Consulta 39/2011
Consulta n.º 39/2011
Questão
Mediante requerimento recepcionado no Conselho Distrital de Lisboa no dia 13 de Setembro de 2011 (entrada com o número de registo - ), o Senhor Advogado, Dr. A, veio solicitar a emissão de parecer quanto a uma situação de eventual conflito de interesses.
A factualidade descrita pelo Senhor Advogado Consulente é, em síntese, a que passamos a enunciar:
1. O Senhor Advogado Consulente patrocinou a Requerida numa acção especial de interdição.
2. A final, entendeu o Tribunal declarar a Requerida não interdita mas inabilitada, nomeando seu curador o Requerente da acção de interdição.
3. A sentença transitou em julgado e, por conseguinte, a inabilitação foi averbada no assento de nascimento da então cliente do Senhor Advogado Consulente.
4. O Senhor Advogado Consulente foi agora procurado por um seu cliente de há muitos anos, cunhado da inabilitada e, com ela, comproprietário de imóveis nas cidades X e XX, para o patrocinar na acção de divisão de coisa comum que pretende instaurar.
5. A acção em causa terá de ser interposta contra a inabilitada, devidamente representada pelo seu curador.
Considerando a factualidade descrita, vem o Senhor Advogado Consulente solicitar a emissão de parecer quanto à eventual existência de conflito de interesses.
Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa
Não temos dúvidas de que a questão colocada à apreciação deste Conselho Distrital se subsume a uma “questão de carácter profissional” nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 50º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA), que define a competência material do Conselho, pelo que há que proceder à emissão de parecer quanto à questão colocada.
É o que faremos de seguida.
“A Deontologia é o conjunto de regras ético-jurídicas pelas quais o advogado deve pautar o seu comportamento profissional e cívico. (...) O respeito pelas regras deontológicas e o imperativo da elevada consciência moral, individual e profissional, constitui timbre da advocacia.” – António Arnaut, Iniciação à Advocacia – História – Deontologia – Questões Práticas, p. 49 e 50, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996.
O Advogado, no exercício da sua profissão, está vinculado ao cumprimento escrupuloso de um conjunto de deveres consignados no EOA e ainda àqueles que a lei, os usos, os costumes e as tradições profissionais lhe impõem.
O cumprimento escrupuloso e pontual de todos esses deveres garante a dignidade e o prestígio da profissão.
No artigo 94º do EOA encontra-se regulado o denominado “Conflito de Interesses”.
Aí estão plasmadas várias situações em que existe uma situação de incompatibilidade para o exercício do patrocínio.
A questão que ora nos ocupa reconduz-se, assim, a saber se o Senhor Advogado Consulente, tendo representado os interesses da inabilitada na acção especial de interdição, pode agora litigar em juízo em representação do cunhado da inabilitada e, com esta, comproprietário de vários imóveis, contra a inabilitada, representada pelo curador.
Diga-se, desde já, que o EOA, em matéria de conflito de interesses, não contém uma proibição geral de patrocínio contra quem foi anteriormente seu cliente, mas apenas uma proibição de patrocínio:
i. Contra quem seja por si patrocinado noutra causa pendente.
ii. Em causas em que já tenha intervindo ou que sejam conexas com outras em que tenha representado a parte contrária.
iii. Em causas que possam colocar em crise o sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.
Da factualidade descrita pelo Senhor Advogado Consulente, entendemos que está em causa a correcta interpretação do disposto na 2ª parte do n.º 1 do artigo 94º do EOA, que, por facilidade de raciocínio, passamos a transcrever:
“ 1. O Advogado deve recusar o patrocínio de uma questão (…) conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.”
No presente caso, verifica-se que o Senhor Advogado Consulente patrocinou a Requerida numa acção especial de interdição.
A mencionada acção já transitou em julgado, encontrando-se, portanto, finda.
Pretende, agora, o Senhor Advogado Consulente patrocinar o cunhado da sua antiga cliente e, com ela, comproprietário de vários imóveis, na acção de divisão de coisa comum que aquele pretende instaurar contra esta para por termo à comunhão.
Nos termos do disposto no artigo 94º do EOA, é vedado ao Advogado, nomeadamente, intervir, sob qualquer forma, em questão (processo judicial ou não) que seja conexa com outra em que represente a parte contrária, mas também lhe está vedado intervir em questão que seja conexa com outra em que tenha representado a parte contrária.
E, no presente caso, existe uma conexão (material) entre as acções?
Parece-se-nos que não.
Tal como foi entendido no Parecer do Conselho Geral n.º E-14/00, aprovado em 13.10.2000, e no qual foi relator o Senhor Dr. Carlos Grijó, conexão significa relação evidente entre várias causas, de modo que a decisão de uma dependa das outras ou que a decisão de todas dependa da subsistência ou valorização de certos factos.
Em nossa modesta opinião, os serviços jurídicos anteriormente prestados pelo Senhor Advogado Consulente à inabilitada não são conexos com os serviços que agora lhe foram solicitados pelo cunhado da inabilitada.
De facto, o processo de inabilitação versa sobre o estado e a capacidade das pessoas, enquanto a acção de divisão de coisa comum visará, grosso modo, pôr termo à indivisibilidade dos imóveis adquiridos em compropriedade com a inabilitada.
Estão em causa acções com causas de pedir e pedidos completamente distintos, não existindo, a nosso ver, qualquer conexão material entre as mesmas.
Face ao exposto, de acordo com as premissas de facto expostas pelo Senhor Advogado Consulente – e que este Conselho Distrital irá tomar como correctas e verdadeiras exclusivamente para efeitos deste Parecer – diremos que não existirá, objectivamente, o dever de recusar o patrocínio.
Mas, naturalmente, a questão não deverá ser resumida a um juízo baseado em premissas puramente objectivas.
Este Conselho Distrital entende – e sobre isso já se pronunciou anteriormente, nomeadamente na Consulta n.º 12/2008 – que a matéria de conflito de interesses é, em primeira linha, uma questão de consciência do Advogado. Cabe a cada Advogado formular um juízo de consciência sobre se a relação de confiança que estabeleceu com um seu antigo cliente lhe permite, livremente e sem constrangimentos, assumir agora um patrocínio contra ele.
E desde já se diga que a repulsa de um advogado em litigar contra quem foi seu antigo cliente deve ser entendida como causa justificante da recusa de patrocínio – mesmo que tal não resulte de norma expressa. Outra conclusão não se poderia tirar dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão.
Assim, só o Senhor Advogado Consulente estará em posição, de avaliar, nomeadamente:
(i) se é inequívoco que este novo assunto não é conexo com qualquer outro em que tenha intervindo ou tomado conhecimento em representação da sua antiga cliente;
(ii) se está convicto de que com aceitação do novo mandato não sentirá a sua independência afectada;
(iii) se está convicto de que o exercício do novo mandato não colocará em crise o sigilo profissional relativamente aos assuntos da sua antiga cliente;
(iv) e se está convicto de que do conhecimento dos assuntos da sua antiga cliente não resultam vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.
Entendemos que, verificando-se uma qualquer das referidas circunstâncias, deverá o Senhor Advogado Consulente recusar a aceitação do novo mandato.
CONCLUSÕES:
1. A matéria do conflito de interesses, regida estatutariamente pelo teor do artigo 94º do EOA, resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão e constitui expressa manifestação do princípio geral estatuído no artigo 84º do EOA, segundo o qual o “ Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer, pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros”.
2. O Estatuto da Ordem dos Advogados, em matéria de conflito de interesses, não contém uma proibição geral de patrocínio contra quem foi anteriormente seu cliente, mas apenas uma proibição de patrocínio:
i. Contra quem seja por si patrocinado noutra causa pendente.
ii. Em causas em que já tenha intervindo ou que sejam conexas com outras em que tenha representado a parte contrária.
iii. Em causas que possam colocar em crise o sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.
3. Em nossa modesta opinião, os serviços jurídicos anteriormente prestados pelo Senhor Advogado Consulente à inabilitada não são conexos com os serviços que agora lhe foram solicitados pelo cunhado da inabilitada.
4. De facto, o processo de inabilitação versa sobre o estado e a capacidade das pessoas, enquanto a acção de divisão de coisa comum visará, grosso modo, pôr termo à indivisibilidade dos imóveis adquiridos em compropriedade com a inabilitada.
5. Face ao exposto, e de acordo com as premissas de facto expostas pelo Senhor Advogado Consulente – e que este Conselho Distrital irá tomar como correctas e verdadeiras exclusivamente para efeitos deste Parecer – diremos que não existirá, objectivamente, um dever de recusar o patrocínio.
6. Mas naturalmente a questão não deverá ser resumida a um juízo baseado em premissas puramente objectivas.
7. É que entendemos que a matéria de conflito de interesses é, em primeira linha, uma questão de consciência do Advogado.
8. Cabe a cada Advogado formular um juízo de consciência sobre se a relação de confiança que estabeleceu com um seu antigo cliente lhe permite, livremente e sem constrangimentos, assumir agora um patrocínio contra ele.
9. Assim, só o Senhor Advogado Consulente estará em posição de avaliar, nomeadamente:
(i) se é inequívoco que este novo assunto não é conexo com qualquer outro em que tenha intervindo ou tomado conhecimento em representação da sua antiga cliente;
(ii) se está convicto de que com aceitação do novo mandato não sentirá a sua independência afectada;
(iii) se está convicto de que o exercício do novo mandato não colocará em crise o sigilo profissional relativamente aos assuntos da sua antiga cliente;
(iv) e se está convicto de que do conhecimento dos assuntos da sua antiga cliente não resultam vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.
10. Entendemos que, verificando-se uma qualquer das referidas circunstâncias, deverá o Senhor Advogado Consulente recusar a aceitação do novo mandato.
Notifique-se.
Lisboa, 21 de Setembro de 2011.
A Assessora Jurídica do C.D.L.
Sandra Barroso
Concordo e homologo o despacho anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,
Lisboa, 22 de Setembro de 2011.
O Vogal do Conselho Distrital de Lisboa
(por delegação de poderes de 20 de Janeiro de 2011)
Paulo de Sá e Cunha
Sandra Barroso
Topo