Pareceres do CRLisboa

Consulta 4/2011

Consulta n.º 4/2011


Questão



Através do ofício n.º -, datado de 02.02.2011 (entrada com o número de registo - de 02.02.2011), o Senhor Juiz do 1º Juízo Criminal do Tribunal de Comarca de Cascais veio, nos termos e para os efeitos do disposto nos números 2 e 4 do artigo 135º do Código de Processo Penal, solicitar a pronúncia do Conselho Distrital de Lisboa quanto à legitimidade da escusa para depor apresentada pela Senhora Advogada, Dra. A. 

A requerida pronúncia tem subjacente a circunstância de, na audiência de discussão e julgamento do dia 01.02.2011, a Senhora Advogada se ter escusado a depor invocando “ter conhecimento de factos, que estão ao abrigo do sigilo profissional, por ter sido mandatária do assistente neste processo e ter sido ela, inclusive, em sua representação quem subscreveu a acusação particular e o pedido de indemnização cível de fls. 69 a 75 dos autos (…)”. 


Por forma a permitir a nossa pronúncia sobre a questão que nos foi colocada, foi solicitado ao Tribunal, através do N/Ofício n.º -, de 03.02.2011, que indicasse, de modo concreto e objectivo, quais os factos aos quais o depoimento da Senhora Advogada era pretendido.


Na sequência do solicitado, veio o Tribunal esclarecer, em 09.02.2011, que o depoimento a prestar pela Senhora Advogada diz respeito, apenas, aos factos que terá presenciado no dia 7 de Janeiro de 2009, quando se encontrava no 1º piso do Tribunal Judicial da Comarca de Cascais, os quais estão especificamente alegados nos artigos 1º a 8º da Acusação Particular deduzida pelo assistente. 


Por facilidade de raciocínio, transcrevemos, de seguida, os mencionados artigos da Acusação Particular: 

“1º 

No dia 7 de Janeiro de 2009, pelas 10h45m o aqui assistente encontrava-se no 1º piso do Tribunal Judicial da Comarca de Cascais, aguardando o início de uma audiência. 

O arguido era testemunha nesse mesmo processo.

3º 

Enquanto aguardava o início da audiência, o arguido aproximou-se do aqui assistente, bastante exaltado e com o intuito de o agredir fisicamente. 

Proferindo em alta voz as seguintes expressões: “anda cá que te vou fazer a folha”. 

“Seu vigarista, cobarde e ladrão”. 

De imediato tentou socar o assistente, tendo sido impedido pelo seu pai e por uma outra pessoa que se encontrava no mesmo local.

Que com algum esforço seguraram o arguido, 

8º 

Impedindo-o de consumar a agressão”.


Traçado o quadro fáctico, haverá agora que proceder à emissão do parecer solicitado. 


Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa


A existência da obrigação de segredo profissional impede o Advogado de revelar os factos e/ou os documentos nos quais esses factos possam estar contidos, excepto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Distrital respectivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro), e pelo artigo 4º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional.

Ainda que dispensado nos termos referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional.

O Advogado é, pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade activa para solicitar, se assim o entender, dispensa da obrigação de guardar segredo.


Existe, no entanto, na lei processual penal, um regime de excepção, previsto no artigo 135º do Código de Processo Penal, aplicável também ao processo civil por remissão do número 4 do artigo 519º do Código de Processo Civil. 

Segundo o regime estatuído nas leis processuais civil e penal, a regra continua a ser a de o Advogado poder (e, à luz do E.O.A., “dever”) escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo dever de segredo profissional. 

E, deduzida a escusa perante o Juiz ou a autoridade judiciária, pode acontecer que o Juiz ou a autoridade judiciária tenham fundadas dúvidas sobre a legitimidade desta – cf. n.º 2 do artigo 135º do CPCP. 

Se tal acontecer, como no caso vertente, o Juiz decide sobre a legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cf. n.º 4 do artigo 135º do CPP.


E, nesta sede, o que terá de se aferir é se o Advogado está, ou não, a invocar criteriosa e correctamente que os factos sobre os quais se pretende deponha constituem matéria sigilosa, sobre a qual deva observar o dever de segredo. 


Cumpre, antes de mais, indagar se os factos contidos nos artigos 1º a 8º da Acusação Particular deverão considerar-se abrangidos pelo sigilo profissional. 

Vejamos. 


Estipula o n.º 1 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados (E.O.A.) que “O Advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”. 

Não se pode, obviamente, interpretar literalmente o conteúdo do n.º 1 do artigo 87º do E.O.A., pois, se assim fosse, todos os factos – sem qualquer distinção – que chegassem ao conhecimento do Advogado estariam sempre sujeitos a sigilo. Tal interpretação maximalista e, digamos, desenquadrada do espírito do sistema, colocar-nos-ia perante soluções totalmente desprovidas de sentido. 

Haverá, isso sim, que proceder a uma interpretação teleológica do n.º 1 do artigo 87º do E.O.A. 

Ora, atendendo à finalidade da Lei, somos da opinião de que só serão sigilosos aqueles factos relativamente aos quais seja de presumir que quem os confiou ao Advogado, em particular o seu cliente, tinha um interesse objectivo, à luz da relação de confiança existente, em que se mantivessem sob reserva de estrita confidencialidade. 


Contudo, e apesar de o cliente ser a primeira ratio dos factos que ficam sujeitos a sigilo profissional, a esfera de protecção deste dever estatutário transcende o domínio da relação com o cliente, estendendo-se, no que tange ao Advogado, a:

i. factos que, por virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados, qualquer colega, obrigado quanto aos mesmos factos ao segredo profissional, lhe tenha comunicado – alínea b) do n.º 1 do artigo 87º do E.O.A.;

ii. factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração - alínea c) do n.º 1 do artigo 87º do EOA;

iii. factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do cliente ou pelo respectivo representante - alínea d) do n.º 1 do artigo 87º do E.O.A.;

iv. factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio - alínea e) do n.º 1 do artigo 87º do E.O.A.;

v. factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo - alínea f) do n.º 1 do artigo 87º do E.O.A.. 


Mas, ainda nestas relações com outras pessoas que não o cliente, não podemos deixar perder de vista as balizas com que delimitámos o sigilo profissional. 

Isto é, deverá sempre subsistir um interesse objectivo, face à relação estabelecida e aos próprios factos em si, na sua sujeição a um dever de confidencialidade – porque só deverá ser sujeito a sigilo aquilo que é verdadeiramente sigiloso. 


De acordo com as premissas anteriormente elencadas é nosso entendimento que os factos relativamente aos quais deverá incidir o depoimento da Senhora Advogada, Dra. A, não estão abrangidos pelo dever de sigilo profissional. 


E não o estão, precisamente, por se tratar de factos completamente alheios à relação de confiança estabelecida com o cliente, com a outra parte, com colegas ou relacionados com qualquer tentativa de composição extrajudicial de um qualquer litígio.

Estão em causa, isso sim, factos que ocorreram num local aberto ao público e que a Senhora Advogada presenciou nas mesmas circunstâncias em que as demais pessoas que se encontravam na altura no 1º piso do Tribunal Judicial da Comarca de Cascais presenciaram. Assim sendo, é evidente que não existe, quanto a esses factos, a confidencialidade e o secretismo que o instituto jurídico-deontológico pressupõe e exige. 


Contudo, não deixaremos, de frisar que este nosso entendimento se cinge, única e exclusivamente, aos factos ocorridos, de forma pública, no dia 7 de Janeiro de 2009, no 1º piso do Tribunal e pressupõe que o depoimento a prestar pela Senhora Advogada se restinga à expressão literal dos factos vertidos nos artigos 1º a 8º da Acusação Particular. 


Quanto aos factos de que a Senhora Advogada requerente teve conhecimento por força da relação profissional posteriormente estabelecida com o seu antigo cliente está, naturalmente, a Senhora Advogada impedida de sobre eles depor, por estarem em causa factos, aqui sim, sujeitos ao dever de sigilo, por força do artigo 87º do EOA. 


E, precisamente, por não estar em causa o depoimento sobre factos sujeitos ao dever de sigilo, a circunstância da Senhora Advogada ter sido mandatária no processo no âmbito do qual agora se pretende o seu depoimento, não obsta a que a Senhora Advogada preste o depoimento pretendido. 

Só assim não seria se os factos estivessem sujeitos ao dever de sigilo ou se a Senhora Advogada ainda fosse mandatária constituída no processo, pois que, relativamente a estes casos, tem sido jurisprudência constante, pacífica e unânime dos diversos órgãos da Ordem dos Advogados e dos seus doutrinadores a de que o Advogado não pode nesse mesmo processo depor como testemunha.


CONCLUSÕES:


1. A existência do dever de segredo profissional impede o Advogado de revelar os factos e/ou os documentos nos quais esses factos possam estar contidos, excepto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Distrital respectivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro), e pelo artigo 4º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional.


2. Ainda que dispensado nos termos supra referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional.


3. O Advogado é, pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade activa para solicitar, se assim o entender, dispensa da obrigação de guardar segredo.


4. Existe, no entanto, na lei processual penal, um regime de excepção, previsto no artigo 135º do Código de Processo Penal.


5. Segundo o regime estatuído na lei processual penal, a regra continua a ser a de o Advogado poder (e, à luz do E.O.A., “dever”) escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo dever de segredo profissional. 


6. E, deduzida a escusa perante o Juiz ou a autoridade judiciária, pode acontecer que o Juiz ou a autoridade judiciária tenham fundadas dúvidas sobre a legitimidade da escusa – cf. n.º 2 do artigo 135º do CPP. 


7. Se tal acontecer, como no caso vertente, o Juiz decide sobre a legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cf. n.º 4 do artigo 135º do CPP.


8. No caso concreto, entendemos que os factos relativamente aos quais é pretendido o depoimento da Senhora Advogada, Dra. A, não estão abrangidos pelo dever de sigilo profissional, pelo que a escusa em depor não é legítima, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 135º do Código de Processo Penal.


9. E não o estão, precisamente por se tratar de factos completamente independentes de qualquer relação de confiança estabelecida com o cliente, com a outra parte, com colegas ou relacionados com qualquer tentativa de composição extrajudicial de um qualquer litígio.


10. Estão, isso sim, em causa factos que ocorreram num local aberto ao público e que a Senhora Advogada presenciou nas mesmas circunstâncias em que as demais pessoas que se encontravam na altura no 1º piso do Tribunal Judicial da Comarca de Cascais presenciaram. Assim sendo, é evidente que não existe, quanto a esses factos, a confidencialidade e o secretismo que o instituto jurídico-deontológico pressupõe e exige. 


11. Este nosso entendimento cinge-se, única e exclusivamente, aos factos ocorridos, de forma pública, no dia 7 de Janeiro de 2009, no 1º piso do Tribunal e pressupõe que o depoimento a prestar pela Senhora Advogada se cinja, única e exclusivamente, à expressão literal dos factos vertidos nos artigos 1º a 8º da Acusação Particular. 


12. Quanto aos factos de que a Senhora Advogada requerente teve conhecimento por força da relação profissional posteriormente estabelecida com o seu antigo cliente está, naturalmente, a Senhora Advogada impedida de sobre eles depor, por estarem em causa factos, aqui sim, sujeitos ao dever de sigilo, por força do artigo 87º do EOA. 


13. A circunstância da Senhora Advogada ter sido mandatária no processo no âmbito do qual agora se pretende o seu depoimento, não obsta a que a Senhora Advogada preste o depoimento pretendido. 


Notifique-se.


Lisboa, 11 de Fevereiro de 2011. 

A Assessora Jurídica do C.D.L.


Sandra Barroso 


Concordo e homologo o despacho anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,


Lisboa, 11 de Fevereiro de 2011. 


O Vogal do Conselho Distrital de Lisboa 

(por delegação de poderes de 20 de Janeiro de 2011)


Paulo de Sá e Cunha

Sandra Barroso

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