Pareceres do CRLisboa

Consulta nº 9/2014

CONSULTA N.º 9/2014

Assunto:       

  • Incidente processual de quebra do sigilo profissional – Artigo 135º do Código de Processo Penal e Artigo 87º do EOA.

 

Questão

 

Através de comunicação escrita recepcionada nos Serviços doConselho Distrital de Lisboano dia 24 de Janeiro do corrente (entrada com o número de registo -), veio o Exmo. Juiz Desembargador da - Secção do Tribunal de - solicitar aoConselho Distrital de LisboadaOrdem dos Advogadosa emissão de parecer, nos termos e para os efeitos do disposto nos números 3 e 4 do artigo 135º do Código de Processo Penal (doravante CPP).

 

O incidente de quebra do sigilo profissional foi suscitado no âmbito do processo pendente na - Secção do - Juízo do -, sob o n.º -, quanto ao Senhor Advogado Dr. -.

 

Em momento anterior ao incidente processual ora em análise, o Senhor Advogado requereu ao Senhor Presidente deste Conselho então em funções o competente pedido de dispensa do sigilo profissional, o qual foi objecto de despacho de indeferimento, por se ter concluído não se mostrarem devidamente preenchidos os requisitos exigidos pelo regime legal em vigor – artigo 87º n.º 4 do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro) e Regulamento de Dispensa do Segredo Profissional (Regulamento n.º 94/2006, de 12 de Junho).

 

Ulteriormente, tendo tomado conhecimento da decisão proferida pelo Senhor Presidente deste Conselho, o Ministério Público, não prescindindo do depoimento do Senhor Advogado, requereu que fosse suscitado o incidente de quebra do sigilo profissional junto do Tribunal de -, enquanto Tribunal competente para ordenar o seu depoimento com quebra do sigilo profissional.

 

Recebido o incidente no Tribunal de -, veio o Exmo. Juiz Desembargador solicitar a nossa pronúncia nos termos legalmente impostos.

 

Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa  

 

Nunca é de mais referir o carácter fundamental e verdadeiramente basilar que a dever de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia.

Mas não só.

Trata-se de dever de primordial importância para o reconhecimento da plenitude do Estado do Direito Democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.

 

É que o Estado de Direito Democrático não só exige um poder judicial independente, como também pressupõe e postula o exercício de uma Advocacia livre, independente e responsável.

Ora, condição essencial ao exercício da profissão é a absoluta confiança que deve presidir à relação advogado cliente, fundada, naturalmente, no princípio do respeito pelo segredo profissional, a que a lei e a Constituição asseguram, com latitude, a adequada tutela.

 

 Transcendendo o âmbito da relação advogado cliente, o segredo profissional reveste-se ainda de uma dimensão de ordem pública, tal como resulta claro do regime legal constante do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor (aprovado pela Lei n.º 15/2005, 26 de Janeiro). E isto porque o sigilo tem outras dimensões e outros beneficiários para além do cliente, devendo o advogado ser, nas suas múltiplas relações sociais e profissionais, merecedor de confiança e isenção. Não apenas o advogado individualmente considerado, como profissional liberal que é, mas como membro de uma classe profissional.

 

Por isso convirá realçar, de forma plenamente convicta, que se está na presença de um dever que constitui um princípio estruturante da Advocacia, assente não só na tutela dos interesses particulares que lhe possam estar subjacentes mas adquirindo igualmente uma dimensão de ordem pública. Mais do que um dever do próprio profissional, “ o sigilo é um dever de toda a classe, é condição da plena dignidade do Advogado bem como da Advocacia”[1].

Tal não significa que o dever de segredo seja absoluto.

 

Situações existem em que o levantamento do dever de guardar sigilo profissional se poderá, excepcionalmente, justificar. Assim, e para o efeito, estabelece a lei dois mecanismos que se diferenciam desde logo a propósito do sujeito que tem legitimidade para impulsionar o levantamento do segredo profissional:

  1. Dispensa de sigilo profissional, a qual é solicitada pelo Advogado adstrito ao dever de segredo ao Presidente do Conselho Distrital competente, sendo concedida, caso se verifiquem preenchidos os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados;
  2. Incidente processual de quebra de sigilo profissional, previsto no artigo 135º do Código de Processo Penal[2], tendo legitimidade para o desencadear qualquer das partes em juízo ou a autoridade judiciária.

 

A decisão da quebra de sigilo é tomada, com audição prévia da Ordem dos Advogados, audição essa que recairá, inevitavelmente, sobre o preenchimento ou não preenchimento das condições de que depende a quebra do sigilo profissional. Ou seja, sobre a existência de um interesse superior aos interesses que se visa proteger com o dever de segredo.

 

Assim, para que se possa concluir pela existência de um interesse preponderante, haverá que verificar-se, em concreto e nos termos em que o pedido de quebra se encontra fundado:

 

(i)  se o depoimento é absolutamente imprescindível para a descoberta da verdade material;

(ii)  se o crime apresenta uma gravidade tal que implicará a quebra do dever de sigilo profissional, dever este que, conforme tem sido referido em diversa doutrina e jurisprudência, quer dos diversos órgãos da Ordem dos Advogados, quer dos tribunais, se reveste de interesse público (o que, desde logo, afastará a possibilidade de quebra em crimes de menor danosidade social);

(iii) a necessidade da protecção dos bens jurídicos afectados (tendo em conta a importância destes).

 

  

Em particular, no que à imprescindibilidade do depoimento diz respeita, haverá que verificar se o depoimento do Advogado com quebra do sigilo se reveste de absoluta necessidade, isto é, de imprescindibilidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser indispensável (ou seja, imprescindível, e não meramente útil) face ao objectivo de prova visado; de essencialidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser absolutamente determinante; e de exclusividade, pressupondo este requisito a inexistência de qualquer outro meio de prova que não o depoimento do obrigado ao sigilo.

 

Vejamos então.

 

No caso vertente, o Ministério Público fundamenta o seu pedido de audição do Senhor Dr. - com quebra de sigilo profissional nos seguintes termos:

“ Atento o sentido das decisões da Ordem dos Advogados juntas a fls. 1843/1844 e 1887 no sentido de não julgar dispensadas do regime de segredo profissional as testemunhas – e -, e porque se tem por certo que os seus depoimentos se mostram essenciais à descoberta da verdade, requer-se, ao abrigo do disposto no art.º 135º, n.º 3 do Código de Processo Penal, sejam suscitados os correspondentes incidentes de quebra do sigilo profissional, a decidir pelo Tribunal de -, a fim de serem prestados tais depoimentos. (…)”.

 

É esta, ipsis litteris, a fundamentação aduzida pelo Ministério Público.

 

Ora, do exposto, extraímos, com relevância para a pronúncia a emitir, as seguintes conclusões.

  

Desde logo, desconhecemos a que factos da decisão instrutória o depoimento do Senhor Advogado Dr. - é pretendido.

E seria indispensável para a pronúncia a emitir que nos tivessem sido dados a conhecer quais os factos, concretos e determinados, a que a audição do Senhor Advogado com quebra do sigilo profissional é pretendida.

De facto, só conhecendo esses factos estaríamos em condições de, em conjugação com as demais particularidades do caso concreto, verificar se o dever de sigilo profissional deveria ceder face ao interesse constitucional da administração da justiça penal, que assume sempre uma relevância de última ratio.

 

Por outro lado, tal como se encontra recortado o pedido de audição da Ordem dos Advogados, nada nos permite concluir pela existência de um interesse preponderante ao sigilo que leve ao sacrifício deste dever.

Para que seja quebrado o dever de sigilo profissional, será sempre exigível uma situação de total excepcionalidade e absoluta necessidade da audição do Advogado em causa sobre os factos de que tomou conhecimento no exercício da profissão.

O que não se manifesta de forma nenhuma na fundamentação – rectius, na escassez de fundamentação – em que assenta o incidente de quebra de sigilo profissional deduzido e ora sob análise.

Não nos parece suficiente, salvo o devido respeito, que o pedido de audição de um Advogado com quebra de sigilo profissional se funde, única e exclusivamente, na sua essencialidade para a descoberta da verdade material.

A fundamentação factual da total excepcionalidade e absoluta necessidade da audição do Advogado seria, a nosso ver, relevante para a pronúncia a emitir.

Mas mais ainda.

 

 É que a tal situação excepcional não se mostra minimamente fundamentada ou concretizada no incidente de quebra de sigilo profissional ora em apreço, desde logo, porque também desconhecemos se o depoimento do Senhor Advogado Dr. - é, efectivamente, um meio de prova exclusivo dos factos aos quais o seu depoimento é pretendido. 

O recurso ao depoimento de Advogado para prova deve ser sempre encarado como um meio excepcionalíssimo, sob pena de se banalizarem os deveres fundamentais desta nossa profissão. O meio de prova sujeito a sigilo terá sempre de ser um meio de prova exclusivo, único meio de prova de determinado facto ou acervo de factos. Não interessa, em matéria de sigilo, que o meio de prova sujeito a sigilo seja o melhor, o mais eficaz ou o meio de prova de obtenção mais simples. Terá de ser o único meio de prova da factualidade visada nos autos.

E, no caso concreto, nada nos permite concluir nesse sentido. 

 

Em suma, não sendo possível, nos termos atrás fundamentados, concluir pela imprescindibilidade, essencialidade e exclusividade do depoimento pretendido, forçoso é concluir que não estão, a nosso ver, reunidas as condições de que depende a audição do Senhor Advogado Dr. - com quebra do sigilo profissional, no âmbito do processo pendente na - Secção do - Juízo - , sob o n.º -.

 

Lisboa, 24 de Março de 2014.

 

A Assessora Jurídica do CDL

 Sandra Barroso

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 24 de Março de 2014.

 

O Presidente doConselho Distrital de Lisboa

  António Jaime Martins

 



[1] Bastonário Dr. Augusto Lopes Cardoso, in “Do segredo profissional na Advocacia”, Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, 1998, p. 17.

[2] Também aplicável ao processo civil por remissão do artigo 417º n.º 4 do Código de Processo Civil. 

Sandra Barroso

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