Pareceres do CRLisboa

Consulta nº 4/2014

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Consulta n.º 4/2014

         Requerente:

                      

Assuntos:

  • Sigilo Profissional

 

Consulta

 

Por Ofício que deu entrada no Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados no passado dia 8 de Janeiro de 2014 com o nº -, veio o Exmo. Sr. Procurador-Adjunto da - dos Serviços do Ministério Público de -, solicitar a emissão sobre a eventual possibilidade de ser ouvida a Testemunha melhor identificada no referido Ofício.

A fim de delimitar o âmbito do pedido de Parecer, o Sr. Procurador-Adjunto, refere o seguinte:

  1. O denunciante nos autos identificados no Ofício é Advogado e mandatário de uma das Partes em processo de regulação de responsabilidades parentais;
  2. A Testemunha é, por seu lado, mandatária da outra parte no mesmo processo de regulação (que, por sua vez, é arguido no processo-crime em curso);
  3. Segundo o denunciante, no dia 11 de Abril de 2013, junto à porta de vidro que dá acesso às secretarias dos Juízos de Família e Menores de -, após diligência que terá tido lugar nesse processo (conferência de pais), o arguido terá proferido diversas expressões que o denunciante considera aptas a ofender a sua honra, consideração e bom nome (pessoal e profissional) e igualmente aptas a causar receio e medo na sua pessoa.
  4. Expressões essas que constituem o objecto de denúncia apresentada.

Mais é dito pelo Sr. Procurador-Adjunto que os factos quanto aos quais pretende ouvir a Testemunha configuram a eventual prática de um crime de injúria agravada, sendo o seu depoimento essencial à boa decisão dos autos, uma vez que os depoimentos coligidos nos autos se resumem à versão do denunciante (interessado na causa) e da cliente do denunciante (parte contrária em diversos outros processos em que é igualmente interveniente o arguido).

De forma a instruir o pedido, foi também enviada a este Conselho Distrital cópia da denúncia e de autos de inquirição, incluindo auto de inquirição da Testemunha em causa, a qual terá dito ser seu entendimento “que só poderá prestar testemunho após o levantamento de sigilo pelo órgão competente do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados que o Digníssimo Tribunal poderá requerer o seu levantamento caso assim o entenda.”

 

INFORMAÇÃO SINTÉTICA

 

Dispõe a alínea f) do n.º 1 do artigo 50º do Estatuto da Ordem dos Advogados (E.O.A.), que cabe a cada um dos Conselhos Distritais da Ordem dos Advogados, no âmbito da sua competência territorial, “pronunciar-se sobre as questões de carácter profissional”.

 

Tem sido entendido pela jurisprudência da Ordem dos Advogados que estas “questões de carácter profissional” serão aquelas de natureza intrinsecamente estatutárias, ou seja, que decorrem dos princípios, regras, usos e praxes que comandam ou orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente os que relevam das normas do E.O.A., do regime jurídico das sociedades de Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei aos órgãos da Ordem.

 

Isto quer dizer, por outras palavras, que as matérias sobre as quais a Ordem se deve pronunciar para efeitos do referido artigo deverão circunscrever-se à matéria relacionada com o exercício da profissão.

 

Ora, em face da questão colocada, não temos dúvidas de que a questão colocada à apreciação deste Conselho Distrital, estritamente ligada à apreciação sobre se determinada Advogada estará ou não abrangida pelo sigilo profissional (e se, por essa razão, poderá, ou não prestar testemunho em processo-crime pendente) configura uma “questão de carácter profissional”, nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 50º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA), que define a competência material do Conselho, pelo que há que proceder à emissão de parecer quanto à questão colocada.

 

Nunca é de mais repetir que o segredo profissional constitui um dos elementos estruturantes da profissão.

 

O princípio do dever de guardar segredo profissional consolidou-se ao longo dos tempos, não só nas leis que a consagram, como na importância que assume o elo de confiança entre o cliente e o advogado, o qual conforma a opção do legislador.

 

Defendê-lo e preservá-lo é uma obrigação primeira da Advocacia, sob pena de se ver desfigurado aquilo que é a essência da profissão.

 

Como se tem escrito sempre que os órgãos desta Ordem são chamados a pronunciar-se sobre os fundamentos e o alcance do instituto do sigilo profissional, se ao Advogado não fosse reconhecido o direito de guardar para si, e só para si, o conhecimento de tudo quanto o cliente, directamente ou por via de terceiros, lhe confiou, ou não fosse obrigado a reservar a informação que obteve no exercício do mandato, então não haveria autêntica advocacia.

 

O segredo profissional representa a blindagem normativa e a garantia legal inamovível contra as tentações de se obter confissão por interposta pessoa e contra a violação do direito à intimidade. É a garantia de existência de uma advocacia que para ser autêntica, tem de ser livre e independente.[1]

Bem a propósito, o Dr. António Arnaut, ilustríssimo Advogado, frisa esta ideia por nós também partilhada, ao escrever que “o dever de guardar segredo profissional é uma regra de ouro da Advocacia e um dos mais sagrados princípios deontológicos. Foi sempre considerado honra e timbre da profissão, condição sine qua non da sua plena dignidade[2].

 

Segundo entendimento já adoptado por anterior Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados[3], existem três grandes ordens de razões que estão na origem da consagração estatutária do dever do Advogado guardar segredo profissional sobre factos e documentos, dos quais tome conhecimento no exercício da profissão:

a) a indispensabilidade de tutelar e garantir a relação de confiança entre o Advogado e o cliente;

b) o interesse público da função do Advogado enquanto agente activo da administração da justiça;

c) a garantia do papel do Advogado na composição extrajudicial de conflitos, contribuindo para a paz social.”

 

O segredo profissional é, pois, um direito e uma obrigação fundamental e primordial do advogado. É parte essencial da função do advogado ser o depositário dos segredos do seu cliente e o destinatário de informações baseadas na confiança. E, sem a garantia de confidencialidade não pode existir confiança[4].

 

Assim, pode-se ler no art. 87º do EOA, sob a epígrafe “Segredo Profissional” que:

“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante;

e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

3. O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo

(…)”.

 

No entanto, não se pode interpretar literalmente o conteúdo, sobretudo, do nº1 do art. 87º do EOA pois se assim fosse, todos os factos – sem qualquer distinção – que chegassem ao conhecimento do Advogado estariam sempre sujeitos a sigilo.

 

Tal interpretação maximalista, e, digamos, desenquadrada do espírito do sistema colocar-nos-ia perante soluções totalmente desprovidas de sentido.

 

Basta-nos ver que até os próprios factos transmitidos pelo cliente ao Advogado a fim de serem dados a conhecer em Juízo, estariam, como tal e a enveredar por uma interpretação apenas literal do regime do sigilo profissional, sempre sujeitos a esta obrigação – necessitando da respectiva dispensa sempre que algum Advogado quisesse construir, até, uma qualquer petição inicial - de tal forma difícil se tornaria o exercício da profissão, que quase nada um Advogado poderia fazer sem solicitar a dispensa do sigilo profissional. De facto, não é isso que se pretende.

 

O segredo profissional, cuja essencialidade nunca é de mais recordar, constitui uma garantia para o cidadão-cliente[5] de que, uma vez revelado ao advogado um determinado facto, este entra para um “cofre forte” que é selado por aquela obrigação.

 

Mas o que seja segredo tem de ser aferido por várias vias/índices:
1) Pela forma como o conhecimento dos factos chegou ao advogado e quem os revelou e respectivas circunstâncias envolventes.

2) Pelo teor dos factos em si, o que ajuda a perceber se tem ou não a natureza de segredo, pois nem tudo o que é revelado ao advogado é um segredo;

 

Olhando para o regime jurídico em vigor mas, mais do que tudo, para o que tem a Lei em vista, somos, pois, da opinião que serão sigilosos aqueles factos relativamente aos quais seja de concluir que quem os confiou ao Advogado, nomeadamente o seu cliente (ainda que não só, como poderá acontecer no caso de negociações entre as partes, acompanhadas por Advogado), tinha um interesse objectivo, face à relação de confiança existente, em que se mantivessem reservados[6]. Conclusão a ser retirada por auxílio aos índices que atrás tivemos oportunidade de realçar.

 

No presente caso, e pelo que se retira da documentação enviada pelo Sr. Procurador-Adjunto, o depoimento a prestar prender-se-á somente com o que a Testemunha (Advogada) terá, ou não, presenciado e ouvido, junto à porta de vidro que dá acesso às secretarias dos Juízos de Família e Menores de - , após diligência que terá tido lugar em processo de regulação de responsabilidades parentais.

 

É verdade que a Testemunha em causa estava no local no exercício das suas funções de Advogada do seu cliente. Contudo, também nos parece que a Testemunha estaria, naquele momento, num local público e que os factos que terá presenciado não lhe foram transmitidos, nem chegaram ao seu conhecimento, no âmbito de uma qualquer relação de confidencialidade com a sua cliente ou com terceiros. Aliás, em momento algum se refere na documentação (incluindo no auto de inquirição da Testemunha) que a Advogada em causa terá tido alguma intervenção no comportamento ou nas palavras que terão sido (ou não) ditas pelo seu cliente. Ao invés, tudo indica que a mesma terá sido um mero terceiro em relação aos factos ocorridos, como seria qualquer outra pessoa que ali e naquele momento se encontrasse.

A ser assim, somos da opinião que a Testemunha não estará vinculada pelo dever de sigilo, podendo assim ser ouvida sobre aquilo que terá sido dito (ou não) pelo seu cliente ao denunciante e à sua cliente, no dia 11 de Abril de 2013, junto à porta de vidro que dá acesso às secretarias dos Juízos de Família e Menores de - .

Não podemos, contudo, terminar sem realçar que a nossa apreciação diz apenas abrange os factos evidenciados no anterior parágrafo, e não poderá ser entendida como uma pronúncia sobre quaisquer outros factos relativamente aos quais o Ministério Público entenda inquirir a Testemunha que não sejam aqueles.


Em Conclusão:

  1. Não se pode interpretar literalmente o conteúdo do texto previsto no nº1 do art. 87º do EOA pois se assim fosse, todos os factos – sem qualquer distinção – que chegassem ao conhecimento de um Advogado estariam sempre sujeitos a sigilo.

Com efeito,

  1. O que está, ou não, abrangido pelo dever de sigilo profissional, tem de ser aferido por várias vias/índices:
    i) Pela forma como o conhecimento de certos factos chegou ao Advogado;

ii) Quem os revelou e respectivas circunstâncias envolventes.

iii) Pelo teor dos factos em si, o que ajuda a perceber se tem ou não a natureza de segredo, pois nem tudo o que é revelado ao Advogado é um segredo;

  1. Em nossa opinião, a circunstância de um Advogado se encontrar num determinado local (de natureza pública) onde terá presenciado palavras que foram dirigidas pelo seu cliente a terceiro - e sem que o Advogado em causa tenha tido qualquer intervenção em tal conduta, não é suficiente, por si só, para colocar tais factos sob a esfera de protecção do art. 87º do EOA.
  2. Por isso, entendemos também que nada impede, do ponto de vista do art. 87º do EOA, que a Testemunha deponha sobre aquilo que terá sido dito (ou não) pelo seu cliente, ao denunciante e à cliente desta, no dia 11 de Abril de 2013, junto à porta de vidro que dá acesso às secretarias dos Juízos de Família e Menores de - .

 

 

Lisboa, 22 de Agosto de 2014

 

(O Assessor Jurídico do CDL)

 

Rui Souto

 

Lisboa, 22 de Agosto de 2014

 

(O Vice-Presidente do CDL)

Por delegação de poderes de 5 de Fevereiro de 2014

 

João Massano

 


[1] Parecer do Conselho Distrital de Lisboa nº 2/02, aprovado em 6.2.2002, e no qual foi relator o Dr José Mário Ferreira de Almeida.

[2] “Introdução à Advocacia: História – Deontologia, Questões Práticas”, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996, p. 65

[3] Parecer do Conselho Distrital de Lisboa nº 02/01, no qual foi relator o Dr José Ferreira de Almeida, e aprovado em sessão plenária no dia 13.03.2003

[4] Cfr Código de Deontologia dos Advogados Europeus (versão portuguesa aprovada pela Deliberação do Conselho Geral n.º 2511/2007), 2.3.1

[5] E outras pessoas que em determinadas circunstâncias entram em contacto com o Advogado, como é o caso típico da contraparte, em sede de negociações.

[6] Posição semelhante podemos encontrar em Rodrigo Santiago, Considerações acerca do regime estatutário do segredo profissional dos advogados”, Revista da Ordem dos Advogados, 57, Janeiro de 1997, p. 229. 

 

Rui Souto

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