Pareceres do CRLisboa

Consulta nº 6/2014

 CONSULTA N.º 6/2014

 

Assunto:   

  • Conflito de Interesses – Artigo 94º do EOA.

 

Questão

 

O Senhor Advogado Dr. - – sócio daSociedade de Advogados, -, R.L. –, veio solicitar aoConselho Distrital de LisboadaOrdem dos Advogadosa emissão de Parecer quanto a uma questão de eventual conflito de interesses.

 

O enquadramento factual, tal como exposto pelo Senhor Advogado Consulente, é, em síntese, o seguinte:

  1. O Senhor Advogado Consulente encontra-se mandatado pela sociedade “ --”, a qual foi declarada insolvente, por sentença datada de24.05.2012, no âmbito do processo n.º -, que correu os seus termos no - Juízo do Tribunal de - .
  2. Na ausência de património da sociedade insolvente, as dívidas fiscais foram revertidas contra as duas sócias gerentes.
  3. Em sede graciosa, no âmbito do exercício do direito de audição, o Senhor Advogado Consulente assumiu o patrocínio de ambas as sócias gerentes.

 

  1. À data, as duas sócias gerentes mantinham relações amigáveis e de mútua cooperação.
  2. Sucede que, por razões de ordem pessoal, houve períodos em que as duas sócias não exerceram a gerência, nem de direito nem de facto, em simultâneo, tendo, inclusivamente, uma das sócias renunciado à gerência, sendo, mais tarde, novamente, nomeada.
  3. Presentemente, ambas as sócias gerentes pretendem reagir contra as execuções fiscais e mandatar, para tanto, o Senhor Advogado Consulente.
  4. Entende o Senhor Advogado Consulente que ao assumir a defesa de ambas as sócias gerentes, a matéria de facto alegada, ainda que verdadeira, colocará as sócias gerentes em posições, potencial e eventualmente, conflituantes.
  5. Com efeito, a circunstância de uma das sócias gerentes não ter exercido a gerência durante um determinado período de tempo implicará, eventualmente, imputar a responsabilidade à outra.

 

Considerando a factualidade exposta, vem o Senhor Advogado Consulente solicitar a pronúncia deste Conselho quanto a duas questões:

  1. Se, na situação descrita, existe, ou não, uma situação de conflito de interesses nos termos do artigo 94º do EOA, que o impeça de assumir a representação de ambas as sócias gerentes.

 

 

  1. Na afirmativa, se poderá substabelecer, sem reserva, o mandato conferido por uma das sócias gerentes em Advogado colaborador em regime de prestação de serviços, de não exclusividade, na Sociedade de Advogados da qual é sócio.

 

Da competência consultiva do Conselho Distrital de Lisboa

 

Nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 50º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA), aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, compete aos Conselhos Distritais pronunciarem-se sobre questões de carácter profissional, que se suscitem no âmbito da sua competência territorial.

 

A competência consultiva dos Conselhos Distritais está, assim, limitada pelo EOA a questões inerentemente estatutárias, isto é, as que decorrem dos princípios, regras, usos e praxes que regulam e orientam o exercício da profissão, maxime as que decorrem das normas do EOA, do regime jurídico das Sociedades de Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido pela lei aos órgãos da Ordem dos Advogados.

 

 

A matéria colocada à apreciação deste Conselho Distrital subsume-se, precisamente, a uma questão de carácter profissional nos termos descritos, pelo que haverá que proceder à emissão de Parecer quanto à questão que nos foi colocada.

 

Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa

 

A Deontologia é o conjunto de regras ético-jurídicas pelas quais o advogado deve pautar o seu comportamento profissional e cívico. (...) O respeito pelas regras deontológicas e o imperativo da elevada consciência moral, individual e profissional, constitui timbre da advocacia.” – António Arnaut, Iniciação à Advocacia – História – Deontologia – Questões Práticas, p. 49 e 50, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996.

 

No exercício da sua profissão, o Advogado, está vinculado ao cumprimento escrupuloso de um conjunto de deveres consignados no Estatuto da Ordem dos Advogados e ainda àqueles que a lei, os usos, os costumes e as tradições profissionais lhe impõem.

O cumprimento escrupuloso e pontual de todos esses deveres garante a dignidade e o prestígio da profissão.

 

 

O Título III do Estatuto da Ordem dos Advogados trata da “Deontologia Profissional”, fixando, no Capítulo I, os Princípios Gerais e abordando, no Capítulo II, a questão das relações entre o Advogado e o cliente. 

É neste último Capítulo e, mais especificamente no seu artigo 94º, que se encontra regulado o denominado “Conflito de Interesses”.

 

Aí estão plasmadas várias situações em que existe uma situação de incompatibilidade para o exercício do patrocínio.

A matéria do conflito de interesses, regida estatutariamente pelo teor do artigo 94º do EOA, resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão e constitui expressa manifestação do princípio geral estatuído no artigo 84º do EOA, segundo o qual o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros”.

Nesta medida, o regime legal estabelecido a propósito do conflito de interesses cumpre uma tripla função[1]

 

 

a)    Defender a comunidade em geral, e os clientes de um qualquer Advogado em particular, de actuações menos lícitas e/ou danosas por parte de um Colega, conluiado ou não com algum ou alguns dos seus clientes;

b)    Defender o próprio Advogado da possibilidade de, sobre ele, recair a suspeita de actuar, no exercício da sua profissão, visando qualquer outro interesse que não seja a defesa intransigente dos direitos e interesses dos seus clientes;

c)     Defender a própria profissão, a Advocacia, do anátema que sobre ela recairia na eventualidade de se generalizarem este tipo de situações.

 

Preceitua a norma legal em apreço o seguinte:

“1 – O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.

2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3 – O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

5 - O Advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente. 

6 - Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.

 

Vejamos então o caso concreto.

 

Antes de mais, impõe-se aqui fazer uma pequena distinção quanto ao âmbito de aplicação dos n.º 3 e 4 do artigo 94º do EOA.

 

Na situação prevista no n.º 3, o Advogado representa já um cliente num determinado litígio e este preceito legal impede-o de aceitar o patrocínio de um novo cliente para o representar no mesmo litígio, se este tiver um interesse conflituante com aquele outro.

 

 

Por sua vez, o n.º 4 pressupõe que os dois (ou mais) clientes em conflito de interesses já sejam clientes quando surge o conflito.

 

De acordo com as premissas de facto transmitidas pelo Senhor Advogado Consulente – e que supra enunciamos –, é nosso entendimento que a primeira questão colocada se subsume à factispecie do n.º 4 do artigo 94º do EOA – ainda que por interpretação extensiva, conforme veremos de seguida.

 

O Senhor Advogado Consulente é actualmente Advogado das duas sócias gerentes da sociedade “--”, entretanto declarada insolvente.

 

Neste contexto, em sede graciosa, no âmbito do exercício do direito de retenção, o Senhor Advogado Consulente assumiu o patrocínio de ambas contra as reversões fiscais de que foram alvo.

 

Pretendendo deduzir Oposição às execuções fiscais, é intenção das sócias gerentes mandatar o Senhor Advogado Consulente para o efeito.

Quanto a este ponto, refere o Senhor Advogado Consulente que ao assumir a defesa de ambas as sócias gerentes, a matéria de facto a alegar colocará as sócias gerentes em posições, potencial e eventualmente, conflituantes.

 

 

Isto porque, não tendo uma das sócias gerentes exercido a gerência durante um determinado período de tempo, esta circunstância implicará, eventualmente, imputar a responsabilidade à outra.

 

Ora, olhando para a situação fáctica descrita, é para nós evidente, s.m.o., que existe conflito de interesses.

Não porque exista um conflito actual, mas porque existe, de forma evidente, essa mera potencialidade.

E a mens legis do preceito em análise é necessariamente preventiva, em ordem a prevenir que, mesmo nos caos em que não se antolhe um conflito – e, no caso vertente, o Senhor Advogado Consulente já prevê a probabilidade desse conflito –, ele não venha – não possa vir – a verificar-se.

Ou seja, basta que exista essa mera potencialidade, pois que o Advogado, no exercício da sua profissão deve estar sempre acima de qualquer suspeita.

 

Pelo que, no caso vertente, existindo, de forma evidente, a mera potencialidade de as duas sócias virem a assumir posições conflituantes, entendemos que o Senhor Advogado Consulente deverá abster-se de assumir o mandato em representação de ambas as sócias gerentes.

 

 

Mas poderá o Senhor Advogado Consulente assumir a representação de apenas uma das sócias gerentes?

 

Esta questão reveste-se de particular importância se tivermos em conta o disposto na 2ª parte do n.º 1 doartigo 94ºdo EOA, que, por facilidade de exposição, passamos a transcrever:

“ 1 - O Advogado deve recusar o patrocínio de uma questão (…) conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.”

 

E suscitamos esta questão porque o Senhor Advogado Consulente refere no ponto 9. do seu requerimento que “ (…) não tendo uma das sócias gerentes exercido a gerência durante um determinado período de tempo de vida da sociedade, implicará, eventualmente, imputar a responsabilidade à outra (sublinhado nosso)”. 

 

É que a expressão parte contrária a que se refere o artigo 94º do EOA não se resume ao conceito processual, e como tal as duas sócias gerentes poderão ser partes contrárias para efeitos de aferição de conflito de interesses, tudo dependendo da defesa que vieram a apresentar em sede de Oposição a deduzir à execução. E será desde logo o caso se essa defesa, de alguma forma, se consubstanciar na imputação de responsabilidade recíproca.

 

E, neste contexto, impõe-se que o Senhor Advogado Consulente avalie, antes da assunção do mandato em representação de qualquer uma das sócias gerentes, nomeadamente:


(i)  se está convicto de que no exercício do mandato de uma das sócias não sentirá a sua independência e isenção afectadas;

(ii)  se está convicto de que o exercício do mandato de uma das sócias não colocará em crise o sigilo profissional relativamente aos assuntos da outra sócia[2].

(iii) e se está convicto de que do conhecimento dos assuntos da sócia relativamente à qual não assumirá o mandato não resultam vantagens ilegítimas ou injustificadas para a sócia que vier a representar em juízo. 

 

E diga-se que só o Senhor Advogado Consulente estará em posição de fazer essa avaliação, já que a matéria do conflito de interesses é, em primeira linha, uma questão de consciência do próprio Advogado, competindo-lhe ajuizar se a assunção do novo mandato não o impedirá de exercer, de forma livre e sem quaisquer constrangimentos, a sua actividade, conforme exigido pelas normas ínsitas no seu estatuto profissional. 

 

Contudo, entendemos que, verificando-se qualquer uma das circunstâncias referidas em (i), (ii) e (iii) supra, deverá o Senhor Advogado Consulente abster-se de assumir o mandato em representação de qualquer das sócias gerentes. Esta será a única solução que permitirá assegurar o respeito pelos princípios da independência e da dignidade da profissão que o EOA consagra e cuja estrita observância reclama.

 

Vista a primeira questão, haverá agora que emitir pronúncia quanto à segunda questão colocada, que é a de saber se o Senhor Advogado Consulente poderá substabelecer, sem reserva, o mandato conferido por uma das suas constituintes em Advogado colaborador em regime de prestação de serviços, de não exclusividade, na Sociedade de Advogados da qual o Senhor Advogado Consulente é sócio.

 

Vejamos então.

 

Ora, quanto à questão, está em causa a correcta interpretação do disposto no n.º 6 do artigo 94º de EOA, que, por facilidade de exposição, passamos a transcrever:

Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.

 

 

O n.º 6 do artigo 94º do EOA consagrou a extensão do âmbito de aplicação das regras atinentes aos conflitos de interesses à actividade profissional desenvolvida em associação, sob forma de sociedade ou não, em relação a todos os Advogados associados.

 

A génese e a ratio do princípio são as de evitar situações promíscuas ou de transparência duvidosa quando o Advogado exerça a sua actividade em associação, entenda-se em grupo.

 

Nestas circunstâncias, o Advogado que exerça a sua actividade integrado em determinada estrutura deve respeitar as regras destinadas a evitar o conflito de interesses mesmo no que respeita a assuntos e clientes de outros Advogados integrados em estrutura societária ou de associação para os quais nunca tenha prestado serviços[3].

E isto independentemente do tipo de vínculo que liga o Advogado à Sociedade ou da natureza exclusiva, ou não, desse mesmo vínculo.

 

 

Assim, na situação em apreço, concluindo o Senhor Advogado Consulente pela existência de conflito de interesses nos termos atrás enunciados, não poderá qualquer outro Advogado que exerça a sua actividade profissional integrado naSociedade de Advogadosda qual o Senhor Advogado Consulente é sócio, assumir o patrocínio em causa.

 

É este, salvo melhor opinião, o nosso entendimento sobre a questão que nos foi colocada.

 

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2014.

 

A Assessora Jurídica do C.D.L.

 

Sandra Barroso

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

 

Notifique-se.

 

 

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2014.

 

O Presidente do Conselho Distrital de Lisboa

 

António Jaime Martins

 



[1] Cfr. Parecer doConselho Distrital de Lisboa n.º 6/02, aprovado em16.10.2002, e no qual foi relator o Senhor Advogado Dr. João Espanha.

[2] E aqui permitimo-nos acrescentar, embora certamente essa ponderação já tenha sido feita pelo Senhor Advogado Consulente, que também o sigilo profissional a que está adstrito por força dos serviços jurídicos prestados à sociedade entretanto declarada insolvente não poderá ser posto em causa, atento o disposto no artigo 94º n.º 5 do EOA.

[3] A inibição decorrente do n.º 6 do artigo 94º do EOA só vincula o Advogado enquanto exercer a sua profissão integrado nessa estrutura. Mas é evidente que um Advogado que deixa de exercer a profissão integrado numa determinada estrutura societária ou de associação mantém a obrigação de se abster de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de outros clientes da estrutura que integrou, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

e="">[2] Até à revisão de 2009 do Código do Trabalho, o artigo 10º do Código do Trabalho (aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto), definia o contrato de trabalho como sendo aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, sob a autoridade e direcção destas(sublinhado nosso). A expressão agora utilizada pelo legislador “no âmbito da organização e sob a autoridade” corresponde ao que, até à revisão de 2009, se designava como a autoridade e direcção a que o trabalhador se encontra submetido.

 

Sandra Barroso

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