Pareceres do CRLisboa

Consulta nº 35/2013

Consulta 35/2013

Requerente:

 
Despacho

Questão

 
Através de comunicação escrita, registada com o n.º -, e recebida a 10 de Julho do corrente, nos Serviços do Conselho Distrital de Lisboa, o Senhor Advogado Dr. A, titular da cédula profissional n.º - L, veio solicitar a pronúncia deste Conselho quanto à questão que passamos, ainda que de forma sintética, a enunciar.
O Senhor Advogado consulente foi mandatário da Ré, B, no âmbito do processo n.º -, que correu os seus termos na 1ª Secção do 2º Juízo Cível de Lisboa, em que era Autor o Senhor Advogado Dr. C.

Mais tarde, o Senhor Dr. C veio a instaurar uma queixa-crime contra a antiga cliente do Senhor Advogado consulente, pela prática de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365º n.º 1 do Código Penal, a qual deu origem processo-crime n.º - , actualmente pendente na 3ª Secção do 3º Juízo Criminal de Lisboa.

No âmbito deste processo-crime, o Senhor Advogado consulente acompanhou, por duas vezes, a sua cliente, agora arguida, à Polícia de Segurança Pública para prestação de declarações, tendo esta, posteriormente, constituído outro mandatário nos autos.

Neste processo-crime, a arguida veio a arrolar como testemunha o Senhor Advogado consulente.

Tendo sido notificado para prestar depoimento na qualidade de testemunha, o Senhor Advogado consulente dirigiu um requerimento aos autos, dando nota de que o conhecimento que tem sobre os factos objecto do processo-crime em curso lhe adveio do exercício da profissão, escusando-se, assim, a depor.

Por comunicação datada de 26.06.2013, foi o Senhor Advogado consulente notificado do teor do Acórdão proferido pela 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, que ordena o seu depoimento com quebra do sigilo profissional.

O Senhor Advogado consulente “não pretende levantar o sigilo profissional, nem prestar depoimento”.

Pese embora a posição firmada no mencionado Acórdão, entende o Senhor Advogado consulente que não está obrigado a prestar depoimento, nem o pretende fazer.

Considerando o exposto, vem o Senhor Advogado consulente solicitar que este Conselho clarifique qual a posição assumida pela Ordem dos Advogados sobre a matéria, para que “possa agir em conformidade”.

 
Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa

 

Nunca é de mais referir o carácter fundamental e verdadeiramente basilar que a obrigação de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia.

Mas não só.

Trata-se de dever de primordial importância para o reconhecimento da plenitude de um Estado do Direito Democrático como consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.

É que o Estado de Direito Democrático não só exige um poder judicial independente, como também tem ainda subjacente o exercício de uma Advocacia livre, independente e responsável. Advocacia que, para ser exercida desta forma, terá necessariamente de, nas relações estabelecidas entre os Advogados e os seus clientes, assentar num elevadíssimo grau de confiança.


Contudo, exorbitando o estrito âmbito da relação Advogado – cliente, o segredo profissional é um valor exigido pela própria ordem social e vertido em forma de lei no Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor (Lei n.º 15/2005, 26 de Janeiro).

E isto porque o sigilo tem frequentemente outros destinatários ou beneficiários para além do cliente no âmbito dos serviços a este prestados, devendo o Advogado ser, nas suas múltiplas relações sociais e profissionais, merecedor de confiança e isenção. Não apenas o Advogado individualmente considerado, como profissional liberal que é, mas como membro de uma classe profissional.


Por isso, convirá realçar de forma plenamente convicta que estamos perante um dever com carácter social ou de ordem pública e não de natureza meramente contratual.

Mais do que um dever do próprio profissional, “o sigilo é um dever de toda a classe, é condição da plena dignidade do Advogado bem como da Advocacia”[1].

Mas, tal não significa que o dever de guardar sigilo seja absoluto, porquanto existem casos em que se justificará, em homenagem a valores de superior dignidade, o levantamento da obrigação de guardar sigilo profissional. Se tal não acontecesse, em situações obviamente excepcionais, elementares princípios de Justiça correriam o risco de ser postergados.


Assim, e para o efeito, estabelece a lei dois mecanismos que se diferenciam desde logo a propósito do sujeito que tem legitimidade para impulsionar o levantamento do segredo profissional:

    A dispensa de sigilo profissional, a qual é solicitada pelo Advogado vinculado a esse dever ao Presidente do Conselho Distrital competente, sendo concedida, caso se verifiquem preenchidos os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados;
    O incidente processual de quebra de sigilo profissional (previsto no artigo 135º do Código de Processo Penal[2]), tendo legitimidade para o desencadear qualquer das partes em juízo ou a autoridade judiciária.


A decisão da quebra de sigilo é tomada, com prévia audição da Ordem dos Advogados, que recairá, inevitavelmente sobre o preenchimento, ou não, das condições de que depende a quebra do sigilo profissional.

O mesmo é dizer, sobre a ponderação acerca da existência de um interesse superior aos interesses que se visa proteger com o dever de sigilo profissional.


E, estritamente de acordo com os elementos que foram colocados à nossa disposição, parece-nos que, no caso vertente, não houve audição prévia da Ordem dos Advogados, nos termos do disposto no artigo 135º n.ºs 3 e 4 do CPP, o que constitui uma irregularidade a invocar nos autos nos termos gerais de direito.


Sem prejuízo do exposto, sempre diremos o seguinte.

A decisão sobre o interesse preponderante é uma decisão de ponderação de diversos valores constitucionais em conflito e, portanto, por natureza, uma decisão jurisdicional, não cabendo à Ordem dirimir esse conflito de interesses.


Questão diversa é a de saber se o Parecer da Ordem tem, ou não, natureza vinculativa.

E, tem-se entendido que a vinculação dos Tribunais a uma decisão prévia da Ordem dos Advogados em matéria de natureza constitucional não se compadece com a independência dos Tribunais, nem com o princípio da prossecução da verdade material e encurta de forma inadmissível as garantias da defesa.
 

Contudo, sempre caberá ao Senhor Advogado consulente ponderar os valores aqui em causa, no caso, por um lado, o interesse constitucional de administração da justiça, mais precisamente a penal, que assume sempre uma relevância de última ratio e, do outro, a consagração constitucional e acesso ao direito, decorrente do artigo 20º da Constituição que implica, entre outras coisas, o dever de sigilo profissional.

A plenitude de um Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição, não só exige um poder judicial independente, como tem subjacente o exercício de uma advocacia livre e responsável, sendo ambas a face da mesma moeda, que é o exercício dos direitos de cidadania.


Assim, caberá ao Senhor Advogado consulente ponderar os interesses em conflito e optar por prestar, ou não, depoimento nos autos.

Caso o Senhor Advogado consulente opte por não prestar depoimento nos autos, poderá, isto em termos abstractos, incorrer nos ilícitos previstos nos artigos 360º n.º 2 e 367º do Código Penal.


É este, s.m.o., o nosso entendimento sobre a questão que nos foi colocada.



Notifique-se.


Lisboa, 30 de Outubro de 2013.


O Vice-Presidente do Conselho Distrital de Lisboa

(por delegação de poderes de 20 de Janeiro de 2011)

 
António Neves Laranjeira 



[1] Bastonário Dr. Augusto Lopes Cardoso, in “Do segredo profissional na Advocacia”, Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, 1998, p. 17.

[2] Também aplicável ao processo civil, por remissão do artigo 417º n.º 4 do CPC.

 

Sandra Barroso

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