Pareceres do CRLisboa

Consulta nº 29/2014


 

CONSULTA N.º 29/2014

Assunto:       

  • Conflito de Interesses – Artigo 94º do EOA.

 

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OBJECTO

 

Através de comunicação escrita recepcionada nos Serviços do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados no dia XX de Julho do corrente (entrada com o número de registo  XXXX), a Senhora Advogada Dra. -, titular da cédula profissional n.º - , veio, ao abrigo do disposto no artigo 50º, n.º 1, alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro), solicitar a emissão de Parecer quanto a uma questão de eventual conflito de interesses.

 

O enquadramento factual, tal como exposto pela Senhora Advogada Consulente, é, em síntese, o seguinte:

  1. Corre termos no X Juízo Cível do Tribunal de Comarca de - , sob o n.º -, uma acção declarativa de condenação com processo ordinário, em que é Autora a sociedade comercial “ -.”, e são Réus a Administração do Condomínio do prédio urbano denominado  - sito em - (doravante Administração) e todos os condóminos.
  2. Peticiona a Autora que o Tribunal a declare como dona e legítima proprietária da fracção autónoma a que corresponde o Xº andar designado pela letra X, do Bloco X, do Edifício -, e melhor descrita nos autos, e ainda que os Réus sejam condenados a reconhecer tal direito e a absterem-se de quaisquer actos perturbadores do seu exercício.
  3. Inicialmente, a Senhora Advogada Consulente era mandatária da Ré Administração e dos condóminos A e cônjuge, B.
  4. Em XX.XX.XXXX, A veio a falecer, tendo a instância sido suspensa, nos termos do artigo 276º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil então em vigor (artigo 269º, n.º 1, alínea a) do Novo Código de Processo Civil).

 

  1. Em XX.XX.XXXX, a Senhora Advogada Consulente renunciou ao mandato que lhe havia sido conferido por B.
  2. Em XX.XX.XXXX, a Autora apresentou incidente de habilitação de herdeiros contra B, peticionando que a mesma seja declarada como sucessora do falecido Réu A.  
  3. Em XX.XX.XXXX, a Ré Administração é notificada para contestar o referido incidente.
  4. Em XX.XX.XXXX, a Senhora Advogada Consulente, na qualidade de mandatária da Ré Administração, apresenta Contestação à habilitação de herdeiros, pugnando pela improcedência do pedido, sustentando que a Ré B não deve ser julgada habilitada como herdeira única e universal.
  5. Apresentada a Contestação, foi proferido o seguinte despacho nos autos: “A ilustre mandatária subscritora da contestação à habilitação de herdeiros, foi mandatária da habilitanda B, tendo renunciado à procuração por requerimento datado de XX de XX de XXX. É manifesto o conflito de interesses nos termos do disposto no artigo 94º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

Em face do exposto, notifique a Ilustre Mandatária para, no prazo de 10 dias, dizer o que se lhe oferecer conveniente”.

 

É, portanto, neste contexto, que a Senhora Advogada Consulente vem solicitar a emissão de Parecer, a fim de dar cumprimento à notificação que lhe foi dirigida pelo Tribunal e cujo prazo de resposta termina no próxima dia XX de XX.

 

2

 

Da competência consultiva do Conselho Distrital de Lisboa

 

Nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 50º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA), compete aos Conselhos Distritais pronunciarem-se sobre questões de carácter profissional, que se suscitem no âmbito da sua competência territorial.

 

 

A competência consultiva dos Conselhos Distritais está, assim, limitada pelo EOA a questões inerentemente estatutárias, isto é, as que decorrem dos princípios, regras, usos e praxes que regulam e orientam o exercício da profissão, maxime as que decorrem das normas do EOA, do regime jurídico das Sociedades de Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido pela lei aos órgãos da Ordem dos Advogados.

 

A matéria colocada à apreciação deste Conselho Distrital subsume-se, precisamente, a uma questão de carácter profissional nos termos descritos, pelo que haverá que proceder à emissão de Parecer quanto à questão que nos foi colocada.

 

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ANÁLISE E ENQUADRAMENTO ESTATUTÁRIO

 

“A Deontologia é o conjunto de regras ético-jurídicas pelas quais o advogado deve pautar o seu comportamento profissional e cívico. (...) O respeito pelas regras deontológicas e o imperativo da elevada consciência moral, individual e profissional, constitui timbre da advocacia.” – António Arnaut, Iniciação à Advocacia – História – Deontologia – Questões Práticas, p. 49 e 50, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996.

 

O Advogado, no exercício da sua profissão está vinculado ao cumprimento escrupuloso de um conjunto de deveres consignados no Estatuto e ainda àqueles que a lei, os usos, os costumes e as tradições profissionais lhe impõem (artigo 83º do EOA).

 

O cumprimento escrupuloso e pontual de todos esses deveres garante a dignidade e o prestígio da profissão.

 

O Título III do Estatuto trata da “Deontologia Profissional”, fixando, no Capítulo I, os Princípios Gerais e abordando, no Capítulo II, a questão das relações entre o Advogado e o cliente. 

 

 

É neste último Capítulo e, mais especificamente no seu artigo 94º, que se encontra regulado o denominado “Conflito de Interesses”.

Aí estão plasmadas várias situações em que existe uma situação de incompatibilidade para o exercício do patrocínio.

A matéria do conflito de interesses, regida estatutariamente pelo teor do artigo 94º do Estatuto, resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão e constitui expressa manifestação do princípio geral estatuído no artigo 84º do EOA, segundo o qual o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros”.

Nesta medida, o regime legal estabelecido a propósito do conflito de interesses cumpre uma tripla função[1]:

a)     Defender a comunidade em geral, e os clientes de um qualquer Advogado em particular, de actuações menos lícitas e/ou danosas por parte de um Colega, conluiado ou não com algum ou alguns dos seus clientes;

b)     Defender o próprio Advogado da possibilidade de, sobre ele, recair a suspeita de actuar, no exercício da sua profissão, visando qualquer outro interesse que não seja a defesa intransigente dos direitos e interesses dos seus clientes;

c)     Defender a própria profissão, a Advocacia, do anátema que sobre ela recairia na eventualidade de se generalizarem este tipo de situações.

 

 

Preceitua a norma legal em apreço o seguinte:

“1 – O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.

 2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

3 – O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

5 - O Advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente. 

6 - Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.

 

No caso concreto,

 

  • a Senhora Advogada Consulente é mandatária da Ré Administração na acção principal.
  • até XX.XX.XXXX, a Senhora Advogada Consulente foi também mandatária da Ré B na acção principal.
  • corre por apenso à acção principal, sob a letra F, incidente de habilitação de herdeiros, em que é Requerente a Autora na acção principal e Requerida a também Ré nessa mesma acção, B, e antiga cliente da Senhora Advogada Consulente.
  • em representação da Administração do Condomínio do Edifício - , a Senhora Advogada Consulente apresentou Contestação à habilitação de herdeiros.

 

 

Olhando para a factualidade agora sumariamente elencada, a questão que nos ocupa reconduz-se a saber se a Senhora Advogada Consulente, tendo representado os interesses da Ré B, sua antiga cliente, na acção principal, pode agora representar a Administração do Condomínio do Edifício - no incidente de habilitação de herdeiros movido contra aquela.

 

Delimitado que está o objecto da nossa pronúncia, haverá agora que proceder à subsunção dos factos à lei.

E, entendemos que está em causa a correcta interpretação do disposto no artigo 94º, n.º 1 – 2ª parte, que, por facilidade de raciocínio, voltamos a transcrever:

“1. O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão (…) conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária”.

 

Nos termos do preceito legal em causa, está, portanto, vedado ao Advogado intervir, sob qualquer forma, em questão (processo judicial ou não) que seja conexa com outra em que represente a parte contrária, mas também lhe está vedado intervir em questão que seja conexa com outra em que tenha representado a parte contrária.

 

Impõe-se, antes de mais, referir que a circunstância da Senhora Advogada Consulente ter sido mandatária de B na acção principal não é, de per si, suficiente para se concluir – e, frise-se, do ponto de vista objectivo[2] – pela existência de conflitos de interesses impeditivo do mandato agora assumido no incidente de habilitação.

 

 

De facto, o Estatuto da Ordem dos Advogados não contém, em matéria de conflito de interesses, uma proibição geral de patrocínio contra quem foi anteriormente seu cliente.

 

Portanto, do exposto, se conclui que o que importa aferir é se, no caso vertente, se verifica a conexão a que alude o normativo aqui em causa.

 

Mas o que significa esta ideia de conexão?

Conforme entendido perfilhado no Parecer do Conselho Geral n.º E-14/00, aprovado em 13.10.2000, e no qual foi relator o Dr. Carlos Grijó, o qual, desde já se diga, sufragamos, tem-se entendido que conexão significa “relação evidente entre várias causas, de modo que a decisão de uma dependa das outras ou que a decisão de todas dependa da subsistência ou valorização de certos factos”.

 

Partindo deste entendimento, facilmente concluímos que, no caso submetido à nossa apreciação, não existe a tal conexão a que alude o artigo 94º, n.º 1 – 2ª parte, como veremos de seguida.

 

Como é consabido, o Código de Processo Civil consagra no seu artigo 260º, o princípio da estabilidade da instância.

 

Nos termos do mencionado preceito legal, com a citação do Réu estabiliza-se a instância quanto às pessoas e quanto ao objecto (pedido e causa de pedir), apenas se admitindo as modificações que a própria lei preveja, ou seja, as denominadas modificações subjectivas e objectivas da instância.

 

Em matéria de modificação subjectiva da instância, preceitua o artigo 262º, alínea a) do Código de Processo Civil (doravante CPC) que aquela pode modificar-se em consequência da substituição de alguma das partes e, nomeadamente, por sucessão na relação substantiva em litígio.

 

O incidente de habilitação de herdeiros, regulado no artigo 351º e ss. do CPC, é um dos meios que permite modificar a instância quanto às pessoas e tem por objecto determinar as pessoas que têm legitimidade para ocupar no litígio a posição/lugar da parte falecida e a chamar essas pessoas ao processo, a fim de com elas continuar a instância.

O que se afere no incidente de habilitação é, apenas e tão só, a legitimidade de determinada pessoa para substituir a parte falecida na relação substantiva litigiosa, averigua-se se o habilitando tem as condições legalmente exigidas para a substituir no processo e, para com ele, prosseguir no processo, operando-se, assim, a transmissão de uma posição jurídica litigiosa.

Portanto, não se discute no incidente qualquer facto que, directa ou indirectamente, contenda com a relação material controvertida tal como se encontra configurada nos autos principais.

Está aqui em causa, estritamente, uma questão atinente à regularidade da instância principal.

E, frise-se que, a circunstância de, do ponto de vista processual, o incidente de habilitação constituir causa prejudicial em relação aos autos principais (causa dependente) e correr por apenso a estes, nos termos do disposto no artigo 352º n.º 2 do CPC, em nada releva para efeitos de aferição da existência de conflito de interesses, que é, recorde-se, o que nos encontramos estritamente a apreciar.

 

Tudo ponderado, é para nós assaz evidente que, não existe qualquer conexão (material) entre a questão decidenda nos autos principais e a questão decidenda no incidente, inibitória da representação da Administração do Condomínio na habilitação.

 

É este, salvo melhor opinião, o nosso entendimento sobre a questão que nos foi colocada, atentos os elementos que foram colocados à nossa disposição.

 
 

Lisboa, 9 de Julho de 2014.

 

A Assessora Jurídica do CDL


Sandra Barroso

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

 Notifique-se.

 

 Lisboa, 9 de Julho de 2014.

 

O Presidente do Conselho Distrital de Lisboa

 

 António Jaime Martins

 



[1] Cfr. Parecer do Conselho Distrital de Lisboa n.º 6/02, aprovado em 16.10.2002, e no qual foi relator o Senhor Advogado Dr. João Espanha.

[2] Dizemos “do ponto de vista objectivo” porque este Conselho tem entendido que a matéria de conflito de interesses é, em primeira linha, uma questão de consciência do Advogado. Cabe a cada Advogado formular um juízo de consciência sobre se a relação de confiança que estabeleceu com um seu antigo cliente lhe permite, livremente e sem constrangimentos, assumir agora um patrocínio contra ele.

E desde já se diga que a repugna de um Advogado em litigar contra quem foi seu antigo cliente deve ser entendida como causa justificante da recusa de patrocínio – mesmo que tal não resulte de norma expressa. Outra conclusão não se poderia tirar dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão.

 

Sandra Barroso

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