Pareceres do CRLisboa

Consulta nº 24/2014

 

CONSULTA N.º 24/2014

 

Assunto:       

  • Segredo Profissional – Artigos 87º e 108º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro.

 

Questão

 

Através de comunicação escrita recepcionada nos Serviços do Conselho Distrital de Lisboa no dia XX de Maio do corrente (entrada com o número de registo ---), a Exma. Senhora Juíza do - Juízo do Tribunal - veio solicitar ao Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados a emissão de parecer quanto a uma questão de eventual violação do dever de sigilo profissional, previsto no artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

 

Subjacente à questão que nos foi colocada, está a factualidade que passamos a enunciar, estritamente de acordo com os elementos que foram colocados à nossa disposição.

 

Corre termos naquele Tribunal, sob o n.º - , um procedimento cautelar especificado de suspensão de deliberação social em que é Requerente A e Requerida a sociedade comercial B.

 

Com o Requerimento Inicial, o Requerente, representado em juízo pelo Senhor Advogado Dr. A, juntou diversos documentos e, designadamente, os documentos n.ºs 6, 14, 15, 16, 17 e 26.

Através de requerimento apresentado em 4 de Março de 2014, com a referência 161208085, veio ainda o Requerente a juntar aos autos diversos documentos e, nomeadamente, o documento junto sob o n.º 1.

 

Em sede de Oposição, a Requerida, representada em juízo pela Senhora Advogada Dra. B , requer o desentranhamento desses mesmos documentos.

 

 

Para tanto, sustenta a Requerida que “A junção de tais documentos representa uma clara violação do sigilo profissional por se tratar de correspondência trocada entre advogados sujeita a sigilo, nos termos do art.º 108º conjugado com o art.º 87º n.º 4 do E.O.A., uma vez que foi trocada no âmbito de uma tentativa de composição amigável do diferendo que opõem os acionistas da sociedade Requerida.”.

 

Notificado da Oposição, o Requerente, ao abrigo do disposto no artigo 3º n.º 3 do Novo Código de Processo Civil, e quanto à questão da violação do sigilo profissional, veio alegar o seguinte:

“ (…) não nos parece que assista, neste caso em concreto, qualquer razão à Requerida.

Efectivamente bastará uma leitura dos documentos aqui em questão, para perceber que os mesmos não foram trocados no âmbito de qualquer tentativa de composição amigável de litígio, nem mesmo o seu conteúdo está de alguma forma relacionado com qualquer tipo de negociações.

De facto o único documento que poderia neste caso em concreto suscitar algumas dúvidas seria o n.º 6 junto com o requerimento inicial, contudo como se poderá ver pelo teor dos factos relativamente aos quais este documento diz respeito, o mesmo não visa fazer prova de qualquer factualidade relacionada com a composição amigável do presente litigo, nem contém referências expressa a qualquer proposta negocial.

Assim sendo, outra não pode ser a conclusão senão a de que estes documentos não estão, nos termos dos artigos 87º n.ºs 1 e 3 e 108º do Estatuto da Ordem dos Advogados protegidos pelo sigilo profissional. (…)”.

 

Considerando as posições das partes, entendeu oTribunal existirem fundadas dúvidas quanto à existência ou não de segredo profissional, razão pela qual foi ordenada a audição deste Conselho.

 

O pedido foi instruído com cópias dos articulados e respectivos documentos e, nomeadamente, dos documentos objecto do pedido de Parecer.

Mais é requerida resposta urgente, por estarmos no âmbito de um procedimento cautelar cuja audiência final está agendada para o próximo dia xx de Junho.

 

 

Da competência consultiva do Conselho Distrital de Lisboa

 

Nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 50º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA), aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, compete aos Conselhos Distritais pronunciarem-se sobre questões de carácter profissional, que se suscitem no âmbito da sua competência territorial.

 

A competência consultiva dos Conselhos Distritais está, assim, limitada pelo EOA a questões inerentemente estatutárias, isto é, as que decorrem dos princípios, regras, usos e praxes que regulam e orientam o exercício da profissão, maxime as que decorrem das normas do EOA, do regime jurídico das Sociedades de Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido pela lei aos órgãos da Ordem dos Advogados.

 

A matéria colocada à apreciação deste Conselho Distrital subsume-se, precisamente, a uma questão de carácter profissional nos termos descritos, pelo que haverá que proceder à emissão de Parecer quanto à questão que nos foi colocada.

 

Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa

 

A prossecução da justiça e do direito, verdadeiros objectivos da profissão de Advogado, implicam que, necessariamente, qualquer pessoa que tenha de recorrer aos serviços de um Advogado, disponha de total confiança para que possa a este revelar os seus segredos, os seus interesses, sem qualquer receio de revelação dos mesmos (revelação essa que, a ser permitida, poderia colocar esses mesmos interesses em causa).

 

O Advogado tem uma dignidade e um estatuto próprios, não lhe sendo lícito revelar livremente factos, ainda que contidos em documentos, de que teve conhecimento no exercício da profissão, ainda que o (antigo) cliente lhe conceda autorização para tal, ou ainda que a sua revelação vise a defesa dos legítimos interesses do (antigo) cliente. 

 

 

O segredo profissional tem na sua génese a necessidade não só de garantir a relação de confiança entre o Advogado e o seu cliente – que deve ser sem limites, mas também o interesse público da função do Advogado enquanto agente activo da administração da justiça, entendida em sentido amplo e não restrita à actividade judicial.

 

O regime do segredo profissional encontra-se, em larga medida, desenhado no artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

O n.º 1 deste artigo contém aquilo que poderá caracterizar-se como a verdadeira regra geral do instituto jurídico-deontológico.

Aí se pode ler que “ O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”.

Pode até dizer-se que, em certa medida, as demais regras previstas nas diversas alíneas do n.º 1, cujo elenco é meramente indicativo como decorre do elemento literal, são sobretudo explicitações ou pormenorizações daquela, que terão sido incluídas no EOA para salientar situações mais marcantes ou de maior dificuldade de interpretação.

 

O que seja segredo tem de ser aferido por três vias:

  1. pela forma como o conhecimento do facto chegou ao Advogado, quem o revelou e em que quadro fáctico;
  2. pelo teor do facto, que ajuda a perceber se tem ou não a natureza de segredo, pois nem tudo o que é revelado ao Advogado é, em si, um segredo;
  3. pelas próprias circunstâncias do conhecimento e da revelação.

 

A análise feita através deste triplo crivo, ajuda a discernir o que é e o que não é segredo.

 

O princípio geral é o de que os Advogados estão obrigados a guardar segredo profissional em relação a assuntos profissionais versados em correspondência trocada com Colegas. Tal decorre de forma inequívoca do disposto nos artigos 87º e 71º do EOA.

 

Isto é, toda a correspondência que respeite ao exercício da profissão está, em regra, abrangida pela esfera de protecção do sigilo profissional.

 

Como supra referimos, o elenco das alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo 87º do EOA é meramente indicativo como resulta, desde logo, do elemento literal.

Ou seja, a circunstância de determinada correspondência trocada entre Colegas e respeitantes a assuntos profissionais não cair directamente na fattispecie de nenhuma das mencionadas alíneas não significa, ispo facto, que a mesma não possa estar abrangida pela esfera de protecção do sigilo profissional por força da cláusula geral contida no n.º 1 da referida norma legal.

 

O artigo 108º do EOA consagra a confidencialidade da correspondência trocada entre Advogados, o qual, por facilidade de exposição, passamos a transcrever, ainda que parcialmente:

“1- Sempre que um advogado pretenda que a sua comunicação, dirigida a outro advogado, tenha carácter confidencial, deve exprimir, claramente, tal intenção.

2 – As comunicações confidenciais não podem, em qualquer caso, constituir meio de prova, não lhes sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 87º.

(…)”.

 

Mas, como já ficou dito, independentemente de declaração expressa de confidencialidade, o Advogado está obrigado a guardar segredo profissional em relação aos assuntos profissionais versados em correspondência trocada com Colegas.

A diferença de regime entre a correspondência classificada ou não como confidencial reside apenas no seguinte.

A que for classificada como confidencial, ao invés da que não for classificada como confidencial, não poderá nunca ser revelada, não podendo, em qualquer circunstância, ser objecto do pedido de autorização previsto no n.º 4 do artigo 87º do EOA. 

 

Traçadas as linhas gerais que irão orientar o nosso pensamento, passemos de seguida à questão que ora nos ocupa, atendendo, estritamente, aos elementos que foram colocados à nossa disposição. 

 

Lidos e analisados os documentos relativamente aos quais a nossa pronúncia é solicitada, entendemos, s.m.o., que não estão abrangidos pela esfera de protecção do sigilo profissional os documentos juntos ao Requerimento Inicial com os n.ºs x, x e x, bem como o documento n.º x junto com o Requerimento apresentado em x de Março de 2014, com a referência xxxxxxxx.

De facto, não se pode interpretar literalmente o conteúdo do n.º 1 do artigo 87º do EOA, pois, se assim fosse, todos os factos – sem qualquer distinção – que chegassem ao conhecimento do Advogado estariam sempre sujeitos a sigilo.

Tal interpretação maximalista e, digamos, desenquadrada do espírito do sistema, colocar-nos-ia perante soluções totalmente desprovidas de sentido.

 

Vejamos então.

 

Quanto ao documento junto ao Requerimento Inicial com o n.º x, embora se admita que o mesmo possa ter surgido num contexto negocial (como, desde logo, parece resultar do próprio teor do email dirigido pelo Senhor Advogado Dr. A ao Senhor Advogado Dr. C, a verdade é que esta circunstância, só por si, não é suficiente para se considerar o mesmo abrangido pela esfera de protecção do sigilo profissional, na medida em que não é revelado o conteúdo das negociações ou da posição das partes quanto ao litígio que as opõe.

E, nesta medida, não contendo o documento n.º x qualquer facto, em si mesmo, sigiloso, haverá forçosamente que concluir pela sua não sujeição ao dever de sigilo.

 

O documento n.º x consubstancia uma mera resposta à comunicação datada de xx.xx.xxxx, através da qual o ora Requerente, ao abrigo do direito à informação, solicita determinados elementos ao Conselho de Administração da Requerida, da qual é sócio. E assim sendo, é também nosso entendimento que o documento em causa não contém qualquer facto em si mesmo sigiloso, não estando, portanto, abrangido pela esfera de protecção do sigilo profissional.

 

Quanto ao documento n.º x, facilmente também se alcança que o corpo do email datado de xx de xxxxx de xxxx, não contém qualquer facto em si mesmo sigiloso, limitando-se, de resto, a concluir nos termos da carta datada de xx.xx.xxxx, dirigida ao ora Requerente pela administração da Requerida.

 

 

E, consubstanciando a carta datada de xx.xx.xxxx correspondência trocada entre as partes não está a mesma, evidentemente, sujeita ao dever de sigilo.

 

Também quanto ao documento n.º x junto com o Requerimento apresentado em x de xxxxx de xxxx, com a referência xxxxxx, entendemos que o mesmo não está abrangido pela esfera de protecção do sigilo profissional.

De facto, o email que constitui o documento em causa não contém qualquer facto, em si mesmo sigiloso, uma vez que através dele o Senhor Advogado Dr. C se limita a enviar ao Senhor Advogado Dr. A a acta da assembleia geral extraordinária ocorrida no dia xx de xxxxx de xxxx.

 

Já quanto aos documentos juntos ao Requerimento Inicial sob os n.ºs x, x e x, entendemos que os mesmos estão abrangidos pela esfera de protecção do sigilo profissional, por força do disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 87º do EOA.

De facto, os documentos em causa contêm a posição e os fundamentos das partes quanto a questões directamente atinentes às vicissitudes do patrocínio, posição e fundamentos estes comunicados por intermédio dos respectivos Advogados.

O que significa que, nos termos do regime legal em vigor, a sua junção aos autos pressuporia um pedido de autorização prévia.

O que, no caso concreto, não sucedeu.

 

Assim, com rigor processual, os documentos em causa estão sujeitos à cominação prevista no n.º 5 do artigo 87º do EOA.

E, realce-se, que este entendimento se impõe e prevalece ainda que sob o pretexto de que os mesmos foram juntos aos autos para defesa dos direitos e interesses legítimos do cliente.

De facto, não podemos esquecer que estamos perante um dever com carácter social ou de ordem pública e não de natureza meramente contratual.

 

Contudo, e sem prejuízo deste nosso entendimento, o certo é que, nos termos da lei (cf. artigo 202º da Constituição da República Portuguesa e artigo 2º n.º 2 da Lei da Organização do Sistema Judiciário) é aos Tribunais que pertence a função jurisdicional e, portanto, a capacidade de julgar em definitivo se um meio de prova é ou não válido.

 

 

Quanto ao documento n.º x, sublinhe-se que o mesmo contém a seguinte menção: Confidencial (art. 108º EOA)”. O que significa que o mesmo nunca poderia ter sido, em qualquer circunstância, objecto do pedido de autorização previsto no n.º 4 do artigo 87º do EOA. 

 

É este, salvo melhor opinião, o nosso entendimento sobre a questão que nos foi colocada.

 

Lisboa, 23 de Junho de 2014.

 

A Assessora Jurídica do CDL

 

Sandra Barroso


Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

 

Lisboa, 23 de Junho de 2014.

 

O Presidente do Conselho Distrital de Lisboa  

 

António Jaime Martins   

Sandra Barroso

Topo