Pareceres do CRLisboa

Consulta 43/2011

 

Consulta n.º 43/2011

Requerente:

Assunto: Conflito de interesses – artigo 94º do EOA

 

Questão

 

Mediante requerimento recepcionado em 21 de Outubro de 2011 (entrada com o número de registo -), o Senhor Advogado, Dr. A, veio solicitar ao Conselho Distrital de Lisboa a emissão de parecer quanto a uma situação de eventual conflito de interesses.

 

O enquadramento factual, tal como exposto pelo Senhor Advogado Consulente é, em síntese, o seguinte:

Durante cerca de 15 anos, o Senhor Advogado Consulente patrocinou os interesses da Sociedade denominada B, S.A.
A 2 de Dezembro de 2008, os accionistas da referida sociedade alienaram a totalidade do capital social a uma sociedade de direito norte-americano.
 Desde então, o Senhor Advogado Consulente deixou de ser Advogado dessa sociedade, a qual passou a ser patrocinada por outro escritório.
 

Após a mencionada data, o Senhor Advogado Consulente passou a patrocinar os interesses de uma outra Sociedade, esta denominada C, S.A.
Esta Sociedade, apesar de ter um nome idêntico à anterior, não pertence ao mesmo grupo mas sim aos antigos accionistas da B, S.A., que autorizaram a manutenção de tal denominação.
Sucede que estas sociedades entraram em colisão de interesses, na sequência do incumprimento de dois contratos entre si celebrados em Dezembro de 2008, que se encontravam em execução.
Atento o conflito gerado entre as partes, pretende agora o Senhor Advogado requerente, em representação da C, instaurar uma providência cautelar contra a B.

 

Considerando a factualidade exposta, vem o Senhor Advogado Consulente solicitar parecer quanto à questão de saber se a assunção deste novo mandato é geradora de alguma situação de conflito de interesses, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA).

 

Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa

 

A questão colocada à apreciação deste Conselho Distrital subsume-se a uma “questão de carácter profissional” nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 50º do EOA, que define a competência material do Conselho, pelo que há que proceder à emissão de parecer quanto à questão colocada.


É o que faremos de seguida.


 “A Deontologia é o conjunto de regras ético-jurídicas pelas quais o advogado deve pautar o seu comportamento profissional e cívico. (...) O respeito pelas regras deontológicas e o imperativo da elevada consciência moral, individual e profissional, constitui timbre da advocacia.” – António Arnaut, Iniciação à Advocacia – História – Deontologia – Questões Práticas, p. 49 e 50, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996.


O Advogado, no exercício da sua profissão está vinculado ao cumprimento escrupuloso de um conjunto de deveres consignados no Estatuto da Ordem dos Advogados e ainda àqueles que a lei, os usos, os costumes e as tradições profissionais lhe impõem.

O cumprimento escrupuloso e pontual de todos esses deveres garante a dignidade e o prestígio da profissão.


O Título III do Estatuto da Ordem dos Advogados trata da “Deontologia Profissional”, fixando no Capítulo I, os Princípios Gerais e abordando no Capítulo II, a questão das relações entre o Advogado e o cliente.

É neste último Capítulo e, mais especificamente no seu artigo 94º, que se encontra regulado o denominado “Conflito de Interesses”.

Aí estão plasmadas várias situações em que existe uma situação de incompatibilidade para o exercício do patrocínio.

 

Esta norma tem em vista evitar a existência de conflito de interesses na condução do mandato por Advogado e assume a uma tripla função[1]:

a)  Defender a comunidade em geral, e os clientes de um qualquer Advogado em particular, de actuações menos lícitas e/ou danosas por parte de um Colega, conluiado ou não com algum ou alguns dos seus clientes;

b)  Defender o próprio Advogado da possibilidade de, sobre ele, recair a suspeita de actuar, no exercício da sua profissão, visando qualquer outro interesse que não seja a defesa intransigente dos direitos e interesses dos seus clientes.

c)  Defender a própria profissão, a Advocacia, do anátema que sobre ela recairia na eventualidade de se generalizarem este tipo de situações.

 

O Estatuto da Ordem dos Advogados, em matéria de conflito de interesses, não contém uma proibição geral de patrocínio contra quem foi anteriormente seu cliente, mas apenas uma proibição de patrocínio:

 

Contra quem seja por si patrocinado noutra causa pendente.
 Em causas em que já tenha intervindo ou que sejam conexas com outras em que tenha  representado a parte contrária.
 Em causas que possam colocar em crise o sigilo profissional relativamente aos    assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem  vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

 

Da factualidade descrita pelo Senhor Advogado Consulente, entendemos que está em causa a correcta interpretação do disposto na 2ª parte do n.º 1 do artigo 94º do EOA, que, por facilidade de raciocínio, passamos a transcrever:

“ 1. O Advogado deve recusar o patrocínio de uma questão (…) conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.”


No caso concreto, o que está na origem do actual conflito gerado entre as partes, é, de acordo com a informação que nos foi transmitida, o (in) cumprimento de dois contratos celebrados entre as partes em Dezembro de 2008.


Quanto a esta questão, refere o Senhor Advogado Consulente que a mesma não é conexa com qualquer outra em que haja sido interveniente em representação da B, sua antiga cliente.


Mas este elemento não é suficiente para se poder concluir que a assunção do novo mandato em causa não é, de per si, geradora de conflito de interesses.


É também essencial que o Senhor Advogado Consulente não tenha tido qualquer intervenção, directa ou indirecta, nos contratos celebrados entre a sua antiga cliente e a sua actual cliente, e que ora as opõe.


É, assim, essencial e decisivo para a questão que nos encontramos a analisar que o Senhor Advogado Consulente, na qualidade de Advogado da B, nunca tenha participado, directa ou indirectamente, na negociação dos contratos, nunca tenha prestado qualquer tipo de aconselhamento ou orientação jurídicas quanto à matéria dos contratos, não tenha participado na elaboração e redacção, total ou parcial, dos contratos, ou seja, grosso modo, que nunca tenha tido, conforme já referimos, qualquer intervenção (directa ou indirecta) nos mencionados contratos.


Só assim, verificados, cumulativamente, os dois elementos, diremos que não existirá – e, frise-se, objectivamente – um dever de recusar o patrocínio.

Mas, naturalmente, a questão do conflito de interesses numa situação como a que ora nos ocupa nunca pode ser vista ou resumida à luz de um juízo baseado em premissas puramente objectivas.


Este Conselho Distrital entende – e já se pronunciou anteriormente, nomeadamente, na Consulta nº 12/2008, e mais recentemente na Consulta n.º 39/2011 – que a matéria de conflito de interesses é, em primeira linha, uma questão de consciência do Advogado.

Cabe a cada Advogado formular um juízo de consciência sobre se a relação de confiança que estabeleceu com um seu antigo cliente lhe permite, livremente e sem constrangimentos, assumir agora um patrocínio contra ele.


E desde já se diga que a repugna de um Advogado em litigar contra quem foi seu antigo cliente deve ser entendida como causa justificante da recusa de patrocínio – mesmo que tal não resulte de norma expressa.

Outra conclusão não se poderia tirar dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão.


Considerando o exposto, entendemos que só o Senhor Advogado Consulente estará em posição de avaliar:

(i) se é inequívoco que nunca teve qualquer intervenção no assunto que lhe foi agora cometido pela nova cliente;

(ii) se é inequívoco que este assunto não é conexo com qualquer outro em que tenha intervindo ou tomado conhecimento em representação da sua antiga cliente;

(ii) se está convicto que com aceitação do novo mandato não sentirá a sua independência afectada;

(iii) se está convicto que o exercício do novo mandato não colocará em crise o sigilo profissional relativamente aos assuntos da sua antiga cliente;

(iv) e se está convicto que do conhecimento dos assuntos da sua antiga cliente não resultam vantagens ilegítimas ou injustificadas para a nova cliente.


Entendemos que, verificando-se uma qualquer das referidas circunstâncias, deverá o Senhor Advogado Consulente recusar a aceitação do novo mandato.


Permitimo-nos ainda referir o seguinte.


Se feita esta avaliação (subjectiva), o Senhor Advogado Consulente aceitar agir em juízo contra a sua antiga cliente, ainda assim, se a questão de saber se o Senhor Advogado Consulente tomou ou não anteriormente conhecimento do assunto que lhe foi cometido pela actual cliente vier após a assunção do mandato, e, nomeadamente, no decurso do processo judicial, a ser uma questão controvertida para a sua antiga cliente, ou, até mesmo, para a actual cliente, deverá o Senhor Advogado Consulente renunciar ao mandato entretanto assumido.

A dignidade e o prestígio da Advocacia assim o exigem.


CONCLUSÕES:  

 

A matéria do conflito de interesses, regida estatutariamente pelo teor do artigo 94º do EOA resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão e constitui expressa manifestação do princípio geral estatuído no artigo 84º do E.O.A., segundo o qual o “ Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer, pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros”.


O Estatuto da Ordem dos Advogados, em matéria de conflito de interesses, não contém uma proibição geral de patrocínio contra quem foi anteriormente seu cliente, mas apenas uma proibição de patrocínio:

Contra quem seja por si patrocinado noutra causa pendente.
Em causas em que já tenha intervindo ou que sejam conexas com outras em que tenha representado a parte contrária.
Em causas que possam colocar em crise o sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.


Se a factologia que constitui a causa de pedir da providência cautelar a instaurar não é conexa com qualquer outra questão em que o Senhor Advogado Consulente haja sido interveniente em representação da B, sua antiga cliente, e se o Senhor Advogado Consulente não teve qualquer intervenção, directa ou indirecta, nos contratos celebrados entre a sua antiga cliente e a C, a sua actual cliente, diremos que não existirá – e frise-se, objectivamente – um dever de recusar o patrocínio.


Mas, naturalmente, a questão do conflito de interesses numa situação como a que ora nos ocupa nunca pode ser vista ou resumida à luz de um juízo baseado em premissas puramente objectivas.

A matéria de conflito de interesses é, em primeira linha, uma questão de consciência do Advogado.

 Cabe a cada Advogado formular um juízo de consciência sobre se a relação de confiança que estabeleceu com um seu antigo cliente lhe permite, livremente e sem constrangimentos, assumir agora um patrocínio contra ele.


Assim, só o Senhor Advogado Consulente estará em posição de avaliar:

(i) se é inequívoco que nunca teve qualquer intervenção no assunto que lhe foi agora cometido pela nova cliente;

(ii) se é inequívoco que este assunto não é conexo com qualquer outro em que tenha intervindo ou tomado conhecimento em representação da sua antiga cliente;


(ii) se está convicto que com aceitação do novo mandato não sentirá a sua independência afectada;

(iii) se está convicto que o exercício do novo mandato não colocará em crise o sigilo profissional relativamente aos assuntos da sua antiga cliente;

(iv) e se está convicto que do conhecimento dos assuntos da sua antiga cliente não resultam vantagens ilegítimas ou injustificadas para a nova cliente.


Entendemos que, verificando-se uma qualquer das referidas circunstâncias, deverá o Senhor Advogado Consulente recusar a aceitação do novo mandato.


 Se feita esta avaliação (subjectiva), o Senhor Advogado Consulente aceitar agir em juízo contra a sua antiga cliente, ainda assim, se a questão de saber se o Senhor Advogado Consulente tomou ou não anteriormente conhecimento do assunto que lhe foi cometido pela actual cliente vier após a assunção do mandato, e, nomeadamente, no decurso do processo judicial, a ser uma questão controvertida para a sua antiga cliente, ou, até mesmo, para a actual cliente, deverá o Senhor Advogado Consulente renunciar ao mandato entretanto assumido.

 

Notifique-se.


Lisboa, 26 de Outubro de 2011.

 

A Assessora Jurídica do C.D.L.

 

Sandra Barroso

 

Concordo e homologo o despacho anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

 

Lisboa, 26 de Outubro de 2011.

 

O Presidente do Conselho Distrital de Lisboa  

 

Vasco Marques Correia

 

[1] Cf. Processo de Consulta do C.D.L. n.º 6/02, aprovado em 16.10.2002, e no qual foi relator o Senhor Advogado, Dr. João Espanha.

Sandra Barroso

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