Pareceres do CRLisboa

Consulta nº 32/2013

 
Consulta Nº 32/2013

Assunto:        
Incidente processual de quebra do sigilo profissional – Artigo 135º do Código de Processo Penal e Artigo 87º do EOA.
 
Questão
 
Vem o Exmo. Juiz de Instrução do - Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de - solicitar ao Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados a emissão de parecer, nos termos e para os efeitos do disposto nos números 3 e 4 do artigo 135º do Código de Processo Penal (doravante CPP).
 
O incidente de quebra do sigilo profissional foi suscitado no âmbito do processo de inquérito pendente na -  Secção do Departamento de Investigação e Acção Penal de -  , sob o n.º - , quanto à Senhora Advogada, Dra. A.
De facto, inquirida na qualidade de testemunha nos mencionados autos, a Senhora Advogada escusou-se a depor, invocando sigilo profissional.
 
Face à escusa apresentada, o Senhor Magistrado do Ministério Público remeteu os autos ao Tribunal de Instrução Criminal para apreciação e decisão do incidente.
 
Em sequência, e tendo concluído que a Senhora Advogada interveio nos factos em investigação nos autos na qualidade de Advogada, o Juiz de Instrução julgou a escusa legítima e requereu ao Tribunal da Relação de Lisboa que ordenasse o seu depoimento com quebra do sigilo profissional.
 
 
Recebidos os autos no Tribunal da Relação de - , concluiu o Senhor Juiz Desembargador que não foi dado cumprimento ao disposto no artigo 135º, n.º 4 do CPP, ou seja, e conforme é referido no despacho proferido a fls. 94 dos autos, que não foi ouvida a Ordem dos Advogados acerca do “pretendido levantamento do sigilo profissional”, tendo, em sequência, ordenada a devolução dos autos ao Tribunal de Instrução Criminal.
 
É, portanto, neste contexto que surge o pedido que nos é agora dirigido pelo Tribunal de Instrução Criminal.
 
Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa   
 
Antes de mais, permitimo-nos fazer aqui uma pequena precisão quanto ao regime legal do incidente de quebra do sigilo profissional.
 
O artigo 135º do CPP contempla duas hipóteses, a prevista no n.º 2 e a prevista no n.º 3.
 
A hipótese prevista no n.º 2 contende com a legitimidade da escusa: isto é, saber se o Advogado tem ou não direito à escusa, saber se existe ou não sigilo.
Cabe à autoridade judiciária de 1ª instância ajuizar sobre se o Advogado está ou não a invocar correctamente que o objecto do seu depoimento é matéria sigilosa que lhe imponha o dever de silêncio e, consequentemente, da legitimidade da escusa.
 
No caso vertente, encontrando-se o processo na fase de Inquérito, coube ao Juiz de Instrução decidir quanto à legitimidade da escusa.
 
Por estar em causa o depoimento sobre factos conhecidos no exercício da profissão, o Juiz de Instrução concluiu, sem quaisquer dúvidas, pela legitimidade da escusa invocada pela Senhora Advogada Dra. A.
Não se tendo suscitado dúvidas quanto à questão da legitimidade, não se impunha a audição da Ordem dos Advogados, nos termos do disposto no artigo 135º, n.ºs 2 e 4 do CPP.
 
Outra hipótese, distinta, é a prevista no n.º 3 do mesmo artigo, residindo no poder dever de fazer cessar o legítimo direito à escusa por se entender subsistirem valores superiores ao dever de sigilo. Ou seja, o Advogado pode ser solicitado a quebrar o segredo por haver valores conflituantes de dignidade superior ao dever de sigilo, mas essa ponderação é já da competência do tribunal superior – no caso o Tribunal da Relação de - – àquele onde o incidente tiver sido suscitado.
E, nos termos das disposições conjugadas dos n.ºs 3 e 4 do artigo 135º do CPP, o depoimento com quebra do sigilo profissional é ordenado (ou não) pelo tribunal superior, depois de, nessa sede, ser ouvida a Ordem dos Advogados, – in casu, o Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados.
 
O que significa que, com rigor, a pronúncia quanto à existência de um interesse superior aos interesses protegidos pelo dever de sigilo – que é o que, efectivamente, está em causa no caso vertente –, deveria ter-nos sido solicitada pelo Tribunal de Relação de - e não pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal.
 
Sem prejuízo do que antecede, não deixaremos de emitir a solicitada pronúncia, o que faremos de seguida.  
 
Nunca é de mais referir o carácter fundamental e verdadeiramente basilar que a obrigação de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia.
Mas não só.
Trata-se de dever de primordial importância para o reconhecimento da plenitude de um Estado do Direito Democrático como consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.
 
É que o Estado de Direito Democrático não só exige um poder judicial independente, como também tem ainda subjacente o exercício de uma Advocacia livre, independente e responsável. Advocacia que, para ser exercida desta forma, terá necessariamente de, nas relações estabelecidas entre os Advogados e os seus clientes, assentar num elevadíssimo grau de confiança.
 
Contudo, exorbitando o estrito âmbito da relação Advogado – cliente, o segredo profissional é um valor exigido pela própria ordem social e vertido em forma de lei no Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor (Lei n.º 15/2005, 26 de Janeiro).
E isto porque o sigilo tem frequentemente outros destinatários ou beneficiários para além do cliente no âmbito dos serviços a este prestados, devendo o Advogado ser, nas suas múltiplas relações sociais e profissionais, merecedor de confiança e isenção. Não apenas o Advogado individualmente considerado, como profissional liberal que é, mas como membro de uma classe profissional.
 

Por isso, convirá realçar de forma plenamente convicta que estamos perante um dever com carácter social ou de ordem pública e não de natureza meramente contratual.
 
Mais do que um dever do próprio profissional, “o sigilo é um dever de toda a classe, é condição da plena dignidade do Advogado bem como da Advocacia”[1].
 
Mas, tal não significa que o dever de guardar sigilo seja absoluto, porquanto existem casos em que se justificará, em homenagem a valores de superior dignidade, o levantamento da obrigação de guardar sigilo profissional. Se tal não acontecesse, em situações obviamente excepcionais, elementares princípios de Justiça correriam o risco de ser postergados.
 
Assim, e para o efeito, estabelece a lei dois mecanismos que se diferenciam desde logo a propósito do sujeito que tem legitimidade para impulsionar o levantamento do segredo profissional:
A dispensa de sigilo profissional, a qual é solicitada pelo Advogado vinculado a esse dever ao Presidente do Conselho Distrital competente, sendo concedida, caso se verifiquem preenchidos os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados;
O incidente processual de quebra de sigilo profissional (previsto no artigo 135º do Código de Processo Penal[2]), tendo legitimidade para o desencadear qualquer das partes em juízo ou a autoridade judiciária.
 
A decisão da quebra de sigilo é tomada, com prévia audição da Ordem dos Advogados, que recairá, inevitavelmente sobre o preenchimento, ou não, das condições de que depende a quebra do sigilo profissional. O mesmo é dizer, sobre a ponderação acerca da existência de um interesse superior aos interesses que se visa proteger com o dever de sigilo profissional.
 
Em suma, para que se possa concluir pela existência de um interesse preponderante haverá que verificar, em concreto e tal como o pedido de quebra se encontrar fundamentado, se o depoimento do Advogado com quebra do sigilo se reveste de absoluta necessidade, isto é, de imprescindibilidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser indispensável (ou seja, imprescindível, e não meramente útil) face ao objectivo de prova visado; de essencialidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser absolutamente determinante; e de exclusividade, pressupondo este requisito a inexistência de qualquer outro meio de prova que não o depoimento do obrigado ao sigilo.
 
Desde logo, no caso concreto, não são enunciados de forma concreta e precisa os factos a que o depoimento da Senhora Advogada A é pretendido, apenas se referindo que o depoimento é pretendido “no que toca aos factos exarados na queixa apresentada por X ”.
 
Por outro lado, para que seja quebrado o dever de sigilo profissional, será, a nosso ver, sempre exigível uma situação de total excepcionalidade e de absoluta necessidade da audição do Advogado em causa sobre os factos de que tomou conhecimento no exercício da profissão.
 
O que não se manifesta de forma nenhuma na fundamentação – rectius, na escassez de fundamentação – em que assenta o incidente de quebra de sigilo profissional deduzido e ora sob análise.
 
Assim, e tal como se encontra recortado o pedido de audição da Ordem dos Advogados, nada nos permitirá concluir pela existência de um interesse preponderante ao do tutelado pelo dever sigilo e que seja susceptível de impor o sacrifício deste dever. E tal deve-se unica e exclusivamente à ausência da concretização dos elementos fácticos que permitam essa ponderação.
 
Pelo exposto, concluímos, no caso vertente, que não estão reunidas as condições de que depende a prestação de depoimento, com quebra de sigilo profissional, por parte da Senhora Advogada Dr. A, no âmbito do Inquérito pendente na - Secção do Departamento de Investigação e Acção Penal - , sob o n.º -.
 
Notifique-se.
 
 
Lisboa, 17 de Outubro de 2013.
 

A Assessora Jurídica do C.D.L.
 
Sandra Barroso
 
 
Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,
 
Lisboa, 17 de Outubro de 2013.
 
 
O Vogal do Conselho Distrital de Lisboa
(por delegação de poderes de 20 de Janeiro de 2011)
 
 
Paulo de Sá e Cunha
 

 


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[1] Bastonário Dr. Augusto Lopes Cardoso, in “Do segredo profissional na Advocacia”, Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, 1998, p. 17.
[2] Também aplicável ao processo civil, por remissão do artigo 417º n.º 4 do CPC.

Sandra Barroso

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