Pareceres do CRLisboa

Consulta nº 7/2013

Consulta n.º 7/2013


Requerente:

Assuntos: Sigilo Profissional

Consulta


Por requerimento que deu entrada nos serviços deste Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados no dia 23 de Janeiro de 2013, veio o 1º Juízo - , no âmbito do processo que aí corre sob o nº -, solicitar a emissão de parecer sobre a eventual violação do sigilo profissional relativamente à junção aos autos dos documentos, por parte dos mandatários da Autora, que constam a fls 687 a 688 e 692 a 695

 

Parecer


Dispõe a alínea f) do n.º 1 do artigo 50º do Estatuto da Ordem dos Advogados (E.O.A.), que cabe a cada um dos Conselhos Distritais da Ordem dos Advogados, no âmbito da sua competência territorial, “pronunciar-se sobre as questões de carácter profissional”.

Tem sido entendido pela jurisprudência da Ordem dos Advogados que estas “questões de carácter profissional” serão aquelas de natureza intrinsecamente estatutárias, ou seja, que decorrem dos princípios, regras, usos e praxes que comandam ou orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente os que relevam das normas do E.O.A., do regime jurídico das sociedades de Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei aos órgãos da Ordem.

Isto quer dizer, por outras palavras, que as matérias sobre as quais a Ordem se deve pronunciar para efeitos do referido artigo deverão circunscrever-se à matéria relacionada com o exercício da profissão, nomeadamente, e conforme é delimitado pelo Tribunal, quanto à questão de saber se a junção a um processo judicial de determinados documentos pelos mandatários da aí Autora, eventualmente terá violado o dever de sigilo profissional, tal como previsto no art. 87º do EOA.

Ora, quanto a isto nunca é de mais repetir que o segredo profissional constitui um dos elementos estruturantes da profissão.

O princípio do dever de guardar segredo profissional consolidou-se ao longo dos tempos, não só nas leis que a consagram, como na importância que assume o elo de confiança entre o cliente e o advogado, o qual conforma a opção do legislador.

Defendê-lo e preservá-lo é uma obrigação primeira da Advocacia, sob pena de se ver desfigurado aquilo que é a essência da profissão.

Como se tem escrito sempre que os órgãos desta Ordem são chamados a pronunciar-se sobre os fundamentos e o alcance do instituto do sigilo profissional, se ao Advogado não fosse reconhecido o direito de guardar para si, e só para si, o conhecimento de tudo quanto o cliente, directamente ou por via de terceiros, lhe confiou, ou não fosse obrigado a reservar a informação que obteve no exercício do mandato, então não haveria autêntica advocacia.

O segredo profissional representa a blindagem normativa e a garantia legal inamovível contra as tentações de se obter confissão por interposta pessoa e contra a violação do direito à intimidade. É a garantia de existência de uma advocacia que para ser autêntica, tem de ser livre e independente. [ 1 ]

Bem a propósito, o Dr. António Arnaut, ilustríssimo Advogado, frisa esta ideia por nós também partilhada, ao escrever que “o dever de guardar segredo profissional é uma regra de ouro da Advocacia e um dos mais sagrados princípios deontológicos. Foi sempre considerado honra e timbre da profissão, condição sine qua non da sua plena dignidade”. [ 2 ]

Segundo entendimento já adoptado por anterior Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados[ 3 ], existem três grandes ordens de razões que estão na origem da consagração estatutária do dever do Advogado guardar segredo profissional sobre factos e documentos, dos quais tome conhecimento no exercício da profissão:

a) a indispensabilidade de tutelar e garantir a relação de confiança entre o Advogado e o cliente;
b) o interesse público da função do Advogado enquanto agente activo da administração da justiça;
c) a garantia do papel do Advogado na composição extrajudicial de conflitos, contribuindo para a paz social.”

O segredo profissional é, pois, um direito e uma obrigação fundamental e primordial do advogado. É parte essencial da função do advogado ser o depositário dos segredos do seu cliente e o destinatário de informações baseadas na confiança. Sem a garantia de confidencialidade não pode existir confiança.[ 4 ]

Assim, pode-se ler no art. 87º do EOA, sob a epígrafe “Segredo Profissional” que:
“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3. O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo
(…)”

Contudo, não se pode interpretar literalmente o conteúdo do nº1 do art. 87º do EOA pois se assim fosse, todos os factos – sem qualquer distinção – que chegassem ao conhecimento do Advogado estariam sempre sujeitos a sigilo. Tal interpretação maximalista, e, digamos, desenquadrada do espírito do sistema colocar-nos-ia perante soluções totalmente desprovidas de sentido.

Basta-nos ver que até os próprios factos transmitidos pelo cliente ao Advogado a fim de serem dados a conhecer em Juízo em sede de articulados processuais, estariam, como tal e a enveredar por uma interpretação apenas literal do regime do sigilo profissional, sempre sujeitos a esta obrigação – necessitando da respectiva dispensa sempre que algum Advogado quisesse construir até uma qualquer petição inicial -.

Com efeito, de tal forma difícil se tornaria o exercício da profissão, que quase nada um Advogado poderia fazer sem solicitar a dispensa do sigilo profissional.

De facto, não é isso que se pretende.

Pelo que, há que desbravar caminho e encontrar outros índices de interpretação do art. 87º, nº1.

Olhando para o regime jurídico existente mas, mais do que tudo, para o que tem a Lei em vista, quando se analisa o instituto do sigilo profissional, somos da opinião que, só serão sigilosos aqueles factos que não sejam do conhecimento público relativamente aos quais seja de presumir que quem os confiou ao Advogado, nomeadamente o seu cliente (ainda que não só, como poderá acontecer no caso paradigmático das negociações entre as partes, acompanhadas por Advogado), tinha um interesse objectivo, face à relação de confiança existente, em que se mantivessem reservados. [ 5 ]

Não há, contudo, no EOA e demais legislação aplicável qualquer norma que proíba, sem mais, a divulgação do conteúdo de correspondência enviada por um Advogado a contraparte. [ 6 ]

Melhor dizendo, estará sujeita a sigilo profissional a correspondência trocada entre mandatários, quando se verifique que do seu conteúdo, tendo em conta a relação de confiança existente entre as partes quanto à reserva dos factos transmitidos, exista um interesse objectivo em que esses factos se mantivessem reservados.

Situação típica será a das negociações encetadas entre mandatários, tal como prevêem as als. e) e f) do art. 87º, nº1 do EOA. Isto sem deixar esquecer que perante “negociações” no sentido útil da palavra, há-de haver uma “orientação para um compromisso”, em que cada uma das partes tem a possibilidade de expor à outra as suas preocupações e a sua ordem de prioridades e, correlativamente, apresenta-se disposta a abdicar de determinadas condições para viabilizar um acordo ou obter concessões. [ 7 ]

Por contraposição, não estão abrangidos por tal dever de confidencialidade os factos transmitidos por um Advogado à contraparte (acompanhada ou não de Advogado) com natureza meramente interpelatória, ou até de mero convite a negociar com o objectivo, por um lado, de marcar a posição dos direitos e interesses dos clientes de um Advogado em relação à contraparte e, por outro, de serem retiradas consequências práticas e jurídicas.

No presente caso julgamos que as cartas que os mandatários da Autora terão juntado aos autos correspondem a uma mera transmissão de factos no cumprimento do mandato, com o objectivo de interpelar uma outra Parte, com o intuito de marcar a posição jurídica da sua cliente em face da contraparte e de solicitar a adopção de determinados comportamentos por essa outra Parte.

Acresce que, no texto de tais missivas nada é revelado ao nível de concretas propostas negociais que tenham sido transmitidas, ou até de eventuais comunicações que tenham sido enviadas pela outra Parte.

E, assim sendo, julgamos que não estarão os documentos analisados sujeitos ao dever de sigilo profissional.

Estamos, pois, em condições de traçar as devidas conclusões:

  1. Não consta do EOA e demais legislação aplicável qualquer norma que proíba, sem mais, a divulgação do conteúdo de correspondência enviada por um Advogado a contraparte.
  2. Apenas estará sujeita a sigilo profissional a correspondência trocada entre mandatários, quando se verifique que do seu conteúdo, tendo em conta a relação de confiança existente entre as partes quanto à reserva dos factos transmitidos, exista um interesse objectivo em que esses factos se mantivessem reservados.
  3. Não estão abrangidos por este dever os factos transmitidos por um Advogado à contraparte com natureza meramente interpelatória ou de mero convite a negociar, como sucede no presente caso, uma vez que no texto das cartas submetidas à nossa apreciação não nos parece ter sido apresentada alguma concreta proposta negocial ou mencionada alguma comunicação ou resposta enviada pela outra Parte.

 

Notifique-se

Lisboa, 4 de Novembro de 2013

(O Assessor Jurídico do CDL)
Rui Souto

Concordo e homologo o parecer anterior, nos preciso termos e limites aí fundamentados,


Lisboa, 4 de Novembro

(O Vice-Presidente do CDL)

Por delegação de poderes de 20 de Janeiro de 2011

António Neves Laranjeira

 

[ 1 ] Parecer do Conselho Distrital de Lisboa nº 2/02, aprovado em 6.2.2002, e no qual foi relator o Dr José Mário Ferreira de Almeida.

[ 2 ]“Introdução à Advocacia: História – Deontologia, Questões Práticas”, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996, p. 65

[ 3 ]Parecer do Conselho Distrital de Lisboa nº 02/01, no qual foi relator o Dr José Ferreira de Almeida, e aprovado em sessão plenária no dia 13.03.2003

[ 4 ]Cfr Código de Deontologia dos Advogados Europeus (versão portuguesa aprovada pela Deliberação do Conselho Geral n.º 2511/2007), 2.3.1

[ 5 ]Posição semelhante podemos encontrar em Rodrigo Santiago, Considerações acerca do regime estatutário do segredo profissional dos advogados”, Revista da Ordem dos Advogados, 57, Janeiro de 1997, p. 229. 

[ 6 ]Neste sentido, ver entre outros, o Parecer do Conselho Distrital de Lisboa nº 21/2006, emitido em 4 de Janeiro de 2007 e o Parecer do Conselho Distrital de Lisboa nº 1/09, nos quais fomos relatores, e que se encontram disponíveis para consulta no site da Ordem dos Advogados em www.oa.pt.

[ 7 ]cfr Parecer do Conselho Distrital de Lisboa nº 77/01, no qual foi relator o Dr Bernardo Diniz de Ayala.

Rui Souto

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