Pareceres do CRLisboa

Consulta nº 3/2014

CONSULTA N.º 3/2014

 Assunto:       

  • Legitimidade da escusa para depor – Artigo 135º n.ºs 1, 2 e 4 do Código de Processo Penal e Artigo 87º do EOA.

 

Questão

 

Através de comunicação recepcionada nos Serviços doConselho Distrital de Lisboano dia 13 de Janeiro (entrada com o número de registo - ), a Exma. Senhora Juiz do - Juízo do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão veio, nos termos e para os efeitos do disposto nos números 2 e 4 do artigo 135º do Código de Processo Penal (doravante CPP), solicitar a pronúncia doConselho Distrital de Lisboaquanto à (i) legitimidade da escusa para depor apresentada pelo Senhor Advogado Dr. -, no âmbito do processo n.º -.

 

De facto, chamado a depor, o Senhor Dr. - escusou-se a prestar depoimento, por entender que os factos aos quais o seu depoimento é pretendido estão abrangidos pelo dever de sigilo profissional.

 

É, portanto, neste contexto que é solicitada a pronúncia do Conselho Distrital de Lisboa.

 

Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa

 

A existência da obrigação de segredo profissional impede o Advogado de revelar factos sigilosos e, ou, os documentos onde esses mesmos factos possam estar contidos, excepto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Distrital respectivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA) e pelo artigo 4º do Regulamento de Dispensa do Segredo Profissional.

Ainda que dispensado nos termos referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional. O Advogado é, pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade activa para solicitar, se assim o entender, dispensa do dever segredo.

 

 

A lei processual penal[1], porém, consagra um regime de excepção, previsto no artigo 135º.

De harmonia com este regime, que será o relevante no caso ora em apreço, a regra continua a ser a de o Advogado poder (e, à luz do EOA, “dever”) escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo dever de segredo profissional. Deduzida a escusa perante o Juiz ou perante a autoridade judiciária que presidir ao acto, poderão suscitar-se dúvidas, que deverão ser fundadas, acerca da legitimidade da invocação do sigilo profissional e da escusa em depor que o mesmo fundamenta – cfr. n.º 2 do artigo 135º do CPP. Quando tal acontecer, como no caso vertente, o Juiz decide sobre a legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cfr. n.º 4 do artigo 135º do CPP.

 

Nesta sede, o que terá de se aferir é se o Advogado está ou não a invocar correctamente o dever de segredo profissional, o que implica que os factos sobre os quais se pretende que venha a depor deverão constituir matéria abrangida no âmbito do sigilo.

 

Cumprirá, pois, indagar se os factos acerca dos quais deverá incidir o pretendido depoimento do Senhor Dr. - se deverão ter por abrangidos pela esfera de protecção do sigilo profissional.

 

Vejamos então.

 

Nunca é de mais referir o carácter fundamental, para não dizer, verdadeiramente basilar, que a obrigação de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia.

 

Mais do que uma condição para o seu desempenho é, sobretudo, um traço essencial da sua própria existência. Sem o segredo profissional erigido em regra de ouro não existe, nem pode existir, Advocacia livre e independente, ficando abalado o direito de defesa dos cidadãos que recorrem ao Advogado para protecção dos seus direitos, liberdades e garantias.

No fim da linha, é o próprio Estado de Direito Democrático que é atingido no seu cerne, porquanto o sigilo profissional entre o Advogado e o seu Constituinte é estruturante e conditio sine qua non do direito de defesa dos cidadãos. Assim o tem entendido a lei e a própria jurisprudência da Ordem dos Advogados.

 

Com efeito, Advogado é acometido, por da lei ordinária e pela Constituição de uma verdadeira «missão de interesse público», competindo-lhe, designadamente:

- defender o Estado de direitos e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos;

- pugnar pela boa aplicação das leis;

- colaborar na administração da justiça e pugnar pelo seu rápido funcionamento;

- assegurar o acesso ao direito nos termos da Constituição, como defensores e patronos;

- opinar sobre os projetos de diplomas legislativos que interessem ao exercício da advocacia e o patrocínio judiciário em geral;

- propor alterações legislativas relevantes para o sistema de justiça.

(v. art.ºs 3.º nas suas diversas alíneas e o 85.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados).

 

São, assim, os Advogados garantes de importantes funções do Estado com consagração constitucional como é o “acesso ao direito e aos tribunais” e o “patrocínio judiciário” previstos no art.º 20.º, n.ºs 1 e 2 da Lei Fundamental e que constituem “elemento essencial da administração da justiça” como resulta do art.º 208.º da mesma Lei, sendo-lhes com esse propósito conferidas garantias e imunidades no exercício do mandato forense (art.º 154.º, n.º 2 do Novo Código de Processo Civil), num claro e inequívoco reconhecimento da relevante função social de interesse público da profissão.

 

Atente-se, aliás, na redacção do art.º 13.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (n.º 62/1013, de 26.8) com a epígrafe “Imunidade do mandato conferido a advogados”:

 

“Artigo 13.º

Imunidade do mandato conferido a advogados

1 — A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias

ao exercício dos atos próprios de forma isenta,

independente e responsável, regulando -os como elemento

indispensável à administração da justiça.

2 — Para garantir o exercício livre e independente de

mandato que lhes seja confiado, a lei assegura aos advogados

as imunidades necessárias a um desempenho eficaz,

designadamente:

a) O direito à proteção do segredo profissional;

b) O direito ao livre exercício do patrocínio e ao não

sancionamento pela prática de atos conformes ao estatuto

da profissão;

c) O direito à especial proteção das comunicações com o

cliente e à preservação do sigilo da documentação relativa

ao exercício da defesa;

d) O direito a regimes específicos de imposição de selos,

arrolamentos e buscas em escritórios de advogados, bem

como de apreensão de documentos”.

 

Como se tem escrito, sempre que os órgãos da Ordem são chamados a pronunciar-se sobre os fundamentos e o alcance do instituto, se ao Advogado não fosse reconhecido o direito de guardar para si, e só para si, o conhecimento de tudo quanto o seu Constituinte, directamente ou por via de terceiros, lhe confiou, ou não fosse obrigado a reservar a informação que obteve no exercício do mandato, então não haveria Advocacia livre e independente, transformando-se os Advogados em testemunhas de defesa e desse modo se desvirtuando a sua função na administração da Justiça e nos acesso ao direito.

 

O segredo profissional é a blindagem normativa, a garantia legal inamovível contra as tentações de se obter confissão por interposta pessoa e contra a violação do direito à intimidade. É a garantia de existência de uma advocacia que para ser autêntica, tem de ser livre e independente.[2]

Aliás, e bem a propósito, o Dr António Arnaut, ilustre Advogado, frisa esta ideia por nós também partilhada, ao escrever que “O dever de guardar segredo profissional é uma regra de ouro da Advocacia e um dos mais sagrados princípios deontológicos. Foi sempre considerado honra e timbre da profissão, condição sine qua non da sua plena dignidade.

 

O cliente, ou simples consultante, deve ter absoluta confiança na discrição do Advogado para lhe poder revelar toda a verdade, e considerá-lo um «sésamo» que nunca se abre.”[3]

 

Existem, em suma, segundo entendimento há muito perfilhado por este Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados[4] três grandes ordens de razões que estão na origem da consagração estatutária do dever (que é ao mesmo tempo direito) do advogado guardar segredo profissional sobre factos e documentos dos quais tome conhecimento no exercício da profissão:

a)     A indispensabilidade de tutelar e garantir a relação de confiança entre o advogado e o cliente.

b)     O interesse público da função do advogado enquanto agente activo da administração da justiça.

c)     A garantia do papel do advogado na composição extrajudicial de conflitos, contribuindo para a paz social.

 

Assim, dispõe o artigo 87º do EOA, sob a epígrafe “Segredo Profissional”, o seguinte:

“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante;

 

e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo.

4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o Bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamento.

5 - Os actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.

7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua actividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.

8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração”.

 

Em primeiro lugar, preceitua esta norma, no seu número 1, que “O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços (...)”.

 

Com efeito, sob esta fórmula, encontra-se aquela que é a regra geral do instituto jurídico-deontológico que ora analisamos. Pode-se até dizer que, em certa medida, as demais regras previstas nas alíneas da mesma são sobretudo explicitações ou pormenorizações daquela, que terão sido incluídas no EOA para salientar situações mais marcantes ou de maior dificuldade de interpretação.

 

Traçadas as linhas gerais do regime legal em vigor, haverá agora que proceder à subsunção dos factos à lei.

 

A título preliminar refira-se que os elementos que foram colocados à nossa disposição pelo Tribunal não nos permitiram, só por si, concluir com o rigor que a matéria exige, pela existência ou não de sigilo profissional no caso ora sob resposta.

Razão pela qual procedeu este Conselho, nos termos legais, às devidas averiguações junto do Senhor Dr. -.

 

Dos esclarecimentos prestados pelo Senhor Dr. - – cujos fundamentos não podemos aqui revelar sob pena de estarmos a violar o sigilo profissional a que também estamos adstritos, por força do disposto no artigo 87º n.º 1, alínea b) do EOA – conclui-se, sem margem para dúvidas, que o Senhor Advogado teve conhecimento dos factos aos quais o seu depoimento é pretendido, no exercício da profissão e por causa da sua qualidade de Advogado.

Logo, forçoso é concluir que o Senhor Advogado está, quanto a eles, obrigado a sigilo, por força da norma legal contida no n.º 1 do artigo 87º do EOA, não podendo, por conseguinte, sobre eles livremente depor, sob pena de, inclusive, poder incorrer em infracção disciplinar e mesmo criminal.

 

Pelo exposto, e sem necessidade de maiores ou melhores considerações, entendemos que a escusa para depor apresentada pelo Senhor Advogado Dr. - é legítima, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135º n.ºs 1, 2 e 4 do CPP.

 

 

CONCLUSÕES:         

 

  1. A existência do dever de segredo profissional impede o Advogado de revelar factos sigilosos e, ou, os documentos onde esses mesmos factos possam estar contidos, excepto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Distrital respectivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados e pelo artigo 4º do Regulamento de Dispensa do Segredo Profissional.

 

  1. Ainda que dispensado, nos termos referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional. O Advogado é, pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade activa para solicitar, se assim o entender, dispensa do dever de guardar segredo.

 

  1. Porém, a lei processual penal consagra um regime de excepção.

 

  1. De harmonia com este regime, a regra continua a ser a de o Advogado poder (e, à luz do EOA, “dever”) escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo dever de segredo profissional.

 

  1. Deduzida a escusa perante o Juiz ou perante a autoridade judiciária que presidir ao acto, poderão suscitar-se dúvidas, que deverão ser fundadas, acerca da legitimidade da invocação do sigilo profissional e da escusa em depor que o mesmo fundamenta – cfr. n.º 2 do artigo 135º do Código de Processo Penal.

 

  1. Quando tal acontecer, como no caso vertente, o Juiz decide sobre a legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cfr. n.º 4 do artigo 135º do Código de Processo Penal.

 

  1. No caso vertente, conclui-se, sem margem para dúvidas, que o Senhor Advogado Dr. - teve conhecimento dos factos aos quais o seu depoimento é pretendido, no exercício da profissão e por causa da sua qualidade de Advogado.

 

  1. Logo, forçoso é concluir que o Senhor Dr. - está, quanto àqueles, obrigado a sigilo, por força da norma legal contida no n.º 1 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados, não podendo, por conseguinte, sobre eles livremente depor, sob pena de, inclusive, poder incorrer em infracção disciplinar e mesmo criminal.

 

  1. Pelo exposto, e sem necessidade de maiores ou melhores considerações, entendemos que a escusa para depor apresentada pelo Senhor Advogado Dr. - é legítima, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135º n.ºs 1, 2 e 4 do CPP.

 

Lisboa, 11 de Fevereiro de 2014.

 

A Assessora Jurídica do C.D.L.

Sandra Barroso

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados.

 

Notifique-se.

Lisboa, 11 de Fevereiro de 2014.  

O Presidente do Conselho Distrital de Lisboa

António Jaime Martins



[1] Também aplicável ao processo civil – vide Artigos 417º n.ºs 3 al. c) e 4 e 497º n.º 3, ambos do Novo Código de Processo Civil.

[2] Parecer doConselho Distrital de Lisboa nº 2/02, aprovado em6.2.2002, e no qual foi relator o Dr. José

Mário Ferreira deAlmeida.

[3] “Introdução à Advocacia: História – Deontologia, Questões Práticas”, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996,

p. 65.  

[4] Parecer doConselho Distrital de Lisboa n.º 02/01, no qual foi relator o Dr.José Ferreira de Almeida, aprovado em sessão plenária do CDL de13.03.2003.  

dana; mso-fareast-font-family:"Times New Roman";"Times New Roman"; mso-ansi-language:PT;mso-fareast-language:PT;mso-bidi-language:AR-SA'>[1] Alterada pelas Leis n.ºs 105/2009, de 14 de Setembro; 53/2011, de 14 de Outubro, 23/2012, de 25 de Junho, 47/2012, de 29 de Agosto, 69/2013, de 30 de Agosto.

 

[2] Até à revisão de 2009 do Código do Trabalho, o artigo 10º do Código do Trabalho (aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto), definia o contrato de trabalho como sendo aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, sob a autoridade e direcção destas (sublinhado nosso). A expressão agora utilizada pelo legislador “no âmbito da organização e sob a autoridade” corresponde ao que, até à revisão de 2009, se designava como a autoridade e direcção a que o trabalhador se encontra submetido.

Sandra Barroso

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