Pareceres do CRLisboa

Consulta nº 12/2014

CONSULTA N.º 12/2014

 

Assunto:

  • Incidente processual de quebra do sigilo profissional – Artigo 135º do Código de Processo Penal e Artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro).

 

Questão

 

Através de comunicação escrita recepcionada nos Serviços do Conselho Distrital de Lisboa no dia XX de Janeiro do corrente (entrada com o número de registo -), veio o Exmo. Juiz Desembargador da - Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de XXXX - solicitar ao Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados a emissão de parecer, nos termos e para os efeitos do disposto nos números 3 e 4 do artigo 135º do Código de Processo Penal (doravante CPP).

 

O pedido que nos encontramos a apreciar tem subjacente a factualidade que passamos a enunciar.

 

Correm termos no Tribunal Judicial de --, sob o n.º-, uns autos de instrução, no âmbito dos quais os arguidos se encontram acusados da prática de um crime de burla tributária, previsto e punido pelo artigo 87º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), relacionado com o pedido de concessão de benefícios fiscais no âmbito da fusão entre as sociedades A., e a B.

 

 

No requerimento de abertura de instrução, os arguidos --- requereram a inquirição como testemunha do Senhor  Dr. C.

 

No despacho de abertura de instrução, foi ordenada e deprecada a inquirição da referida testemunha ao Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, dando origem aos autos de carta precatória n.º - , que correram termos pelo - Juízo de Instrução Criminal de Lisboa.

 

Em sequência, o Senhor Dr. C apresentou nos autos de carta precatória um requerimento, no qual, em síntese, sustenta estar impedido de depor por o depoimento a prestar incidir sobre factos abrangidos pela esfera de protecção do sigilo profissional.

 

A requerimento dos arguidos, o Exmo. Senhor Juiz de Instrução do Tribunal Judicial de -  requereu que fosse suscitado o incidente de quebra do sigilo profissional junto do Tribunal da Relação de XXXX - , por ser o Tribunal competente para ordenar o depoimento do Senhor Dr. C com quebra do sigilo profissional.

 

Recebido o incidente no Tribunal da Relação de XXXX -, veio o Exmo. Juiz Desembargador solicitar a nossa pronúncia nos termos legalmente impostos.

 

 

 

Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa  

 

Nunca é de mais referir o carácter fundamental e verdadeiramente basilar que a dever de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia.

Mas não só. Trata-se de dever de primordial importância para o reconhecimento da plenitude do Estado do Direito Democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.

 

É que o Estado de Direito Democrático não só exige um poder judicial independente, como também pressupõe e postula o exercício de uma Advocacia livre, independente e responsável.

Ora, condição essencial ao exercício da profissão é a absoluta confiança que deve presidir à relação advogado cliente, fundada, naturalmente, no princípio do respeito pelo segredo profissional, a que a lei e a Constituição asseguram, com latitude, a adequada tutela.

 

Transcendendo o âmbito da relação Advogado cliente, o segredo profissional reveste-se ainda de uma dimensão de ordem pública, tal como resulta claro do regime legal constante do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor (aprovado pela Lei n.º 15/2005, 26 de Janeiro).

E isto porque o sigilo tem outras dimensões e outros beneficiários para além do cliente, devendo o Advogado ser, nas suas múltiplas relações sociais e profissionais, merecedor de confiança e isenção. Não apenas o Advogado individualmente considerado, como profissional liberal que é, mas como membro de uma classe profissional.

 

Por isso convirá realçar, de forma plenamente convicta, que se está na presença de um dever que constitui um princípio estruturante da Advocacia, assente não só na tutela dos interesses particulares que lhe possam estar subjacentes mas adquirindo igualmente uma dimensão de ordem pública. Mais do que um dever do próprio profissional, “ o sigilo é um dever de toda a classe, é condição da plena dignidade do Advogado bem como da Advocacia”[1].

 

Tal não significa que o dever de segredo seja absoluto.

Situações existem em que o levantamento do dever de guardar sigilo profissional se poderá, excepcionalmente, justificar.

Assim, e para o efeito, estabelece a lei dois mecanismos que se diferenciam desde logo a propósito do sujeito que tem legitimidade para impulsionar o levantamento do segredo profissional:

  1. Dispensa de sigilo profissional, a qual é solicitada pelo Advogado adstrito ao dever de segredo ao Presidente do Conselho Distrital competente, sendo concedida, caso se verifiquem preenchidos os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados;
  2. Incidente processual de quebra de sigilo profissional, previsto no artigo 135º do Código de Processo Penal[2], tendo legitimidade para o desencadear qualquer das partes em juízo ou a autoridade judiciária.

 

A decisão da quebra de sigilo é tomada, com audição prévia da Ordem dos Advogados, audição essa que recairá, inevitavelmente, sobre o preenchimento ou não preenchimento das condições de que depende a quebra do sigilo profissional. Ou seja, sobre a existência de um interesse superior aos interesses que se visa proteger com o dever de segredo.

 

Assim, para que se possa concluir pela existência de um interesse preponderante, haverá que verificar-se, em concreto e nos termos em que o pedido de quebra se encontra fundado:

(i) se o depoimento é absolutamente imprescindível para a descoberta da verdade material;

(ii) se o crime apresenta uma gravidade tal que implicará a quebra do dever de sigilo profissional, dever este que, conforme tem sido referido em diversa doutrina e jurisprudência, quer dos diversos órgãos da Ordem dos Advogados, quer dos tribunais, se reveste de interesse público (o que, desde logo, afastará a possibilidade de quebra em crimes de menor danosidade social);

(iii) a necessidade da protecção dos bens jurídicos afectados (tendo em conta a importância destes).

 

Em particular, no que à imprescindibilidade do depoimento diz respeita, haverá que verificar se o depoimento do Advogado com quebra do sigilo se reveste de absoluta necessidade, isto é, de imprescindibilidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser indispensável (ou seja, imprescindível, e não meramente útil) face ao objectivo de prova visado; de essencialidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser absolutamente determinante; e de exclusividade, pressupondo este requisito a inexistência de qualquer outro meio de prova que não o depoimento do obrigado ao sigilo.

 

 

Vejamos então o caso concreto.

 

Os arguidos encontram-se acusados da prática de um crime de burla tributária agravada, previsto e punido pelo artigo 87º n.ºs 1 e 3 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho.

 

Dispõe a norma legal em causa que:

“1 – Quem, por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro é púnico com prisão até três anos ou multa até 360 dias.

(…)

3 – Se a atribuição patrimonial for de valor consideravelmente elevado, a pena é a da prisão de dois a oito anos para as pessoas singulares e de multa de 480 a 1920 dias para as pessoas colectivas”. 

 

 

São elementos constitutivos do crime de burla tributária, (i) o uso de erro ou engano sobre factos, provocado por meios fraudulentos como falsas declarações, falsificação ou viciação de documentos fiscalmente relevante, (ii) que sejam aptos a determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais (iii) das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro.

Portanto, a norma incriminadora aqui em causa está estruturada como um crime de resultado e de execução vinculada, isto é, para além do resultado obtido, exige que este resultado seja obtido através de um dos meios previstos no tipo.

 

Quanto aos elementos subjectivos, exige o ilícito criminal que (i) o agente actue com conhecimento e representando os elementos objectivos do tipo e com intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilícito (dolo do tipo) e que (ii) o agente actue com consciência da ilicitude criminal da sua conduta ou, actuando sem consciência dessa ilicitude, o erro lhe seja imputável.

 

Se tivermos em conta a elevada importância do bem jurídico protegido pela norma legal – sobrevivência do próprio Estado e, num contexto global, toda a ordem social –, podemos concluir que o crime se reveste de particular gravidade, mormente se tivermos em conta o nosso actual contexto sócio-económico.

 

Mas, será o depoimento pretendido absolutamente necessário para a descoberta da verdade material? 

 

Tal como decorre dos elementos colocados à nossa disposição, a Sociedade de Advogados X, assessorou a “Operação” que está subjacente ao processo-crime em curso.

O trabalho fiscal foi realizado pelo Senhor Dr. C (à data dos factos sócio sénior da X) e pelo Senhor Advogado Dr.- (actualmente sócio da X), cabendo a coordenação geral do trabalho ao Senhor Dr. C.

O Senhor Dr. C é mencionado pelos arguidos como tendo sido o responsável pela definição da estratégia fiscal subjacente a toda a “Operação” e respectiva conformidade legal.

 

Com o depoimento do Senhor Dr. C, pretendem os arguidos demonstrar a inexistência de dolo e de culpa, ou seja, de que não actuaram com consciência de que a sua conduta consubstanciava o ilícito penal pelo qual estão acusados e com vontade de a realizar.

Pretendem, assim, os arguidos demonstrar que a sua actuação foi legal face à interpretação defendida pelos especialistas que contrataram para assessorar a “Operação” e sempre realizada na fundada convicção de legalidade.

 

Do exposto, e dos demais elementos do processo, infere-se que se mostra imprescindível para a defesa dos arguidos demonstrar que foi, rigorosamente, sob o conselho jurídico do Senhor Dr. C e de acordo com as opiniões jurídicas por este veiculadas que tomaram as decisões que tomaram sobre o negócio objecto do processo-crime em curso e não foi, em momento algum, equacionada a ilicitude penal das suas condutas.  

 

Contudo, e como atrás referimos, a imprescindibilidade do depoimento da testemunha em causa pressupõe ainda que se mostre verificado o requisito da exclusividade da dispensa.

 

Para que seja quebrado o dever de sigilo profissional, será sempre exigível uma situação de total excepcionalidade e absoluta necessidade da audição do Advogado sobre os factos de que tomou conhecimento no exercício da profissão.

O que não se manifesta, quanto a este requisito em particular, de forma nenhuma na fundamentação – rectius, na escassez de fundamentação – em que assenta o incidente de quebra de sigilo profissional deduzido e ora sob análise.

 

De facto, no pedido que nos foi dirigido, não estão identificados de modo objectivo, concreto e exacto quais os factos aos quais o depoimento do Senhor Dr. C é pretendido, antes dele resultando que o depoimento a prestar recairá sobre o aconselhamento jurídico prestado globalmente considerado.

E, não esqueçamos que a audição de um Advogado com quebra do sigilo profissional é um meio de prova excepcionalíssimo, nunca podendo assumir a natureza de uma espécie de autorização genérica ou de uma espécie de carta em branco, que permita ao Advogado invocar todos os factos de que tenha conhecimento. Naturalmente que o carácter sempre excepcional da audição de um Advogado com quebra do sigilo profissional, impõe que a dispensa incida sobre factos concretos e determinados.

E, no caso concreto, tal não foi concretizado.

Destarte, também não nos é possível concluir, com o rigor que a matéria exige, se existirão, ou não, outras testemunhas que, com igual razão de ciência, possam prestar depoimento aos factos ou a alguns dos factos aos quais o depoimento do Senhor Dr. C é pretendido.

 

Em suma, não sendo possível, face aos elementos que foram colocados à nossa disposição e à fundamentação que sustenta o pedido ora sob análise, concluir pela absoluta necessidade do depoimento pretendido, forçoso é concluir que não estão, a nosso ver, reunidas as condições de que depende a audição do Senhor Dr. C com quebra do sigilo profissional, no âmbito do processo pendente no Tribunal Judicial de XXXX - , sob o n.º - , e actualmente em fase de Instrução.

 

Lisboa, 20 de Maio de 2014.

 

A Assessora Jurídica do CDL

 

Sandra Barroso

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 20 de Maio de 2014.

 

O Presidente do Conselho Distrital de Lisboa

 

António Jaime Martins

 



[1] Bastonário Dr. Augusto Lopes Cardoso, in “Do segredo profissional na Advocacia”, Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, 1998, p. 17.

[2] Também aplicável ao processo civil por remissão do artigo 417º n.º 4 do Código de Processo Civil.

Sandra Barroso

Topo