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Consulta nº 15/2014

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CONSULTA N.º 15/2014

Assunto:       

  • Incidente processual de quebra do sigilo profissional – Artigo 135º do Código de Processo Penal e Artigo 87º do EOA.

 

Questão

 

Através de comunicação escrita recepcionada nos Serviços do Conselho Distrital de Lisboa no dia 30 de Janeiro do corrente (entrada com o número de registo -), veio o Exmo. Juiz Desembargador da - do Tribunal da Relação de - solicitar ao Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados a emissão de parecer, nos termos e para os efeitos do disposto nos números 3 e 4 do artigo 135º do Código de Processo Penal (doravante CPP).

 

O incidente de quebra do sigilo profissional foi suscitado no âmbito do processo pendente na -  do - Juízo Criminal de - , sob o n.º - , quanto ao Senhor Advogado Dr. A.  

 

Em momento anterior ao incidente processual ora em análise, o Senhor Advogado requereu ao Senhor Presidente deste Conselho então em funções o competente pedido de dispensa do sigilo profissional, o qual foi objecto de despacho de indeferimento, por se ter concluído não se mostrarem devidamente preenchidos os requisitos exigidos pelo regime legal em vigor – artigo 87º n.º 4 do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro) e Regulamento de Dispensa do Segredo Profissional (Regulamento n.º 94/2006, de 12 de Junho).

 

Ulteriormente, e já na fase de julgamento, o Exmo. Senhor Juiz de 1ª Instância requereu que fosse suscitado o incidente de quebra do sigilo profissional junto do Tribunal da Relação de - , enquanto Tribunal competente para ordenar o seu depoimento com quebra do sigilo profissional.

 

Recebido o incidente no Tribunal da Relação de - , veio o Exmo. Juiz Desembargador solicitar a nossa pronúncia nos termos legalmente impostos.

 

Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa  

 

Nunca é de mais referir o carácter fundamental e verdadeiramente basilar que a dever de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia.

Mas não só.

Trata-se de dever de primordial importância para o reconhecimento da plenitude do Estado do Direito Democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.

 

É que o Estado de Direito Democrático não só exige um poder judicial independente, como também pressupõe e postula o exercício de uma Advocacia livre, independente e responsável.

Ora, condição essencial ao exercício da profissão é a absoluta confiança que deve presidir à relação advogado cliente, fundada, naturalmente, no princípio do respeito pelo segredo profissional, a que a lei e a Constituição asseguram, com latitude, a adequada tutela.

 

 

Transcendendo o âmbito da relação advogado cliente, o segredo profissional reveste-se ainda de uma dimensão de ordem pública, tal como resulta claro do regime legal constante do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor (aprovado pela Lei n.º 15/2005, 26 de Janeiro). E isto porque o sigilo tem outras dimensões e outros beneficiários para além do cliente, devendo o advogado ser, nas suas múltiplas relações sociais e profissionais, merecedor de confiança e isenção. Não apenas o advogado individualmente considerado, como profissional liberal que é, mas como membro de uma classe profissional.

 

Por isso convirá realçar, de forma plenamente convicta, que se está na presença de um dever que constitui um princípio estruturante da Advocacia, assente não só na tutela dos interesses particulares que lhe possam estar subjacentes mas adquirindo igualmente uma dimensão de ordem pública. Mais do que um dever do próprio profissional, “ o sigilo é um dever de toda a classe, é condição da plena dignidade do Advogado bem como da Advocacia”[1].

Tal não significa que o dever de segredo seja absoluto.

 

Situações existem em que o levantamento do dever de guardar sigilo profissional se poderá, excepcionalmente, justificar. Assim, e para o efeito, estabelece a lei dois mecanismos que se diferenciam desde logo a propósito do sujeito que tem legitimidade para impulsionar o levantamento do segredo profissional:

  1. Dispensa de sigilo profissional, a qual é solicitada pelo Advogado adstrito ao dever de segredo ao Presidente do Conselho Distrital competente, sendo concedida, caso se verifiquem preenchidos os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados;
  2. Incidente processual de quebra de sigilo profissional, previsto no artigo 135º do Código de Processo Penal[2], tendo legitimidade para o desencadear qualquer das partes em juízo ou a autoridade judiciária.

 

A decisão da quebra de sigilo é tomada, com audição prévia da Ordem dos Advogados, audição essa que recairá, inevitavelmente, sobre o preenchimento ou não preenchimento das condições de que depende a quebra do sigilo profissional. Ou seja, sobre a existência de um interesse superior aos interesses que se visa proteger com o dever de segredo.

 

Assim, para que se possa concluir pela existência de um interesse preponderante, haverá que verificar-se, em concreto e nos termos em que o pedido de quebra se encontra fundado:

  1. se o depoimento é absolutamente imprescindível para a descoberta da verdade material;
  2. se o crime apresenta uma gravidade tal que implicará a quebra do dever de sigilo profissional, dever este que, conforme tem sido referido em diversa doutrina e jurisprudência, quer dos diversos órgãos da Ordem dos Advogados, quer dos tribunais, se reveste de interesse público (o que, desde logo, afastará a possibilidade de quebra em crimes de menor danosidade social);
  3. a necessidade da protecção dos bens jurídicos afectados (tendo em conta a importância destes).

 

 

 

Em particular, no que à imprescindibilidade do depoimento diz respeita, haverá que verificar se o depoimento do Advogado com quebra do sigilo se reveste de absoluta necessidade, isto é, de imprescindibilidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser indispensável (ou seja, imprescindível, e não meramente útil) face ao objectivo de prova visado; de essencialidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser absolutamente determinante; e de exclusividade, pressupondo este requisito a inexistência de qualquer outro meio de prova que não o depoimento do obrigado ao sigilo.

 

Vejamos então.

 

No caso vertente, o pedido de audição do Senhor Advogado Dr. A com quebra de sigilo profissional tem subjacente a seguinte factualidade:

“Considerando que a testemunha X  relatou na última sessão de julgamento que o Dr. A assistiu à comunicação verbal melhor descrita no ponto xx do despacho de pronúncia[3], e por apenas em sede de declarações prestadas pela testemunha X se ter obtido conhecimento de que tal testemunha presenciou os factos referidos, ao abrigo do disposto no art. 340º do Código de Processo Penal, determino a inquirição do mesmo como testemunha, tal como promovido no passado dia xx de Maio pelo Ministério Público”.

 

É esta, ipsis litteris, a fundamentação aduzida.

 

Ora, olhando para a fundamentação que sustenta o pedido que nos foi dirigido, concluímos que da mesma não se infere quem esteva presente aquando da declaração verbal a que alude o ponto xx do despacho de pronúncia. Isto é, se apenas o Senhor X, o ora arguido C e o Senhor Dr. A, ou se mais alguém.

Dito por outras palavras, desconhecemos se o depoimento do Senhor Advogado Dr. A é, efectivamente, um meio de prova exclusivo dos factos sobre os quais se pretende produzir prova.

 

É que não esqueçamos que o recurso ao depoimento de Advogado para prova deve ser sempre encarado como um meio excepcionalíssimo, sob pena de se banalizarem os deveres fundamentais desta nossa profissão.

O meio de prova sujeito a sigilo terá sempre de ser um meio de prova exclusivo, único meio de prova de determinado facto ou acervo de factos. Não interessa, em matéria de sigilo, que o meio de prova sujeito a sigilo seja o melhor, o mais eficaz ou o meio de prova de obtenção mais simples. Terá de ser o único meio de prova da factualidade visada nos autos.

E, no caso concreto, nada nos permite concluir nesse sentido. 

 

Para que seja quebrado o dever de sigilo profissional, será sempre exigível uma situação de total excepcionalidade e absoluta necessidade da audição do Advogado em causa sobre os factos de que tomou conhecimento no exercício da profissão.

O que não se manifesta de forma nenhuma na fundamentação – rectius, na escassez de fundamentação – em que assenta o incidente de quebra de sigilo profissional deduzido e ora sob análise.

 

 

Em suma, não sendo possível, nos termos atrás fundamentados, concluir pela absoluta necessidade do depoimento pretendido, forçoso é concluir que não estão, a nosso ver, reunidas as condições de que depende a audição do Senhor Advogado Dr. A com quebra do sigilo profissional, no âmbito do processo pendente na - Secção do -  Juízo Criminal de -, sob o n.º -

 

Lisboa, 23 de Julho de 2014.

 

A Assessora Jurídica do CDL

Sandra Barroso

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 23 de Julho de 2014.

 

O Presidente do Conselho Distrital de Lisboa

António Jaime Martins

 

 


[1] Bastonário Dr. Augusto Lopes Cardoso, in “Do segredo profissional na Advocacia”, Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, 1998, p. 17.

[2] Também aplicável ao processo civil por remissão do artigo 417º n.º 4 do Código de Processo Civil.

[3] Por facilidade de exposição, transcrevemos aqui o ponto xx do despacho de pronúncia: “Já no decurso do processo de falência, à data em que foram vendidos os bens móveis da falida, X, na qualidade de mandatário do credor B, comunicou verbalmente ao arguido C  o interesse do B na adjudicação do imóvel, sobre o qual detinha um direito real, pelo valor do crédito por si reclamado, a saber € xxx, (...) .

Sandra Barroso

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