Pareceres do CRLisboa

Consulta 20/2011

Consulta n.º 20/2011

Dos factos

Encontra-se pendente na X Secção da - Vara Cível de XX , sob o n.º -, uma acção de honorários em que é Autora, A (Abogados), com sede em Madrid , e Ré, a Companhia de Segurança B.

Na audiência de discussão e julgamento realizada em - , foi ouvida como testemunha arrolada pela Autora, a Senhora Advogada, Dra. M, com domicílio profissional em Madrid, Espanha.
A Senhora Advogada em causa prestou depoimento a toda a matéria da Base Instrutória.

Findo o depoimento da referida testemunha, o mandatário da Ré pediu a palavra e, no uso da mesma, disse, e passamos a transcrever:
“Considerando o teor do depoimento da testemunha M (testemunha arrolada pela Autora, a qual referiu expressamente ser advogada e se encontrar a prestar depoimento sobre factos relativos a um cliente seu, cujo conhecimento foi adquirido no exercício da sua profissão e depois de ter contactado com esse cliente, aqui também hoje testemunha), e considerando também o teor das regras referentes ao sigilo profissional, consagradas no artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados, desde logo se invoca a nulidade do seu depoimento, porquanto viola de forma directa essa disposição legal.

Mais se requer a V.Exa. que seja prejudicada a continuação da produção da restante prova prevista para o julgamento do presente processo, até à recepção por este Tribunal de resposta da Ordem dos Advogados, a pedido formulado à mesma, no sentido de saber se um advogado de nacionalidade portuguesa, exercendo actividade em Espanha, bem como um advogado de nacionalidade espanhola, e ainda se o funcionário de um escritório de advogados, ao qual os três se encontram vinculados profissionalmente, viola ou não a matéria referente ao sigilo profissional, o depoimento dessas testemunhas, relativamente a factos cujo conhecimento foi adquirido no exercício da sua profissão, sendo certo que a parte que os apresentou como testemunhas carece, em face das disposições previstas na lei portuguesa, de legitimidade para autorizar o levantamento do sigilo profissional do advogado”.

Dada a palavra ao mandatário da Autora, no uso da mesma disse:
“A Autora não tem nada a opor ao requerimento apresentado pela Ré, entendendo simplesmente que na pergunta a formular ao Conselho Distrital da Ordem dos Advogados, deve ser incluído o esclarecimento de que o depoimento em causa é relativo a uma acção de honorários, intentada contra a pessoa que contratou os respectivos serviços”.

Em sequência, em (cf. Entrada com o número de registo - ), foi este Conselho notificado para emitir parecer quanto à questão suscitada nos autos.
A resposta ao solicitado foi dada através no nosso ofício n.º -, de -, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.


Veio agora o Tribunal solicitar que o Conselho Distrital de Lisboa emita “novo parecer, por forma a que se saiba se a matéria vertida na Base Instrutória, quando objecto de pronúncia por parte de advogado que nela interveio no exercício da sua profissão, ou de funcionário daquele, está, ou não, abrangida por segredo profissional”.

Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa

Tentaremos, desta vez, ser um pouco mais claros por forma a dilucidar, assim esperamos, o Tribunal sobre a questão suscitada nos autos, permitindo que os autos prossigam a sua normal tramitação.

A Ordem dos Advogados Portugueses é uma associação pública, que representa uma forma de administração mediata, autónoma do Estado, mas que dele recebeu devolução de poderes para, no exercício das suas atribuições e competências, regulamentar a actividade profissional de advocacia, designadamente nos seus aspectos deontológicos e disciplinares.

Nos termos no n.º 2 do artigo 1º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA), a Ordem dos Advogados é independente dos órgãos do Estado, sendo livre e autónoma nas suas regras.

A Ordem dos Advogados Portugueses, em função do princípio da territorialidade fixado no n.º 1 do artigo 2º do EOA, exerce jurisdição sobre todos os profissionais (nacionais ou estrangeiros) que nela se encontrem inscritos (ou apenas registados) e que exerçam actividade em Portugal, mantendo essa jurisdição, agora por força do princípio da personalidade, fixado no n.º 2 do artigo 2º do EOA, mesmo quando o exercício da actividade ocorra no estrangeiro em relação aos advogados nacionais ou estrangeiros inscritos em Portugal a título permanente.

Nos termos do Código de Deontologia dos Advogados Europeus, os Advogados portugueses que exerçam a profissão no estrangeiro devem também respeitar as normas vigentes no país de acolhimento.
É o chamado princípio da dupla deontologia.

No caso concreto, temos as seguintes premissas:
- Em 27.11.98, a Senhora Advogada, Dra. M, requereu a sua inscrição como Advogada Estagiária neste Conselho Distrital.
- Em 29.11.2000, a Senhora Advogada, Dra. M, requereu, também junto deste Conselho, a sua inscrição definitiva como Advogada.
- A Senhora Advogada encontra-se regularmente inscrita na Ordem dos Advogados Portugueses, sendo titular da cédula profissional n.º-
- A Senhora Advogada é também “Miembro del Colegio de Abogados de Madrid”

Dos factos atrás elencados, sublinha-se, em particular, a circunstância da Senhora Dra. M estar inscrita na Ordem dos Advogados Portugueses e ser, também, “Miembro del Colegio de Abogados de Madrid”.

E esta circunstância leva-nos a concluir que a questão ora sob resposta deve ser analisada, em teoria, ou à luz da Directiva 77/249/CEE do Conselho da União Europeia, de 22 de Março de 1977, ou à luz da Directiva 98/5/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Fevereiro de 1998.

Tendo por base o Tratado que instituiu a Comunidade Económica Europeia, a Directiva 77/249/CEE visou facilitar o exercício efectivo da livre prestação de serviços pelos Advogados, estipulando que cada Estado-Membro reconhecerá como Advogado quem tenha, nos vários países membros, as habilitações profissionais referidas no artigo 1º da mencionada Directiva.

Para tanto, pode ler-se no artigo 3º da mencionada Directiva que “qualquer das pessoas mencionadas no artigo 1º deve usar o título profissional próprio, expresso na ou numa das línguas do Estado-membro de proveniência, com indicação da organização profissional a que esteja sujeita ou da jurisdição junto da qual se encontre admitida nos termos da legislação desse Estado”.


Quanto às regras profissionais, estipula o artigo 4º da mencionada Directiva o seguinte:
“1. As actividades relativas à representação e à defesa de um cliente em juízo ou perante autoridades públicas serão exercidas em cada Estado-membro de acolhimento nas condições previstas quanto aos advogados estabelecidos nesse Estado, com exclusão de qualquer requisito de residência ou de inscrição numa organização profissional do referido Estado.
2. No exercício destas actividades, o advogado respeitará as regras profissionais do Estado-membro de acolhimento, sem prejuízo das obrigações a que esteja sujeito no Estado-membro de proveniência.
(…)
4. No que respeita ao exercício de actividades diferentes das referidas no n.º 1, o advogado continuará sujeito às condições e regras profissionais do Estado-membro de proveniência, sem prejuízo do respeito das regras, seja qual for a sua origem, que regulamentam a profissão no Estado-membro de acolhimento, nomeadamente, as relativas às incompatibilidades entre o exercício das actividades de advogado e o de outras actividades nesse Estado, do segredo profissional, às relações entre colegas, à proibição de assistência pelo mesmo advogado a partes com interesses opostos e à publicidade. (…)”.

Por sua vez, a Directiva 98/5/CE tem por objecto o exercício permanente da profissão de Advogado a título independente ou assalariado num Estado-membro diferente daquele em que foi adquirida a qualificação profissional.
Estipula, assim, o artigo 2º da mencionada Directiva que “qualquer advogado tem o direito de exercer, a título permanente, em qualquer outro Estado-membro, com o título profissional de origem, as actividades de advogado previstas no artigo 5º”.


Estipula o n.º 1 do artigo 5º que “Sob reserva dos n.ºs 2 e 3, o advogado que exerça com o título profissional de origem desenvolve as mesmas actividades profissionais que o advogado que exerça com o título profissional adequado no Estado-membro de acolhimento, podendo, nomeadamente, dar consultas jurídicas em matéria de direito do seu Estado-membro de origem, de direito comunitário, de direito internacional e de direito do Estado-membro de acolhimento. Deverá respeitar, em todo os casos, as regras de processo aplicáveis nos órgãos jurisdicionais nacionais”.

Pode ler-se no preâmbulo da mencionada Directiva que, para a sua aplicação, é exigido que o advogado inscrito com o título profissional de origem no Estado-membro de acolhimento continue inscrito junto da autoridade competente do Estado-membro de origem para poder conservar a sua qualidade de advogado.

Prevê ainda a mencionada Directiva no seu artigo 10º, sob a epígrafe “ Equiparação aos advogados do Estado-membro de acolhimento”, que, nas condições aí previstas, o advogado que exerça com o título profissional de origem num Estado-membro de acolhimento tem o direito de requerer o exercício com o título profissional correspondente à profissão de Advogado nesse Estado-membro.
A utilização do título profissional correspondente à profissão de Advogado no Estado-membro de acolhimento não prejudica a utilização do título profissional de origem.



Em suma, podemos dizer que as actividades abrangidas pela Directiva 77/249/CEE são de carácter ocasional, enquanto que a Directiva 98/5/CE diz respeito ao estabelecimento permanente, ao exercício permanente da profissão de Advogado num Estado-membro diferente daquele em que foi adquirida a qualificação profissional.

No caso concreto, e de acordo com os elementos colocados à nossa disposição, podemos concluir que a Senhora Advogada, Dra. M, exerce a sua actividade profissional em Espanha ao abrigo da Directiva 98/5/CE.

Isto é, exerce de modo permanente a sua actividade profissional em Madrid, conforme resulta, aliás, da mera consulta ao site... onde se pode ler “Miembro del equipo de Corporate (M&A) de la oficina de Madrid desde 2004. Previamente, trabajó en el departamento mercantil de la oficina de Lisboa”.

O que equivale a dizer que a Senhora Advogada exerce a sua actividade profissional em Espanha:
1. Ou, com o título profissional de origem, isto é, com o título de “Advogada”.
2. Ou, com o título de “Abogada”.

Na primeira hipótese, a Senhora Advogada bem como todos os seus colaboradores estarão, por força do chamado princípio da dupla deontologia, adstritos quer ao dever de sigilo profissional plasmado no artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados Portugueses (EOA), quer às regras relativas ao sigilo profissional vigentes em Espanha.
O que equivale a dizer que, de acordo com o ordenamento jurídico português, a Senhora Advogada e os seus colaboradores careceriam da autorização prévia prevista no n.º 4 do artigo 87º do EOA, para poderem prestar depoimento à matéria de facto vertida na Base Instrutória, já que os factos nela contidos contendem com os serviços jurídicos prestados e, como tal, estão abrangidos pela esfera de protecção do sigilo.
Portanto, independentemente das normas vigentes em Espanha, deveria ter sido requerida autorização prévia ao órgão competente no território nacional, no caso, ao Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados Portugueses, onde a Senhora Advogada se encontra inscrita.

Isto mesmo decorre do n.º 1 do artigo 6º da Directiva que estipula que “independentemente das regras profissionais e deontológicas a que está sujeito no seu Estado-membro de origem, o advogado que exerce com o título profissional de origem fica submetido às mesmas regras profissionais e deontológicas aplicáveis aos advogados que exerçam com o título profissional adequado do Estado-membro de acolhimento, relativamente a todas as actividades que desenvolva no território deste último”.



Ao invés, se a Senhora Advogada estiver a exercer em Espanha com o título de “Abogada”, e, portanto, à luz da Directiva, em plena igualdade de direitos e deveres com os demais Advogados espanhóis, estará sujeita, nomeadamente, em matéria de sigilo profissional, às normas deontológicas aplicáveis em Espanha, quanto aos actos praticados com o título de“Abogada”.
E, assim sendo, a questão de saber se os factos constantes da Base Instrutória estão, ou não, sujeitos a sigilo e se a Senhora Dra. M carecia de alguma autorização prévia para sobre eles depor, deverá ser vista à luz do direito espanhol e colocada, no caso concreto, ao “Colegio de Abogados de Madrid”, não sendo este Conselho competente para responder à questão colocada.
O mesmo se diga, mutatis mutandi, a propósito dos colaboradores, quanto aos actos praticados pela Senhora Advogada com o título de “Abogada”.

Este é, salvo melhor opinião, o nosso entendimento sobre a questão que nos foi colocada.

Notifique-se.

Lisboa, 25 de Agosto de 2011.
A Assessora Jurídica do C.D.L.

Sandra Barroso


Concordo e homologo o despacho anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

Lisboa, 25 de Agosto de 2011.

O Presidente do Conselho Distrital de Lisboa

Vasco Marques Correia

Sandra Barroso

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