Pareceres do CRLisboa

Consulta nº 7/2014

 CONSULTA N.º 7/2014

 

Assunto:       

  • Segredo Profissional – Artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro.

 

Questão

 

Através de comunicação escrita recepcionada nos Serviços doConselho Distrital de Lisboano dia 20 de Janeiro do corrente (entrada com o número de registo -), veio a Exma. Senhora Juíza do - Juízo de Competência Cível do Tribunal Judicial de -  solicitar aoConselho Distrital de LisboadaOrdem dos Advogadosa emissão de parecer quanto a uma questão de eventual violação do dever de sigilo profissional, previsto no artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

 

Subjacente à questão que nos foi colocada, está a factualidade que passamos a enunciar, estritamente de acordo com os elementos que foram colocados à nossa disposição.

 

Corre termos naquele Tribunal, sob o n.º -, uma acção declarativa de condenaçãoem que é Autoraa sociedade -., e Réu --.

Na audiência final realizada em21 de Novembro de 2013, o Réu, representadoem juízo pelo Senhor AdvogadoDr. -, apresentou, ao abrigo do disposto no artigo 588º do Código de Processo Civil (doravante CPC), um articulado superveniente.

 

No mencionado articulado, invoca o Réu anomalias na moradia objecto da empreitada em discussão nos autos de que tomou conhecimento posteriormente à prolação do despacho que designou data para a audiência final.

 

No ponto 25. do articulado superveniente, alega o Réu o seguinte: “A A. alega que se recusa eliminar defeitos da moradia, recusando-se ao contrário do acordado entre as partes, a realizar nos primeiros cinco anos pós termo da empreitada, manutenção à cadeira elevatória, aos aparelhos de ar condicionado, aos painéis solares e à parte eléctrica do lar, enquanto não receber os montantes por ela reclamados na petição inicial (…)”.

 

Proferido despacho liminar sobre a admissão do articulado superveniente, foi concedido à Autora, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 588º do CPC, o prazo de 10 (dias), para resposta.

No artigo 25º da Resposta, a Autora, representada em juízo pela Senhora AdvogadaDra. -, sustenta o seguinte: “A Autora não se recusa a eliminar defeitos da moradia, ao contrário do referido pelo Réu, e tanto assim é que, já na pendência da ação, foi realizada uma vistoria à moradia, em 23.02.2011, e comunicado as reparações que seriam realizadas – conforme doc. 3 que se junta e dá por reproduzido para todos os efeitos legais”.

 

Notificado do teor da Resposta, e para o que ora releva, veio o Réu “Impugnar o documento 01 (leia-se doc. 3) junto pelo A., por se tratar de meio proibido de prova (artigo 195 do Código Penal, art 87 n.º 1 f) e n.º 5 e artigo 108 n.º 1, ambos do Estatuto da Ordem dos Advogados) (…)”. 

 

 Notificada do requerimento do Réu, veio a Autora sustentar o seguinte:

“ (…)

O documento n.º 1 junto aos autos é uma fotografia, não é um meio proibido de prova. O Réu ao mencioná-lo, o que fez certamente por lapso, devia esta a referir-se ao documento junto como n.º 3, o qual NÃO se encontra contemplado em nenhuma das alíneas do art. 87º do EOA, nomeadamente na alínea f) indicada pelo Réu, pois não se trata de factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações, trata-se de uma comunicação feita pela mandatária da Autora ao mandatário do Réu, na qual NÃO está expresso o carácter de confidencialidade. Não junta a mandatária qualquer comunicação e/ou resposta do Colega, pelo que, não se vislumbra onde é que se pode concluir pela existência de negociações.

(…)”.

 

É, portanto, neste contexto, que é solicitada a nossa pronúncia.

 

 Da competência consultiva do Conselho Distrital de Lisboa

 

Nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 50º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA), aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, compete aos Conselhos Distritais pronunciarem-se sobre questões de carácter profissional, que se suscitem no âmbito da sua competência territorial.

 

A competência consultiva dos Conselhos Distritais está, assim, limitada pelo EOA a questões inerentemente estatutárias, isto é, as que decorrem dos princípios, regras, usos e praxes que regulam e orientam o exercício da profissão, maxime as que decorrem das normas do EOA, do regime jurídico das Sociedades de Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido pela lei aos órgãos da Ordem dos Advogados.

 

A matéria colocada à apreciação deste Conselho Distrital subsume-se, precisamente, a uma questão de carácter profissional nos termos descritos, pelo que haverá que proceder à emissão de Parecer quanto à questão que nos foi colocada.

 

Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa

 

A prossecução da justiça e do direito, verdadeiros objectivos da profissão de Advogado, implicam que, necessariamente, qualquer pessoa que tenha de recorrer aos serviços de um Advogado, disponha de total confiança para que possa a este revelar os seus segredos, os seus interesses, sem qualquer receio de revelação dos mesmos (revelação essa que, a ser permitida, poderia colocar esses mesmos interesses em causa).

 

O Advogado tem uma dignidade e um estatuto próprios, não lhe sendo lícito revelar livremente factos, ainda que contidos em documentos, de que teve conhecimento no exercício da profissão, ainda que o (antigo) cliente lhe conceda autorização para tal, ou ainda que a sua revelação vise a defesa dos legítimos interesses do (antigo) cliente. 

 

O segredo profissional tem na sua génese a necessidade não só de garantir a relação de confiança entre o Advogado e o seu cliente – que deve ser sem limites, mas também o interesse público da função do Advogado enquanto agente activo da administração da justiça, entendida em sentido amplo e não restrita à actividade judicial.

 

O regime do segredo profissional encontra-se, em larga medida, desenhado no artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

O n.º 1 deste artigo contém aquilo que poderá caracterizar-se como a verdadeira regra geral do instituto jurídico-deontológico.

Aí se pode ler que “ O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”.

Pode até dizer-se que, em certa medida, as demais regras previstas nas diversas alíneas do n.º 1, cujo elenco é meramente indicativo como decorre do elemento literal, são sobretudo explicitações ou pormenorizações daquela, que terão sido incluídas no EOA para salientar situações mais marcantes ou de maior dificuldade de interpretação.

 

O que seja segredo tem de ser aferido por três vias:

  1. pela forma como o conhecimento do facto chegou ao Advogado, quem o revelou e em que quadro fáctico;
  2. pelo teor do facto, que ajuda a perceber se tem ou não a natureza de segredo, pois nem tudo o que é revelado ao Advogado é, em si, um segredo;
  3. pelas próprias circunstâncias do conhecimento e da revelação.

 

A análise feita através deste triplo crivo, ajuda a discernir o que é e o que não é segredo.

 

Traçadas as linhas gerais que irão orientar o nosso pensamento, passemos de seguida à questão que ora nos ocupa, atendendo, estritamente, aos elementos que foram colocados à nossa disposição.  

 

O documento n.º3, aque é feita referência no artigo 25º da Resposta ao Articulado Superveniente, corresponde a um email datado de 04.04.2012, subscrito pela actual mandatária da Autora e dirigido ao actual mandatário do Réu.

 

Lê-se no mencionado email o seguinte:

“ (…)

Tal como já deve ser do seu conhecimento foi efetuada a vistoria ao imóvel do seu constituinte, tendo sido feito um levantamento dos defeitos/assistência a prestar pela minha cliente e que são os seguintes:

  1. Retificação de todas as anomalias que constam no ponto 2.4 do Relatório de Inspecção Técnica elaborado pelo Eng. ---
  2. Prazo de execução previsto (…)
  3. Em 4 Fases de Execução (…)
  4. (…)
  5. (…)
  1. As intervenções acontecerão após o pagamento de 50% do valor em dívida (após dedução do desconto oferecido).
  2. O restante valor por liquidar será pago, uma semana após a aceitação dos trabalhos de reparação pelo perito e dono da obra.

 

Submeto, assim, à apreciação do Exmo. Colega a proposta apresentada, com o objectivo de resolução da situação sem que tenhamos de arrastar o processo judicial (…)”.

 

Defende a mandatária da Autora que o email em causa não está abrangido pela esfera de protecção do sigilo profissional, nomeadamente, por entender que o mesmo “ (…) não se encontra contemplado em nenhuma das alíneas do art. 87º do EOA, nomeadamente na alínea f) indicada pelo Réu, pois não se trata de factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações, trata-se de uma comunicação feita pela mandatária da Autora ao mandatário do Réu, na qual não está expresso o carácter de confidencialidade. Não junta a mandatária qualquer comunicação e/ou resposta do Colega, pelo que, não se vislumbra onde é que se pode concluir pela existência de negociações. (…)”.

 

O princípio geral é o de que os Advogados estão obrigados a guardar segredo profissional em relação a assuntos profissionais versados em correspondência trocada com Colegas. Tal decorre de forma inequívoca do disposto nos artigos 87º e 71º do EOA.

Isto é, toda a correspondência que respeite ao exercício da profissão está, em regra, abrangida pela esfera de protecção do sigilo profissional.

  

Como supra referimos, o elenco das alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo 87º do EOA é meramente indicativo como resulta, desde logo, do elemento literal.

Ou seja, a circunstância de determinada correspondência trocada entre Colegas e respeitantes a assuntos profissionais não cair directamente na fattispecie de nenhuma das mencionadas alíneas não significa, ispo facto, que a mesma não possa estar abrangida pela esfera de protecção do sigilo profissional por força da cláusula geral contida no n.º 1 da referida norma legal.

 

O artigo 108º do EOA consagra a confidencialidade da correspondência trocada entre Advogados, o qual, por facilidade de exposição, passamos a transcrever, ainda que parcialmente:

“1- Sempre que um advogado pretenda que a sua comunicação, dirigida a outro advogado, tenha carácter confidencial, deve exprimir, claramente, tal intenção.

2 – As comunicações confidenciais não podem, em qualquer caso, constituir meio de prova, não lhes sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 87º.

(…)”.

 

Mas, como já ficou dito, independentemente de declaração expressa de confidencialidade, o Advogado está obrigado a guardar segredo profissional em relação aos assuntos profissionais versados em correspondência trocada com Colegas.

 

A diferença de regime entre a correspondência classificada ou não como confidencial reside apenas no seguinte.

 

  

A que for classificada como confidencial, ao invés da que não for classificada como confidencial, não poderá nunca ser revelada, não podendo, em qualquer circunstância, ser objecto do pedido de autorização previsto no n.º 4 do artigo 87º do EOA. 

 

Do exposto, se extrai que, salvo o devido respeito, não procedem os argumentos aduzidos pela mandatária da ora Autora.

 

No caso vertente, olhando para o documento que constitui o objecto do presente pedido de parecer, concluímos, s.m.o., que o mesmo encerra uma proposta negocial[1], proposta esta que surgiu na pendência da acção actualmente em curso, e que contém a posição e os fundamentos da Autora quanto a factos agora controvertidos nessa mesma acção.

 

E, versando a correspondência em causa sobre factos conhecidos no exercício da profissão e por causa desse mesmo exercício, dúvidas não temos de que a mesma está abrangida pela esfera de protecção do dever de sigilo, por força do disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 87º do EOA.

 

O que significa que, nos termos do regime legal em vigor, a sua junção aos autos pressuporia um pedido de autorização prévia. O que, no caso concreto, não sucedeu.

 

  

Assim, com rigor processual, o documento em causa está sujeito à cominação prevista no n.º 5 do artigo 87º do EOA.

E, realce-se, que este entendimento se impõe e prevalece ainda que sob o pretexto de que o mesmo foi junto aos autos para defesa dos legítimos interesses da cliente.

De facto, não podemos esquecer que estamos perante um dever com carácter social ou de ordem pública e não de natureza meramente contratual.

 

Contudo, e sem prejuízo deste nosso entendimento, o certo é que, nos termos da lei (cf. artigo 202º da Constituição da República Portuguesa e artigo 2º n.º 2 da Lei da Organização do Sistema Judiciário) é aos Tribunais que pertence a função jurisdicional e, portanto, a capacidade de julgar em definitivo se um meio de prova é ou não válido.

 

É este, salvo melhor opinião, o nosso entendimento sobre a questão que nos foi colocada.

 

Lisboa, 21 de Março de 2014.

 

A Assessora Jurídica do CDL

 Sandra Barroso

 

 Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

 

Lisboa, 21 de Março de 2014.

 

O Presidente doConselho Distrital de Lisboa 

  António Jaime Martins  



[1] Desconhecemos se, efectivamente, na sequência deste email existiram negociações entre as partes, contudo, tal circunstância não se mostra decisiva para a pronúncia a emitir. 

Sandra Barroso

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