Pareceres do CRLisboa

Consulta nº 19/2013

 
Consulta n.º 19/2013
 
Assunto:        
·         Legitimidade da escusa para depor – Artigos 417º n.ºs 3 al. c) e 4 e 497º n.º 3 do Código de Processo Civil e Artigo 87º do EOA.
 
Questão
 
O Exmo. Senhor Juiz de Direito da Secção Única do Tribunal Judicial do - , veio, nos termos e para os efeitos do disposto nos números 2 e 4 do artigo 135º do Código de Processo Penal, aplicável ao processo civil ex vi artigo 417º n.º 4 do Código de Processo Civil, solicitar a pronúncia do Conselho Distrital de Lisboa quanto à (i) legitimidade da escusa para depor apresentada pelo Senhor Advogado Dr. A.
 
O Senhor Dr. A foi arrolado como testemunha pela Ré no processo de divórcio litigioso pendente naquele Tribunal sob o n.º -, para prestar depoimento à matéria de facto vertida nos quesitos 1º, 2º, 3º, 14º, 17º, 18º, 19º, 21º, 26º, 27º, 34º, 35º, 37º, 44º, 48º e 53º da Base Instrutória.
Chamado a depor, o Senhor Dr. A escusou-se a prestar depoimento, por entender que os factos aos quais o seu depoimento é pretendido estão abrangidos pelo dever de sigilo.
 
É, portanto, neste contexto que é solicitada a pronúncia do Conselho Distrital de Lisboa.
 
Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa
 
A existência da obrigação de segredo profissional impede o Advogado de revelar factos sigilosos e, ou, os documentos onde esses mesmos factos possam estar contidos, excepto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Distrital respectivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados e pelo artigo 4º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional.
 
 
Ainda que dispensado nos termos referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional. O Advogado é, pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade activa para solicitar, se assim o entender, dispensa do dever segredo.
 
As leis processuais penal e civil, porém, consagram um regime de excepção. De harmonia com este regime, que será o relevante no caso ora em apreço, a regra continua a ser a de o Advogado poder (e, à luz do EOA, “dever”) escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo dever de segredo profissional. Deduzida a escusa perante o Juiz ou perante a autoridade judiciária que presidir ao acto, poderão suscitar-se dúvidas, que deverão ser fundadas, acerca da legitimidade da invocação do sigilo profissional e da escusa em depor que o mesmo fundamenta – cfr. n.º 2 do artigo 135º do CPP. Quando tal acontecer, como no caso vertente, o Juiz decide sobre a legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cfr. n.º 4 do artigo 135º do CPP.
 
Nesta sede, o que terá de se aferir é se o Advogado está ou não a invocar correctamente o dever de segredo profissional, o que implica que os factos sobre os quais se pretende que venha a depor deverão constituir matéria abrangida no âmbito do sigilo.
 
Cumprirá, pois, indagar se os factos acerca dos quais deverá incidir o pretendido depoimento do Senhor Advogado Dr. A se deverão ter por abrangidos pela esfera de protecção do sigilo profissional.
 
Vejamos então.
 
Nunca é de mais referir o carácter fundamental, para não dizer, verdadeiramente basilar, que a obrigação de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia.
 
Mais do que uma condição para o seu desempenho é, sobretudo, um traço essencial da sua própria existência.
 
 
Sem o segredo profissional erigido em regra de ouro não existe, nem pode existir, advocacia. Assim o tem entendido a lei e a própria jurisprudência da Ordem dos Advogados.
 
Como se tem escrito, sempre que os órgãos desta Ordem são chamados a pronunciar-se sobre os fundamentos e o alcance do instituto, se ao Advogado não fosse reconhecido o direito de guardar para si, e só para si, o conhecimento de tudo quanto o cliente, directamente ou por via de terceiros, lhe confiou, ou não fosse obrigado a reservar a informação que obteve no exercício do mandato, então não haveria autêntica advocacia.
 
O segredo profissional é a blindagem normativa, a garantia legal inamovível contra as tentações de se obter confissão por interposta pessoa e contra a violação do direito à intimidade. É a garantia de existência de uma advocacia que, para ser autêntica, tem de ser livre e independente.[1]
 
Aliás, e bem a propósito, o Dr António Arnaut, ilustríssimo Advogado, frisa esta ideia por nós também partilhada, ao escrever que “O dever de guardar segredo profissional é uma regra de ouro da Advocacia e um dos mais sagrados princípios deontológicos. Foi sempre considerado honra e timbre da profissão, condição sine qua non da sua plena dignidade. O cliente, ou simples consultante, deve ter absoluta confiança na discrição do Advogado para lhe poder revelar toda a verdade, e considerá-lo um «sésamo» que nunca se abre.”[2]
 
Existem, segundo entendimento já perfilhado pelo Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados[3], três grandes ordens de razões que estão na origem da consagração estatutária do dever (que é ao mesmo tempo direito) do advogado guardar segredo profissional sobre factos e documentos dos quais tome conhecimento no exercício da profissão:
 
a)     A indispensabilidade de tutelar e garantir a relação de confiança entre o advogado e o cliente.
b)     O interesse público da função do advogado enquanto agente activo da administração da justiça.
c)     A garantia do papel do advogado na composição extrajudicial de conflitos, contribuindo para a paz social.
 
Assim, dispõe o artigo 87º do EOA, sob a epígrafe “Segredo Profissional”, o seguinte:

“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o Bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamento.
5 - Os actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua actividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.
8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração”.
 
Em primeiro lugar, preceitua esta norma, no seu número 1, que “O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços (...)”.
Com efeito, sob esta fórmula encontra-se aquela que é a regra geral do instituto jurídico-deontológico que ora analisamos. Pode até dizer-se que, em certa medida, as demais regras previstas nas alíneas da mesma são sobretudo explicitações ou pormenorizações daquela, que terão sido incluídas no EOA para salientar situações mais marcantes ou de maior dificuldade de interpretação.
 
Traçadas as linhas gerais do regime legal em vigor, haverá agora que proceder à subsunção dos factos à lei.
 
A título preliminar refira-se que os elementos que foram colocados à nossa disposição pelo Tribunal não nos permitiram só por si concluir como rigor, no caso vertente, pela existência ou não de sigilo profissional.
 
 
Em sequência, procedeu este Conselho, nos termos legais, às devidas averiguações junto do Senhor Advogado.
 
Dos esclarecimentos prestados pelo Senhor Advogado – cujos fundamentos não podemos aqui revelar sob pena de estarmos a violar o sigilo profissional a que também estamos adstritos, por força do disposto no artigo 87º n.º 1, alínea b) do EOA – conclui-se, sem margem para dúvidas, que o Senhor Advogado teve conhecimento dos factos vertidos nos quesitos 1º, 2º, 3º, 14º, 17º, 18º, 19º, 21º, 26º, 35º, 37º, 44º e 53º da Base Instrutória, no exercício da profissão e por causa da sua qualidade de Advogado.
Logo, forçoso é concluir que o Senhor Advogado está, quanto a eles, obrigado a sigilo, por força da norma legal contida no n.º 1 do artigo 87º do EOA, não podendo, por conseguinte, sobre eles livremente depor, sob pena de, inclusive, poder incorrer em infracção disciplinar e mesmo criminal.
 
Já quanto aos quesitos 27º, 34º e 48º da Base Instrutória, entendemos que o Senhor Advogado não está obrigado a sigilo, uma vez que o depoimento a prestar não envolverá a divulgação de qualquer facto em si mesmo sigiloso.
Contudo, este nosso entendimento pressupõe que o depoimento a prestar se restinga à expressão literal dos factos vertidos nos mencionados quesitos.
 
Pelo exposto, e sem necessidade de maiores ou melhores considerações, entendemos que a escusa para depor apresentada pelo Senhor Advogado Dr. A apenas é legítima, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135º n.ºs 1, 2 e 4 do CPP, quanto aos quesitos 1º, 2º, 3º, 14º, 17º, 18º, 19º, 21º, 26º, 35º, 37º, 44º e 53º da Base Instrutória.
 

CONCLUSÕES:          
 
A existência do dever de segredo profissional impede o Advogado de revelar factos sigilosos e, ou, os documentos onde esses mesmos factos possam estar contidos, excepto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Distrital respectivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados e pelo artigo 4º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional.
 
Ainda que dispensado, nos termos referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional. O Advogado é, pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade activa para solicitar, se assim o entender, dispensa do dever de guardar segredo.
 
Porém, as leis processuais penal e civil consagram um regime de excepção.
 
De harmonia com este regime, a regra continua a ser a de o Advogado poder (e, à luz do EOA, “dever”) escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo dever de segredo profissional.
 
Deduzida a escusa perante o Juiz ou perante a autoridade judiciária que presidir ao acto, poderão suscitar-se dúvidas, que deverão ser fundadas, acerca da legitimidade da invocação do sigilo profissional e da escusa em depor que o mesmo fundamenta – cfr. n.º 2 do artigo 135º do Código de Processo Penal aplicável ao Processo Civil ex vi artigo 497º n.º 3 do Código de Processo Civil.
 
Quando tal acontecer, como no caso vertente, o Juiz decide sobre a legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cfr. n.º 4 do artigo 135º do CPP ex vi artigo 497º n.º 3 do CPC.
 
 
No caso vertente, os elementos que foram colocados à nossa disposição pelo Tribunal não nos permitiram só por si concluir com rigor pela existência, ou não, de sigilo profissional.
 
Em sequência, procedeu este Conselho, nos termos legais, às devidas averiguações junto do Senhor Advogado.
 
Dos elementos que instruem o pedido ora em análise, conclui-se, sem margem para dúvidas, que o depoimento a prestar pelo Senhor Advogado Dr. A à matéria de facto vertida nos quesitos 1º, 2º, 3º, 14º, 17º, 18º, 19º, 21º, 26º, 35º, 37º, 44º e 53º da Base Instrutória recairá sobre factos conhecidos no exercício da profissão e por causa da sua qualidade de Advogado.
 
 Assim sendo, forçoso é concluir que o Senhor Dr. A está, quanto a eles, obrigado a sigilo, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 87º do EOA, não podendo, por conseguinte, sobre eles livremente depor, sob pena de, inclusive, poder incorrer em infracção disciplinar e mesmo criminal.
 
 Pelo exposto, e sem necessidade de maiores ou melhores considerações, entendemos que a escusa para depor apresentada pelo Senhor Advogado Dr. A é legítima, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135º n.ºs 1, 2 e 4 do CPP, quanto aos mencionados quesitos.
 
 Já quanto aos quesitos 27º, 34º e 48º da Base Instrutória, entendemos que o Senhor Advogado não está obrigado a sigilo, uma vez que o depoimento a prestar não envolverá a divulgação de qualquer facto em si mesmo sigiloso.
 
 Contudo, este nosso entendimento pressupõe que o depoimento a prestar se restinga à expressão literal dos factos vertidos nos mencionados quesitos.
 

 
Lisboa, 26 de Setembro de 2013.
 
A Assessora Jurídica do C.D.L.
 
 
Sandra Barroso
 
 
Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,
 
Notifique-se.
 
Lisboa, 26 de Setembro de 2013.
 
 
O Vogal do Conselho Distrital de Lisboa
(por delegação de poderes de 20 de Janeiro de 2011)
 
 
Paulo de Sá e Cunha
 

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[1] Parecer do Conselho Distrital de Lisboa nº 2/02, aprovado em 6.2.2002, e no qual foi relator o Dr. José
Mário Ferreira de Almeida.
[2] “Introdução à Advocacia: História – Deontologia, Questões Práticas”, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996,
p. 65
[3] Parecer do Conselho Distrital de Lisboa nº 02/01, no qual foi relator o Dr José Ferreira de Almeida, aprovado em sessão plenária no dia 13.03.2003

Sandra Barroso

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