Consulta 37/2011
Consulta n.º 37/2011
Requerente:
Assuntos:
• Conflito de Interesses
Consulta
Por requerimento que deu entrada nos serviços deste Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados em 7 de Setembro de 2011, com o nº -, veio o Consulente solicitar esclarecimento sobre se, tendo sido testemunha de determinada pessoa em processo crime que correu termos nos Juízos Criminais de Lisboa, poderá agora, tendo por base os mesmos pressupostos, patrocinar a mesma cliente (na qualidade de Autora) em processo civil a intentar contra os arguidos
Parecer
É sabido que a matéria do conflito de interesses, regida estatutariamente pelo art. 94º do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor (doravante EOA), constitui um corolário do princípio da independência, da confiança e da dignidade da profissão[1]. Nesta medida, a referida norma cumpre uma tripla função:
a) Defender a comunidade em geral, e os clientes de um qualquer outro Advogado em particular, das actuações menos lícitas e/ou danosas por parte de um Colega, conluiando ou não com algum ou alguns dos seus clientes; e/ou
b) Defender o Advogado da possibilidade de sobre ele recair a suspeita de actuar, no exercício da sua profissão, visando qualquer outro interesse que não seja a defesa intransigente dos interesses e direitos dos seus clientes;
c) Defender a própria profissão do anátema que sobre ela recairia na eventualidade de se generalizarem o género de situações descritas nos dois anteriores parágrafos. [2]
Decorre, pois assim, da norma jurídica em apreço que:
“1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.
(…)
6 - Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.”
No que à presente questão diz respeito, a “chave” para a decisão parece-nos residir na definição do que constitua “uma questão em que” o Advogado “já tenha intervindo em qualquer outra qualidade”.
Desde logo, julgamos que quanto ao conceito de “questão” não pretendeu o legislador reduzir as situações de potenciais conflitos de interesses somente a processos judiciais[3]. Aquilo que, ao invés, julgamos que a norma pretende evitar será a ocorrência de situações em que um Advogado que tenha intervindo numa determinada qualidade, que não a de Advogado e em representação de determinados interesses - sejam eles interesses pessoais ou de terceiros, venha a assumir em momento posterior o patrocínio de alguém cujos interesses sejam (potencialmente ou em concreto) conflituantes com os anteriores.
No presente caso, o Consulente, terá prestado depoimento como testemunha em processo crime interposto por quem quer agora recorrer ao seu patrocínio. Presume-se que a matéria de facto seja, na sua essência, a mesma. Como ainda é dito pelo Consulente que os réus serão quem foi arguido no anterior processo crime.
Terá o Advogado intervindo numa outra qualidade? Efectivamente sim, como testemunha em outro processo judicial (de natureza criminal). Como ainda, tal como é avançado pelo Consulente, a questão (no sentido de realidade fáctica) que dará origem ao processo civil será a mesma que terá sido discutida no anterior processo crime.
Apesar de, no plano literal, a factispécie legal aparentemente estar preenchida, o que não conseguimos discernir é a efectiva existência de algum conflito de interesses (latente ou concreto) entre a assumida qualidade de testemunha num processo já findo e a assunção da qualidade de Advogado noutro processo. É verdade que uma testemunha, em sede de processo penal, está obrigada a dizer a verdade e a colaborar para a descoberta da verdade. Mas destes importantes princípios processuais não se pode retirar a conclusão de que de tal dever geral nasce um conflito com os interesses que agora o Consulente quer patrocinar[4], isto é, e por outras palavras, que nos possa levar a concluir que o Consulente, exercendo o patrocínio na acção judicial que irá intentar, pretenderá agir por conta de quaisquer outros interesses que não seja a defesa intransigente dos interesses e direitos da sua cliente ou que esteja a agir por conta de outros interesses conflituantes com aqueles que pretende patrocinar.
Sem prejuízo do pensamento gizado, julgamos ser importante tecer alguns comentários finais. O facto de, em nossa opinião, não existir um conflito de interesses objectivo, não poderá fazer esquecer ou ignorar a eventualidade de que o consulente tenha, de alguma forma, prestado depoimento no processo penal e aí dado a conhecer factos nos autos que possam ser contrários à defesa dos interesses da pessoa que pretende agora patrocinar[5]. É verdade que o Advogado será mandatário na acção a propor – não podendo aí depor como testemunha se realmente vier a aceitar o patrocínio judicial. Contudo, existe um imperativo que impende sobre o Advogado de formular um juízo de consciência prévio sobre se alguma coisa não terá dito que possa, futuramente, minar a relação de confiança existente com o seu cliente. A tal está obrigado, não só pelo princípio da confiança, sobre o qual assenta a relação Advogado-Cliente, como ainda pelo princípio da independência estabelecido no art. 84º do EOA.
Conclusão
1. Nos termos do art. 94, nº1 do EOA, constitui obrigação do Advogado “recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade (…);
2. O que a norma pretende evitar será a ocorrência de situações em que alguém que tenha intervindo numa determinada qualidade, que não a de Advogado e em representação de determinados interesses - sejam eles interesses pessoais ou de terceiros, venha a assumir em momento posterior o patrocínio como Advogado de alguém cujos interesses sejam (potencialmente ou em concreto) conflituantes com os anteriores;
Não obstante,
3. Não vislumbramos a existência de algum conflito de interesses (latente ou concreto) entre a assunção por alguém da qualidade de testemunha num processo crime (já findo) e a posterior assunção da qualidade de Advogado em representação de pessoa que foi parte nesse mesmo processo (findo), em processo cível a interpor – ainda que se discutam os mesmos factos.
4. O facto de não existir um conflito de interesses objectivo não exime o Consulente de, caso tenha efectivamente prestado depoimento nesse outro processo, formular um juízo de consciência prévio sobre se alguma coisa não terá dito como testemunha que possa, futuramente, minar a relação de confiança existente com o seu cliente
Lisboa, 13 de Outubro de 2011
(O Assessor Jurídico do CDL)
Rui Souto
Concordo e homologo o parecer anterior, nos preciso termos e limites aí fundamentados,
Lisboa, 13 de Outubro de 2011
(O Presidente do CDL)
Vasco Marques Correia
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[1] Cfr Consulta nº 12/08 do Conselho Distrital de Lisboa, na qual foi relator o Dr Jaime Medeiros.
[2] Cfr Consulta nº 6/02, na qual foi relator o Dr João Espanha.
[3]Isto é, haveria conflito de interesses quando um Advogado, no mesmo processo judicial tivesse intervindo como defensor de outros interesses, situação que, na maior parte dos casos, cairá sobre a segunda parte da norma
[4] A conclusão é diferente nos casos em que um Advogado tendo sido testemunha num processo judicial pretende passar a assumir, nesse mesmo processo, o patrocínio de uma das partes. Existe vária jurisprudência que se opõe a tal possibilidade – por razões relacionadas com o decoro e dignidade do exercício da profissão,
[5] Sublinhe-se aqui que se trata esta de uma situação meramente hipotética – até porque se desconhece se o Consulente foi efectivamente ouvido nos autos já findos.
Rui Souto
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