransigente dos direitos e interesses dos seus clientes;
c) Defender a própria profissão, a Advocacia, do anátema que sobre ela recairia na eventualidade de se generalizarem este tipo de situações.
Decorre assim, da norma legal em apreço, que:
1 – O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.
2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
3 – O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
5 - O Advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.
6 - Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.”
Na situação prevista no n.º 3 do artigo 94º do E.O.A., o Advogado representa um cliente num determinado litígio e este preceito legal impede-o de aceitar o patrocínio de um novo cliente para o representar no mesmo litígio, se este tiver um interesse conflituante com aquele outro.
Por sua vez, o n.º 4 do artigo 94º do E.O.A. pressupõe que os dois (ou mais) clientes em conflito de interesses já sejam clientes quando surge o conflito.
A situação descrita pelo Senhor Advogado Consulente subsume-se directamente na factispecie do n.º 4 do artigo 94º do E.O.A.
Na verdade, o Senhor Advogado Consulente encontrava-se a patrocinar dois credores em processo de insolvência actualmente pendente e, a dada altura, assumiram os clientes posições divergentes quanto à modalidade da liquidação da insolvente.
Esta circunstância consubstancia, claramente, uma situação de interesses conflituantes, já que a prossecução das instruções de um dos clientes implicará necessariamente a preterição das instruções do outro.
Assim sendo, deverá o Senhor Advogado Consulente, por força da referida norma legal, cessar o mandato em relação a ambos os clientes, de modo a preservar a relação de confiança que aqueles depositaram no Senhor Advogado Consulente.
Esta é a única solução que assegura o respeito pelos princípios da independência e da dignidade da profissão que o E. O. A consagra e cuja estrita observância reclama.
Vista a primeira questão, haverá agora que emitir pronúncia quanto à segunda questão suscitada pelo Senhor Advogado Consulente.
O n.º 6 do artigo 94º do E.O.A. consagrou a extensão do âmbito de aplicação das regras atinentes aos conflitos de interesses à actividade profissional desenvolvida em associação, sob forma de sociedade ou não, em relação a todos os Advogados associados.
A génese e a ratio do princípio são as de evitar situações promíscuas ou de transparência duvidosa quando o Advogado exerça a sua actividade em associação, entenda-se em grupo.
Nestas circunstâncias, o Advogado que exerça a sua actividade integrado em determinada estrutura deve respeitar as regras destinadas a evitar o conflito de interesses mesmo no que respeita a assuntos e clientes de outros Advogados integrados em estrutura societária ou de associação para os quais nunca tenha prestado serviços.
Assim, na situação em apreço, não poderá o Senhor Advogado Consulente substabelecer sem reserva os poderes que lhe foram conferidos por um daqueles seus clientes em Advogado que exerça a sua actividade profissional integrado na Sociedade de Advogados da qual o Senhor Advogado Consulente é sócio.
Isto independentemente do vínculo que liga o Advogado à Sociedade ou da natureza exclusiva, ou não, desse mesmo vínculo.
De igual sorte, e segundo o entendimento acima sufragado, não poderia, nas circunstâncias descritas, o Senhor Advogado Consulente manter o patrocínio do outro cliente, relativamente ao qual não colocaria a hipótese de substabelecer os poderes forenses que lhe foram conferidos.
CONCLUSÕES:
1. A matéria do conflito de interesses, regida estatutariamente pelo teor do artigo 94º do E.O.A., resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão e constitui expressa manifestação do princípio geral estatuído no art. 84º do E.O.A., segundo o qual o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros”.
2. Dispõe o n.º 2 do artigo 94º do E.O.A., sob a epígrafe “conflito de interesses” que se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
3. O Senhor Advogado Consulente encontrava-se a patrocinar dois credores em processo de insolvência actualmente pendente e, a dada altura, assumiram os clientes posições divergentes quanto à modalidade da liquidação da insolvente.
4. Assim sendo, deverá o Senhor Advogado Consulente cessar o mandato em relação a ambos os clientes, de modo a preservar a relação de confiança que ambos depositaram nele.
5. Esta é a única solução que assegura o respeito pelos princípios da independência e da dignidade da profissão que o E.O.A consagra e cuja estrita observância reclama.
6. Por força do disposto no n.º 6 do artigo 94º do E.O.A., o Senhor Advogado Consulente não poderá substabelecer sem reserva os poderes que lhe foram conferidos por um daqueles seus clientes em Advogado que exerça a sua actividade profissional integrado na Sociedade de Advogados da qual o Senhor Advogado Consulente é sócio.
7. Isto independentemente do vínculo que liga o Advogado à Sociedade ou da natureza exclusiva, ou não, desse mesmo vínculo.
8. De igual sorte, não poderá, nas circunstâncias descritas, o Senhor Advogado Consulente manter o patrocínio do outro cliente, relativamente ao qual não colocaria a hipótese de substabelecer os poderes forenses que lhe foram conferidos.
Notifique-se.
Lisboa, 21 de Fevereiro de 2011.
A Assessora Jurídica do C.D.L.
Sandra Barroso
Concordo e homologo o despacho anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,
Lisboa, 21 de Fevereiro de 2011.
O Vogal do Conselho Distrital de Lisboa
(por delegação de poderes de 20 de Janeiro de 2011)
Paulo de Sá e Cunha
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