Pareceres do CRLisboa

Consulta nº 31/2013

 

CONSULTA N.º 31/2013

Assunto:       

  • Exercício da Advocacia em Regime de Subordinação Jurídica – Artigo 68º do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro)

 

 

OBJECTO

 

Através de comunicação recepcionada nos Serviços do Conselho Distrital de Lisboa no dia 26 de Setembro de 2013 (entrada com o número de registo 32233), a Senhora Advogada Dra. - veio solicitar ao Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados a emissão de Parecer quanto às questões que passamos a enunciar:

 

  1. Qual o sentido do conceito de “subordinação jurídica” previsto no n.º 3 do artº 68º do Estatuto da Ordem dos Advogados? Pode a Ordem dos Advogados pronunciar-se sobre contratos de trabalho e sobre contratos de prestação de serviços ou apenas sobre os primeiros?
  2. Atendendo aos deveres de ordem deontológica a que se encontra vinculado, pode ser imposto a um Advogado em regime de contrato de prestação de serviços (real) integrar o Departamento Jurídico de uma empresa/associação, ou não faz a mesma qualquer sentido, atento o vínculo contratual em questão devendo a situação ser recusada por implicar uma interferência no que é a situação de independência própria de um profissional em regime de exercício liberal da profissão?
  3. Pode um Departamento Jurídico de uma empresa/associação se chefiado por um profissional não jurista/advogado (profissional na área da saúde), que dá instruções acerca do exercício profissional dos advogados que colaboram na instituição com interferência no que se pode considerar a independência, seja em regime de contrato de trabalho seja em regime de prestação de serviços? Em caso negativo existem órgãos da Ordem dos Advogados que intervenham neste tipo de situações?
  4. Um Advogado que, em detrimento do interesse dos colegas e da profissão que estes exercem, propõe ao cliente modelos de contrato de trabalho e prestação de serviços a impor àqueles que colidem com o interesse da profissão no sentido da independência e isenção bem como nos seus direitos laborais, nomeadamente no que respeita a honorários indignos e objectivos como sejam a conclusão de processos disciplinares em determinado prazo quando este não depende unicamente dos advogados que dão assessoria aos mesmos, pode ser alvo de processo disciplinar?

 

É este, ipsis litteris, o pedido que nos foi dirigido pela Senhora Advogada Consulente.

 

ANÁLISE E ENQUADRAMENTO ESTATUTÁRIO

 

Antes de mais, refira-se que as questões sobre as quais emitiremos a nossa pronúncia serão, única e exclusivamente, as que se subsumem à competência material que por lei nos é atribuída e que, como tal, assumem a natureza de questões de carácter profissional a que alude o artigo 50º n.º 1, alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA).

 

Vejamos então.

 

“A Deontologia é o conjunto de regras ético-jurídicas pelas quais o advogado deve pautar o seu comportamento profissional e cívico. (...) O respeito pelas regras deontológicas e o imperativo da elevada consciência moral, individual e profissional, constitui timbre da advocacia.” – António Arnaut, Iniciação à Advocacia – História – Deontologia – Questões Práticas, p. 49 e 50, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996.

 

O Advogado, no exercício da sua profissão está vinculado ao cumprimento escrupuloso de um conjunto de deveres consignados no Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA) e ainda àqueles que a lei, os usos, os costumes e as tradições profissionais lhe impõem (artigo 83º do EOA).

O cumprimento escrupuloso e pontual de todos esses deveres garante a dignidade e o prestígio da profissão.

 

Ao advogado, profissional do direito, cabe um insubstituível papel de intermediário entre os cidadãos e a função jurisdicional do Estado, evitando e dirimindo conflitos extrajudicialmente ou, não sendo possíveis tais soluções, representando o seu patrocinado em Juízo, garantindo a qualidade científica e técnica dessa representação e, ao mesmo tempo, desempenhando essas funções com consciência ética, integridade e probidade.

 

Apesar da mutação decorrente do exercício da profissão em Sociedades de Advogados cada vez maiores, a independência e a liberdade com que o Advogado pauta a sua actuação são ainda hodiernamente um dos traços essenciais da Advocacia.

Só uma advocacia verdadeiramente livre e independente permitirá ao Advogado cumprir «a missão de interesse público» de que está investido.

 

O princípio da independência é, a par do interesse público da profissão, um dos pilares fundamentais da deontologia dos Advogados e, diga-se, um dos valores essenciais do Estado de Direito Democrático.

 

Sobre os ombros do profissional forense recai, como desde logo decorre do artigo 84º do EOA, um verdadeiro dever de tudo fazer para garantir em quaisquer circunstâncias, a sua independência, estando, pois assim, obrigado a “agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros”.

 

A par deste dever, estabelece o artigo 208º da Constituição da República Portuguesa que a lei assegura aos Advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato forense, tendo o legislador constitucional remetido para a lei ordinária a concretização das imunidades necessárias ao exercício do mandato forense.

 

Veio, assim, a lei ordinária a consagrar uma série de garantias conferidas ao Advogado e a toda a classe profissional com a justa finalidade de evitar que a independência do profissional forense seja atingida ou afectada.

 

 

Assim, na sequência do comando constitucional, preceitua o artigo 12º n.º 3 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), que “No exercício da sua atividade, os advogados devem agir com total independência e autonomia técnica e de forma isenta e responsável, encontrando-se apenas vinculados a critérios de legalidade e às regras deontológicas próprias da profissão”.

 

Sob a epígrafe “ Imunidade do mandato conferido a advogados”, preceitua ainda o artigo 13º da mencionada lei que:

“1 – A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício dos atos próprios de forma isenta, independente e responsável, regulando-os como elemento indispensável à administração da justiça.

2 – Para garantir o exercício livre e independente de mandato que lhes seja confiado, a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz, designadamente (…)”.

 

Ainda em matéria de garantias conferidas ao Advogado, a lei estatutária no seu artigo 68º, sob a epígrafe “Exercício da actividade em regime de subordinação”, consagra o seguinte:

“ 1- Cabe exclusivamente à Ordem dos Advogados a apreciação da conformidade com os princípios deontológicos das cláusulas de contrato celebrado com advogado, por via do qual o seu exercício profissional se encontre sujeito a subordinação jurídica.

2 – São nulas as cláusulas de contrato celebrado com advogado que violem aqueles princípios.

3 – São igualmente nulas quaisquer orientações ou instruções da entidade empregadora que restrinjam a isenção e independência do advogado ou que, de algum modo, violem os princípios deontológicos da profissão.

4 - O Conselho Geral da Ordem dos Advogados pode solicitar às entidades públicas empregadoras, que hajam intervindo em tais contratos, entrega de cópia dos mesmos, a fim de aferir da legalidade do respectivo clausulado, atentos os critérios enunciados nos números anteriores.

5 – Quando a entidade empregadora seja pessoa de direito privado, qualquer dos contraentes pode solicitar ao Conselho Geral parecer sobre a validade das cláusulas ou de actos praticados na execução do contrato, o qual tem carácter vinculativo.

 

6 - Em caso de litígio, o parecer referido no número anterior é obrigatório.”.

 

Esta norma veio assim consagrar a plena compatibilidade do exercício da Advocacia com a subordinação jurídica desde que devidamente salvaguardados e garantidos os princípios da isenção, da autonomia e independência técnicas, e, de um modo geral, os demais princípios deontológicos da profissão.

 

Mas o que deve entender-se por subordinação jurídica?

 

Se é verdade que o ponto de partida da interpretação é a norma, não é menos verdade que a interpretação exige que o sentido da norma seja compreendido como parte integrante de um todo, em conexão com as demais normas jurídicas do ordenamento que com ela se articulam logicamente.

O que significa que para interpretar o conceito “subordinação jurídica” contido no artigo 68º do EOA, devemos socorrer-nos do direito laboral vigente. De facto, é neste ramo do direito que, invariavelmente, a subordinação jurídica se afirma como elemento típico e definidor do contrato de trabalho.

 

Diz-nos o artigo 11º do Código do Trabalho (aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro)[1], que “ Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas.”

 

A subordinação jurídica é inerente ao próprio contrato de trabalho e resulta directamente da lei, como decorre da expressão “no âmbito de organização e sob a autoridade destas[2]”.

 

Como é consabidamente aceite, com a celebração do contrato de trabalho, o trabalhador fica sujeito ao poder de direcção do empregador, cf. artigo 97º do Código do Trabalho (doravante CT), nos termos do qual compete ao empregador estabelecer os termos em que o trabalho deve ser prestado, aos quais o trabalhador tem o dever de obedecer, cf. alínea e) do n.º 1 do artigo 128º do CT.

 

Significa isto que cabe ao empregador delimitar o modo como a prestação de trabalho é cumprida, adaptando-a em cada momento aos fins prosseguidos pela organização produtiva, cabendo-lhe ainda a determinação da organização e disciplina do trabalho, do local de trabalho e da duração do tempo de trabalho – cf. artigos 99º, 193º e 197º do CT.

 

O poder de direcção traduz-se na faculdade do empregador poder dirigir tecnicamente o trabalho do trabalhador, o que faz através de ordens, directivas ou instruções.

 

O poder de direcção caracteriza-se ainda pela possibilidade do empregador fiscalizar a prestação de trabalho do trabalhador, cabendo-lhe, inclusive, faculdade/poder de aplicar sanções ao trabalhador pela violação dos deveres laborais, cf. artigo 98º do CT.

 

O poder do empregador conformar através de ordens, directivas e instruções, a prestação a que o trabalhador se obrigou, bem como o poder que lhe assiste de fiscalizar essa mesma prestação, fazem com que o trabalhador se ache subordinado juridicamente ao empregador.

Assim entendida, a subordinação jurídica constitui um elemento típico e essencial do contrato de trabalho.

 

E a subordinação assim definida é pacificamente aceite como a pedra de toque que permite distinguir o contrato de trabalho do contrato de prestação de serviços, previsto no artigo 1154º do Código Civil, já que neste o prestador se obriga à obtenção de um resultado, que efectiva por si, com autonomia, sem subordinação à direcção da outra parte.

 

 

 

Mas, se, como referimos supra, no contrato de trabalho, o empregador dirige tecnicamente o trabalho do trabalhador, que se encontra dependente tecnicamente daquele, a verdade é que, tal como decorre do artigo 116º do CT, a sujeição à autoridade e direcção do empregador não pode prejudicar a autonomia técnica do trabalhador inerente à actividade prestada, nos termos das regras legais ou deontológicas aplicáveis.

 

Nestes casos, decorre expressamente da alínea e) do n.º 1 do artigo 127º do CT que constitui dever do empregador respeitar a autonomia técnica do trabalhador que exerça actividade cuja regulamentação ou deontologia profissional a exija, e caso o empregador profira uma ordem que envolva o sacrifício dessa mesma autonomia técnica o trabalhador pode, legitimamente, desobedecer, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 128º do CT.

 

Portanto, nestes casos excepcionados pelo legislador, é dada prevalência à autonomia técnica em detrimento do poder de direcção em que o empregador se encontra investido.

E nestes casos excepcionais se enquadram, precisamente, os profissionais liberais e, desde logo, o Advogado. Ou seja, os princípios deontológicos que norteiam o exercício da profissão impedem que o Advogado possa encontrar-se juridicamente subordinado ao empregador quando exerce a sua profissão em regime de contrato de trabalho, pois é precisamente neste caso que, com acuidade, se coloca a questão da conciliação entre a independência do Advogado e o dever de subordinação jurídica enquanto elemento típico e essencial deste tipo de contrato.

 

Para além deste regime geral, veio ainda o legislador consagrar no Estatuto uma norma especial que, efectivamente, admite que a Advocacia seja prestada em regime de contrato, nomeadamente, de trabalho (mas não só), por via do qual o seu exercício profissional se encontre sujeito a subordinação jurídica.

Mas tal apenas poderá acontecer desde que o contrato, que vincula o Advogado a entidade pública ou privada, não contenda com os princípios deontológicos decorrentes da profissão e, em particular, com os princípios da independência técnica e isenção, características essenciais da advocacia.

 

 

 

E atente-se na redacção do artigo 68º do EOA, já que o legislador apenas alude a “contrato celebrado com Advogado por via do qual no seu exercício profissional se encontre sujeito a subordinação jurídica”, por forma a abranger na sua preocupação garantística todo e qualquer contrato que vincule o Advogado a entidade pública ou privada.

E, neste ponto, entendemos que relevante será não apenas aquilo que, eventualmente, possa resultar formalmente do negócio jurídico celebrado entre as partes, mas também a qualificação da relação jurídica estabelecida entre as partes, atento o modo como o contrato é executado na prática.

De facto, sabemos que na prática podemos ter um contrato que, do ponto de vista da sua qualificação legal, não compreenda, de todo, como elemento definidor a subordinação jurídica, mas, na prática, o mesmo seja executado em regime de subordinação jurídica.

E estas situações deverão também merecer idêntica tutela já que o que está em causa serão verdadeiras situações de trabalho subordinado, abrangidas pelo âmbito de protecção da norma legal contida no artigo 68º do EOA.

 

E a norma legal em causa confere competência exclusiva ao Conselho Geral para aferir da conformidade das cláusulas de um contrato celebrado com uma pessoa de direito privado ou público que pressuponha o exercício da advocacia em regime de subordinação jurídica, com os princípios deontológicos que regem o exercício da profissão, assumindo, nos casos aí previstos, o Parecer da Ordem dos Advogados natureza obrigatória.  

 

É este, s.m.o., o nosso entendimento sobre as questões colocadas, ainda que de forma genérica.

 

 

CONCLUSÃO

 

Dito isto, conclui-se o seguinte:

 

 

A)

O conceito de “subordinação jurídica” a que alude o artigo 68º do EOA deve ser entendido e interpretado à luz do que tradicionalmente se tem entendido como sendo um dos elementos típicos e definidores do contrato de trabalho.

 

B)

Ao Advogado está vedada a celebração de qualquer contrato que o vincule a entidade pública ou privada, cujo teor contenda com os princípios deontológicos decorrentes da profissão e, em particular, com os princípios da independência técnica e isenção.

 

C)

Está expressamente cominada a nulidade das cláusulas contratuais violadoras desses mesmos princípios deontológicos.

 

D)

São igualmente nulas quaisquer orientações ou instruções da entidade empregadora que restrinjam a isenção e independência do advogado ou que, de algum modo, violem os princípios deontológicos da profissão.

 

E)

O órgão competente para aferir da validade das cláusulas contratuais de qualquer contrato que pressuponha o exercício da advocacia em regime de subordinação jurídica é o Conselho Geral da Ordem dos Advogados, nos termos dos n.ºs 4 e 5 do artigo 68º do EOA.

 

F)

O regime legal em vigor em matéria de exercício da profissão em regime de subordinação aplica-se independentemente daquilo que, eventualmente, possa resultar formalmente do negócio jurídico celebrado entre as partes.

 

G)

Para efeitos do artigo 68º do EOA, determinante é a qualificação da relação jurídica estabelecida entre as partes, atento o modo como o contrato é executado na prática.

 

Impõem-se ainda duas notas finais:

 

1) Quanto à última questão colocada, apenas caberá, nesta sede, referir, em termos gerais e abstractos, que, nos termos do disposto no artigo 110º do EOA, comete infracção disciplinar o Advogado que por acção ou omissão, violar dolosa ou culposamente algum dos deveres consagrados no EOA, nos respectivos regulamentos e nas demais disposições legais aplicáveis.

A responsabilidade disciplinar do Advogado é aferida em sede própria pelo órgão estatutariamente competente – os Conselhos de Deontologia ou as secções do Conselho Superior, nos termos, respectivamente, do disposto nos artigos 54º alínea a) e 43º n.º 3 alínea d), ambos do EOA.

 

2) Quanto à primeira parte da terceira questão colocada, diremos que também não nos compete emitir pronúncia sobre as concretas opções da empresa/associação em causa no que à escolha do seu Director Jurídico diz respeito. Apenas, sublinhando, e mais uma vez em termos puramente abstractos, que esta matéria apenas será para nós relevante se e na medida em que possa consubstanciar a prática de algum acto de procuradoria ilícita. O que, os elementos colocados à nossa disposição não permitem, só por si, concluir.

 

Lisboa, 14 de Abril de 2014.

 

A Assessora Jurídica do CDL

Sandra Barroso

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 14 de Abril de 2014.

 

O Presidente do Conselho Distrital de Lisboa

  António Jaime Martins

               



[1] Alterada pelas Leis n.ºs 105/2009, de 14 de Setembro; 53/2011, de 14 de Outubro, 23/2012, de 25 de Junho, 47/2012, de 29 de Agosto, 69/2013, de 30 de Agosto.

[2] Até à revisão de 2009 do Código do Trabalho, o artigo 10º do Código do Trabalho (aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto), definia o contrato de trabalho como sendo aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, sob a autoridade e direcção destas (sublinhado nosso). A expressão agora utilizada pelo legislador “no âmbito da organização e sob a autoridade” corresponde ao que, até à revisão de 2009, se designava como a autoridade e direcção a que o trabalhador se encontra submetido.

Sandra Barroso

Topo