Pareceres do CRLisboa

Consulta nº 5/2014

 

CONSULTA N.º 5/2014

Assunto:       

  • Incidente processual de quebra do sigilo profissional – Artigo 135º do Código de Processo Penal e Artigo 87º do EOA.

 

Questão

 

Através de comunicação recepcionada nos Serviços doConselho Distrital de Lisboano dia 21 de Janeiro do corrente (entrada com o número de registo - ), veio o Exmo. Juiz Desembargador da .. Secção do Tribunal de -  solicitar aoConselho Distrital de LisboadaOrdem dos Advogadosa emissão de parecer, nos termos e para os efeitos do disposto nos números 3 e 4 do artigo 135º do Código de Processo Penal (doravante CPP).

 

O incidente de quebra do sigilo profissional foi suscitado no âmbito do processo pendente n .... sob o n.º --, quanto ao Senhor Advogado Dr.-.

De facto, alegou o Senhor Advogado quanto às questões que lhe foram colocadas pelo Senhor Procurador de República que as mesmas estavam relacionadas com “as suas funções enquanto mandatário das sociedades - , - e -”, escusando-se, por conseguinte, a depor com fundamento no dever de sigilo profissional a que está vinculado. 

 

É, portanto, neste contexto que surge o pedido que nos é agora dirigido pelo Tribunal de - .

 

Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa   

 

Nunca é de mais referir o carácter fundamental e verdadeiramente basilar que a obrigação de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia.

Mas não só.

Trata-se de dever de primordial importância para o reconhecimento da plenitude de um Estado do Direito Democrático como consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.

 

É que o Estado de Direito Democrático não só exige um poder judicial independente, como também tem ainda subjacente o exercício de uma Advocacia livre, independente e responsável. Advocacia que, para ser exercida desta forma, terá necessariamente de, nas relações estabelecidas entre os Advogados e os seus clientes, assentar num elevadíssimo grau de confiança entre as partes.

 

Contudo, e mais do que exigido pelas partes, o segredo profissional é algo que é exigido pela própria ordem social e vertido em forma de lei no Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor (Lei n.º 15/2005, 26 de Janeiro).

E isto porque o sigilo vai ter frequentemente outros destinatários ou beneficiários para além do cliente, no âmbito dos serviços a este prestados, devendo o Advogado ser, nas suas múltiplas relações sociais e profissionais, merecedor de confiança e isenção. Não apenas o Advogado individualmente considerado, como profissional liberal que é, mas como membro de uma classe profissional.

 

 

Por isso, convirá realçar de forma plenamente convicta que estamos perante um dever com carácter social ou de ordem pública e não de natureza meramente contratual. Mais do que um dever do próprio profissional, “o sigilo é um dever de toda a classe, é condição da plena dignidade do Advogado bem como da Advocacia”[1].

 

Mas, tal não significa que o dever de guardar sigilo seja absoluto. Bem assim, existem casos em que o levantamento da obrigação de guardar sigilo profissional se poderá justificar. Se tal não acontecesse, em situações obviamente excepcionais, elementares princípios de justiça correriam o risco de serem fortemente atingidos.

 

Assim, e para o efeito, estabelece a lei dois mecanismos que se diferenciam desde logo a propósito do sujeito que tem legitimidade para impulsionar o levantamento do segredo profissional:

  • Dispensa de sigilo profissional, a qual é solicitada pelo Advogado detentor dessa obrigação ao Presidente do Conselho Distrital competente, sendo concedida, caso se verifiquem preenchidos os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados;
  • Incidente processual de quebra de sigilo profissional (mecanismo previsto no artigo 135º do Código de Processo Penal[2]), tendo legitimidade para o desencadear qualquer das partes em juízo ou a autoridade judiciária.

 

A decisão da quebra de sigilo é tomada, com audiência prévia, no caso concreto, da Ordem dos Advogados, audiência essa que recairá inevitavelmente, quanto ao preenchimento, ou não, das condições de que depende a quebra do sigilo profissional. Ou seja, sobre a existência de um interesse superior aos interesses que se visa protegercom aobrigação de guardar sigilo profissional.

 

Em suma, para que se possa concluir pela existência de um interesse preponderante haverá que verificar, em concreto – e tal como o pedido de quebra se encontra fundamentado e recortado –, se o depoimento do Advogado com quebra do sigilo se reveste de absoluta necessidade, isto é, de imprescindibilidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser indispensável (ou seja, imprescindível, e não meramente útil) face ao objectivo de prova visado; de essencialidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser absolutamente determinante; e de exclusividade, pressupondo este requisito a inexistência de qualquer outro meio de prova que não o depoimento do obrigado ao sigilo.

 

Vejamos então o caso concreto.

 

Pode ler-se na acta da audiência de discussão e julgamento do dia 05.12.2013, o seguinte: “ (…) No caso presente entende o Tribunal que interessa manifestamente à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa que a testemunha, Senhor Doutor -, preste esclarecimentos quanto a factos relacionados com a actividade das sociedades - , -  e - e sobre a relação dos arguidos (...) e (...) com as mesmas sociedades.

 

 

Trata-se de matérias mencionadas na acusação deduzida pelo Ministério Público e relacionadas com a eventual prática de ilícitos em causa nos autos. (…)”.

 

Deste excerto, se extrai, com relevância para a pronúncia a emitir, duas conclusões.

 

Por um lado, não são enunciados de forma concreta e precisa os factos a que o depoimento do Senhor Advogado Dr. - é pretendido. Apenas é feita uma remissão genérica para a Acusação.

 

Por outro lado, tal como se encontra recortado o pedido de audição da Ordem dos Advogados, nada nos permite concluir pela existência de um interesse preponderante ao sigilo que leve ao sacrifício deste dever.

Para que seja quebrado o dever de sigilo profissional, será sempre exigível uma situação de total excepcionalidade e absoluta necessidade da audição do Advogado em causa sobre os factos de que tomou conhecimento no exercício da profissão.

O que não se manifesta de forma nenhuma na fundamentação – rectius, na escassez de fundamentação – em que assenta o incidente de quebra de sigilo profissional deduzido e ora sob análise.

Não nos parece suficiente, salvo o devido respeito, que o pedido de audição de um Advogado com quebra de sigilo profissional se funde, única e exclusivamente, na sua essencialidade para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa. A fundamentação factual da total excepcionalidade e absoluta necessidade da audição do Advogado seria, a nosso ver, relevante para a pronúncia a emitir.

 

Mas mais ainda.

É que a tal situação excepcional não se mostra minimamente fundamentada ou concretizada no incidente de quebra de sigilo profissional ora em apreço, desde logo, porque também desconhecemos se o depoimento do Senhor Advogado Dr. - é, efectivamente, um meio de prova exclusivo dos factos aos quais o seu depoimento é pretendido. 

O recurso ao depoimento de Advogado para prova deve ser sempre encarado como um meio excepcionalíssimo, sob pena de se banalizarem os deveres fundamentais desta nossa profissão. O meio de prova sujeito a sigilo terá sempre de ser um meio de prova exclusivo, único meio de prova de determinado facto ou acervo de factos. Não interessa, em matéria de sigilo, que o meio de prova sujeito a sigilo seja o melhor, o mais eficaz ou o meio de prova de obtenção mais simples. Terá de ser o único meio de prova da factualidade visada nos autos.

E, no caso concreto, nada nos permite concluir nesse sentido. 

 

Em suma, não sendo possível, nos termos atrás fundamentados, concluir pela imprescindibilidade, essencialidade e exclusividade do depoimento pretendido, forçoso é concluir que não estão, a nosso ver, reunidas as condições de que depende a audição do Senhor Dr. - com quebra do sigilo profissional, no âmbito do processo pendente n - , sob o n.º -.

 

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2014.

   

A Assessora Jurídica do CDL

Sandra Barroso

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 17 de Fevereiro de 2014.

 

O Presidente do Conselho Distrital de Lisboa

 

António Jaime Martins

 

 



[1] Bastonário Dr.Augusto Lopes Cardoso, in “Do segredo profissional na Advocacia”, Centro Editor Livreiro daOrdem dos Advogados, 1998, p. 17.

[2] Também aplicável ao processo civil por remissão do artigo 417º n.º 4 do CPC.

Text>[3]Ver, neste sentido, o Parecer emitido pelo Conselho Geral da Ordem dos Advogados no âmbito do Proc. 11/PP/2010-G.

 

Sandra Barroso

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