Pareceres do CRLisboa

Consulta 36/2011


Consulta n.º 36/2011
 
 
Dos factos
 
O Senhor Advogado, Dr. A, titular da cédula profissional n.º - , veio solicitar a pronúncia do Conselho Distrital de Lisboa quanto à questão que passamos a enunciar.
 
Corre termos na Comarca do Alentejo Litoral, Santiago do Cacém, Juízo de Média e Pequena Instância Cível, sob o n.º ...., uma acção de insolvência em que é Requerente, a Sociedade Y Lda., e Requerida, a Associação X .
 
No processo judicial em causa a Requerida conferiu mandato forense a diversos Advogados da Z & Associados – Sociedade de Advogados (doravante Z ).
 
No início da audiência de discussão e julgamento realizada no dia 29 de Agosto pretérito, o mandatário da Requerente suscitou como questão prévia a nulidade do mandato forense conferido aos Advogados da Z bem como da Oposição deduzida em juízo, por entender que existe uma situação de conflito de interesses entre a Requerida e os seus mandatários, nos termos e com os argumentos que, sinteticamente, passamos a transcrever:
“ (…)
 
 
 
1º No artigo 13º do requerimento inicial a requerente referiu a sociedade de advogados Z & Associados, Sociedade Civil de Advogados, adiante designada como Z, como credora da requerida.
2º Nos artigos 129º e 130º da oposição a requerida reconhece a existência de uma dívida perante a Z enquanto sua credora, alegando ter acordado com esta há cerca de 4 meses o pagamento de tal dívida, embora tendo o cuidado de não referir o seu montante, que alegadamente vem cumprindo.
3º A requerida constituiu mandato e é representada nestes autos pela Z tendo a respectiva oposição sido subscrita por um dos sócios da Z, a ilustre advogada Sr.ª Drª M.
4º Aliás em cumprimento do artigo 32º, n.º 2 do CIRE e após o artigo 178º da oposição a requerida indica como um dos 5 maiores credores a referida Z.
5º Ora nesta situação verifica-se que existe de forma manifesta atendendo à natureza do presente processo um grave conflito de interesses, uma vez que um dos 5 maiores credores – a Sociedade de Advogados Z – patrocinou em processo de insolvência a devedora, a qual, neste mesmo processo enquanto representante da mesma não deixou de invocar o seu crédito e posteriormente, após a declaração de insolvência da requerida não deixará certamente de reclamar o seu crédito pré-existente por serviços anteriormente prestados à insolvente.
(…)
12º Por outro lado, o mandato conferido à Z e seus sócios na presente situação põe manifestamente em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional (cfr. Artigo 87º do EOA).
(…)”.
 
 
Considerando as questões suscitadas nos autos pela Requerente, vem o Senhor Advogado Consulente requerer a pronúncia deste Conselho quanto às seguintes questões:
a)     Se existe um conflito de interesses dos mandatários judiciais da Z constituídos pela Requerida para a representar no processo judicial em curso, enquanto credora da Requerida, nos termos invocados pela Requerente?
b)     Se o mandato exercido pelos Advogados da Z no processo judicial em curso viola os princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão consagrados nos artigos 94º e 99º do EOA?
c)     Se o mandato exercido pelos Advogados da Z no processo judicial em curso põe em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional estabelecido no artigo 87º do EOA?
 
Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa
 
Não temos dúvidas de que a questão colocada à apreciação deste Conselho Distrital se subsume a uma “questão de carácter profissional” nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 50º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA), que define a competência material do Conselho, pelo que há que proceder à emissão de parecer quanto à questão colocada.
 
É o que faremos de seguida.
 
 
 
 
O Advogado, no exercício da sua profissão, está vinculado ao cumprimento escrupuloso de um conjunto de deveres consignados no EOA e ainda àqueles que a lei, os usos, os costumes e as tradições profissionais lhe impõem.
O cumprimento escrupuloso e pontual de todos esses deveres garante a dignidade e o prestígio da profissão.
 
 
No artigo 94º do EOA encontra-se regulado o denominado “Conflito de Interesses”.
Aí estão plasmadas várias situações em que existe uma situação de incompatibilidade para o exercício do patrocínio.
 
Esta norma tem em vista evitar a existência de conflito de interesses na condução do mandato por Advogado e assume a uma tripla função[1]:
a)     Defender a comunidade em geral, e os clientes de um qualquer Advogado em particular, de actuações menos lícitas e/ou danosas por parte de um Colega, conluiado ou não com algum ou alguns dos seus clientes;
b)     Defender o próprio Advogado da possibilidade de, sobre ele, recair a suspeita de actuar, no exercício da sua profissão, visando qualquer outro interesse que não seja a defesa intransigente dos direitos e interesses dos seus clientes.
c)     Defender a própria profissão, a Advocacia, do anátema que sobre ela recairia na eventualidade de se generalizarem este tipo de situações.
 
 
 
Assim, estipula o artigo 94º do EOA que:
a)     O Advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.
b)     O Advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
c)     O Advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
d)     Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
e)     O Advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.
 
Por fim, estipula a mencionada norma legal que, quando o advogado exerce a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, as mencionadas situações de impedimento para o patrocínio se aplicam quer à associação quer a cada um dos seus membros.
 
 
 
 
No caso concreto, a Requerida é patrocinada por Advogados da z, conforme procuração que instruiu o pedido ora sob resposta.
Na mencionada acção, foi indicada como um dos cinco maiores credores da Requerida a Sociedade de Advogados Z, por serviços anteriormente prestados.
 
A Oposição deduzida à pretensão da Requerente foi subscrita pela Senhora Advogada, Dra. M. , sócia da Z.
Na Oposição, a Requerida reconhece a existência da dívida perante a Z, enquanto sua credora, alegando ter acordado com esta há cerca de 4 meses o pagamento de tal dívida.
 
Tendo por referência a factualidade descrita iremos, de seguida, verificar se existe, conforme invocado pelo mandatário da Requerente da insolvência, alguma situação de conflito de interesses que impeça os Advogados da Z de patrocinar a Requerida.
 
Diz-nos o artigo 1º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), que o processo de insolvência tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente.
Sendo requerida a declaração de insolvência por um credor, como sucedeu no caso concreto, o devedor é citado para, querendo, deduzir oposição.
 
 
A oposição do devedor à declaração de insolvência pode basear-se, ou na inexistência do facto em que o requerente fundamenta o pedido formulado, ou na inexistência da situação de insolvência.
Desconhecemos o fundamento em que assentou a Oposição da Requerida.
Contudo, tal dado não é relevante para a decisão a proferir.
 
Finda a produção de prova em audiência de discussão e julgamento, o Tribunal profere, de imediato ou no prazo de cinco dias, a sentença, dado o carácter urgente do processo.
 
Nos termos do CIRE, a sentença pode ser de deferimento ou de indeferimento do pedido de declaração de insolvência.
Sendo de indeferimento, os demais credores do devedor não são chamados ao processo, desenrolando-se este, estritamente, entre o devedor e o credor requerente.
Se a sentença for de deferimento do pedido de declaração de insolvência, então sim, os demais credores do devedor são chamados ao processo de insolvência para poderem, querendo, nele reclamar o pagamento dos seus créditos.
 
Considerando a tramitação processual do processo de insolvência, haverá que distinguir, porque relevante para a decisão a proferir, a fase inicial do processo que visa, essencialmente, decidir se o devedor se encontra em situação de insolvência, e a fase posterior de reclamação de créditos.
 
 
 
E na fase inicial do processo de insolvência um Advogado que seja simultaneamente credor do devedor pode assumir a representação do devedor nesse mesmo processo?
 
Não resulta do EOA em vigor uma proibição absoluta de aceitar novo mandato na situação descrita.
A matéria do conflito de interesses é, em primeira linha, uma questão de consciência do próprio Advogado, competindo-lhe ajuizar se, neste caso, a assunção do novo mandato não o impedirá de exercer, de forma livre e sem quaisquer constrangimentos, a sua actividade, conforme exigido pelas normas ínsitas no seu estatuto profissional.
 
A simples circunstância de um cliente ter honorários em atraso não constitui, ipso facto, fundamento que obrigue, do ponto de vista deontológico, o Advogado a recusar a assunção de novo mandato desse mesmo cliente, sob pena de cairmos em situações absurdas e incomportáveis. 
Essa decisão é, antes de mais, uma decisão do próprio Advogado.
 
No caso concreto, e de acordo com os elementos que foram colocados à nossa disposição, não vislumbramos a existência de qualquer conflito de interesses entre a Z e a Requerida.
A Requerida é, efectivamente, devedora da Z, e reconhece-se como tal.
As partes chegaram a acordo quanto à dívida, encontrando-se o mesmo a ser pontualmente comprido.
 
 
Assim, não existindo entre as partes interesses conflituantes, não se poderá falar de “conflito de interesses” entre a Z e a Requerida, nem, consequentemente, de impedimento dos Advogados da Z para a representar no processo em curso.  
 
Nem nesta fase inicial do processo de insolvência se pode dizer que existam, no próprio processo, interesses conflituantes entre os Advogados da Z e a Requerida.
É que, nesta fase, não está em causa a defesa de qualquer interesse próprio da Z, mas tão só os interesses da Requerida que, porventura, pretenderá demonstrar que não está insolvente. O objectivo desta fase inicial do processo de insolvência é estritamente esse.
 
No caso de vir a ser proferida sentença de deferimento do pedido de declaração de insolvência, e pretendendo a Z nele obter o seu pagamento, aí sim já se suscitam questões de conflitos de interesses.
Os Advogados da Z não poderão, nesta hipótese, estar a representar a devedora insolvente quando, nesse mesmo processo, têm interesses próprios a defender.
Tal situação seria, a todos os níveis, incomportável, pondo em crise a dignidade e o prestígio da própria profissão.
 
Portanto, se vier a ser proferida sentença de indeferimento do pedido de declaração de insolvência, a questão do conflito de interesses nem se coloca.
Pois que, neste caso, os credores não são chamados ao processo, desenrolando-se o processo apenas entre a Requerida/devedora e a Requerente/credora.
 
 
Pensamos estarem respondidas as duas primeiras questões, faltando apenas a que está relacionada com a matéria do sigilo profissional.
 
A Z, ou melhor, alguns Advogados da Z terão prestado serviços jurídicos à ora Requerida.
Assim, por força da relação profissional estabelecida entre as partes, todos os factos de que, nesse âmbito, esses Advogados tenham tido conhecimento estão, naturalmente, abrangidos pela esfera de protecção do sigilo profissional por força do disposto no artigo 87º do EOA.
 
O sigilo profissional visa proteger, em primeira linha, a relação de confiança estabelecida entre o Advogado e o seu cliente.
O cliente deve ter confiança absoluta no seu Advogado para lhe poder revelar os factos.
E, no caso concreto, os Advogados da Z continuam a defender os interesses do mesmo cliente, não se vislumbrando em que termos o mandato ora assumido possa por em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional, a que os mesmos estão vinculados.
 
Mesmo na fase posterior do processo, ou seja, aquela em que a Z pode vir reclamar o seu crédito no processo de insolvência, a verdade é que a Z só poderá divulgar os factos de que teve conhecimento por força da relação profissional anteriormente estabelecida com a Requerida nas situações previstas n.º 4 do artigo 87º do EOA, e, portanto, desde que munida de uma autorização prévia.
 
E é este, salvo melhor opinião, o nosso entendimento sobre a questão que nos foi colocada.
 
CONCLUSÕES:
 
A matéria do conflito de interesses é, em primeira linha, uma questão de consciência do próprio Advogado, competindo-lhe ajuizar se a assunção de novo mandato não o impedirá de exercer, de forma livre e sem quaisquer constrangimentos, a sua actividade, conforme exigido pelas normas ínsitas no seu estatuto profissional.
A simples circunstância de um cliente ter honorários em atraso não constitui, ipso facto, fundamento que obrigue, do ponto de vista deontológico, o Advogado a recusar a assunção de novo mandato desse mesmo cliente, sob pena de cairmos em situações absurdas e incomportáveis.
Essa decisão é, antes de mais, uma decisão do próprio Advogado.
No caso concreto, não existe qualquer conflito de interesses quanto ao mandato assumido nos autos pelos Advogados da Z.
Este nosso entendimento pressupõe que a Z não venha, efectivamente, a reclamar no processo de insolvência o seu crédito, pois que, nesta situação, já se suscitam questões de conflitos de interesses, não podendo a Requerida estar representada por Advogados da Z quando, nesse mesmo processo, a Z tem interesses próprios a defender.
 
 
Tal situação seria, a todos os níveis, incomportável, pondo em crise a dignidade e o prestígio da própria profissão.
Na medida em que no processo em curso, os Advogados da Z continuam a defender os interesses do mesmo cliente, não se vislumbra em que termos o mandato ora assumido possa por em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional, a que os mesmo estão vinculados.
Na fase posterior do processo, a da reclamação de créditos, a Z só poderá divulgar os factos de que teve conhecimento por força da relação profissional anteriormente estabelecida com a Requerida nas situações previstas n.º 4 do artigo 87º do EOA e desde que munida de uma autorização prévia.
 
Notifique-se.


 
Lisboa, 2 de Setembro de 2011.
 
O Presidente do Conselho Distrital de Lisboa
 
 
Vasco Marques Correia


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[1] Cfr. Processo de Consulta do C.D.L. n.º 6/02, aprovado em 16.10.2002, e no qual foi relator o Dr. João
Espanha.

Vasco Marques Correia

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