Pareceres do CRLisboa

Consulta nº 19/2014

CONSULTA N.º 19/2014

Assunto:       

  • Incidente processual de quebra do sigilo profissional.

 

Questão

 

Através de comunicação escrita recepcionada nos Serviços do Conselho Distrital de Lisboa no dia 9 de Abril do corrente (entrada com o número de registo - ), veio o Exmo. Juiz Desembargador da - Secção do Tribunal da Relação de -  solicitar ao Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados a emissão de parecer, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 4 do artigo 135º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 417º n.º 4 do Código de Processo Civil.

 

O incidente de quebra do sigilo profissional foi suscitado no âmbito do processo pendente -, Juízo - , - Secção – Juiz -, sob o n.º -, quanto a duas antigas funcionárias do escritório de advocacia do Senhor Dr. A, a saber, B e C.

 

Em momento anterior ao incidente processual ora em análise, foi dirigido a este Conselho um pedido de dispensa de sigilo profissional com vista ao depoimento das funcionárias em causa, o qual foi objecto de despacho de indeferimento, por se ter concluído não se mostrarem devidamente preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 87º n.º 4 do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro).

 

Em sequência, foi suscitado o incidente de quebra do sigilo profissional junto do Tribunal da Relação de - , enquanto Tribunal competente para ordenar o depoimento com quebra do sigilo profissional das antigas funcionárias do escritório de advocacia do Senhor Dr. A.

 

Recebido o incidente no Tribunal da Relação de - , veio o Exmo. Juiz Desembargador solicitar a pronúncia deste Conselho nos termos legalmente impostos.

O pedido foi instruído com cópia de acta da audiência de discussão e julgamento que se realizou no dia 05.06.2013, onde foi suscitada a questão da sujeição ao dever de sigilo das testemunhas em causa.

 

Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa  

 

Nunca é de mais referir o carácter fundamental e verdadeiramente basilar que a dever de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia.

Mas não só.

Trata-se de dever de primordial importância para o reconhecimento da plenitude do Estado do Direito Democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.

 

É que o Estado de Direito Democrático não só exige um poder judicial independente, como também pressupõe e postula o exercício de uma Advocacia livre, independente e responsável.

 

Ora, condição essencial ao exercício da profissão é a absoluta confiança que deve presidir à relação advogado cliente, fundada, naturalmente, no princípio do respeito pelo segredo profissional, a que a lei e a Constituição asseguram, com latitude, a adequada tutela.

 

Transcendendo o âmbito da relação advogado cliente, o segredo profissional reveste-se ainda de uma dimensão de ordem pública, tal como resulta claro do regime legal constante do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor (aprovado pela Lei n.º 15/2005, 26 de Janeiro). E isto porque o sigilo tem outras dimensões e outros beneficiários para além do cliente, devendo o advogado ser, nas suas múltiplas relações sociais e profissionais, merecedor de confiança e isenção. Não apenas o advogado individualmente considerado, como profissional liberal que é, mas como membro de uma classe profissional.

Por isso convirá realçar, de forma plenamente convicta, que se está na presença de um dever que constitui um princípio estruturante da Advocacia, assente não só na tutela dos interesses particulares que lhe possam estar subjacentes mas adquirindo igualmente uma dimensão de ordem pública. Mais do que um dever do próprio profissional, “ o sigilo é um dever de toda a classe, é condição da plena dignidade do Advogado bem como da Advocacia”[1].

 

Tal não significa que o dever de segredo seja absoluto. Bem assim, existem casos em que o levantamento da obrigação de guardar sigilo profissional se poderá justificar. Se tal não acontecesse, em situações obviamente excepcionais, elementares princípios de justiça correriam o risco de serem fortemente atingidos.

Assim, e para o efeito, estabelece a lei dois mecanismos que se diferenciam desde logo a propósito do sujeito que tem legitimidade para impulsionar o levantamento do segredo profissional:

  1. Dispensa de sigilo profissional, a qual é solicitada pelo Advogado adstrito ao dever de segredo ao Presidente do Conselho Distrital competente, sendo concedida, caso se verifiquem preenchidos os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados;
  2. Incidente processual de quebra de sigilo profissional, previsto no artigo 135º do Código de Processo Penal, aplicável ao processo civil por remissão do artigo 417º n.º 4 do Código de Processo Civil, tendo legitimidade para o desencadear qualquer das partes em juízo ou a autoridade judiciária.

 

Primeiro a lei processual penal e depois a lei processual civil consagram um verdadeiro entorse na regra cimeira da legitimidade exclusiva do detentor do segredo para requerer o seu levantamento.

 

Assim, dispõe o artigo 417º n.º 1 do Código de Processo Civil que todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade.

Contudo, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 3 da referida normal legal, considera-se legítima a recusa se a obediência importar violação do sigilo profissional.

E, quanto ao regime desta recusa, o artigo 417º, n.º 4 limita-se a remeter para a norma do processo penal e para a sua disciplina específica.

 

A decisão da quebra de sigilo é tomada, com audição prévia da Ordem dos Advogados, audição essa que recairá, inevitavelmente, sobre o preenchimento ou não preenchimento das condições de que depende a quebra do sigilo profissional. Ou seja, sobre a existência de um interesse superior aos interesses que se visa proteger com o dever de segredo.

 

Vejamos então o caso concreto.

 

Estabelece o artigo 87º, n.º 7 do Estatuto que o dever de guardar sigilo profissional a que o Advogado está vinculado no exercício da sua profissão “é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua actividade profissional”.

 

Portanto, decorre directamente do mencionado preceito legal que as pessoas com quem o Advogado trabalha e que, por força das funções que desempenham, entram em contacto com assuntos abrangidos pela esfera de protecção do segredo profissional do Advogado, estão, também elas, obrigadas a sigilo.

E compreende-se que assim seja.

No actual contexto em que a Advocacia é exercida, é tarefa difícil para um Advogado exercer a sua actividade profissional de forma solitária. Daí que seja usual o Advogado recorrer a terceiros (sejam eles secretárias, jurisconsultos, empregados forenses, etc…) para o auxiliaram, ficando estes intimamente ligados à actividade profissional desenvolvida pelo Advogado.

Por ter de existir esta relação de proximidade e confiança, esses mesmos terceiros não podem deixar de estar também sujeitos ao segredo profissional, sob pena de, facilmente, se defraudar o instituto jurídico-deontológico do segredo profissional.

E ficarão sujeitos ao dever de segredo profissional relativamente a todos os factos abrangidos pela esfera de protecção do Advogado.

 

Pelo que, incidindo os depoimentos a prestar sobre factos conhecidos no âmbito da relação profissional estabelecida com o então Advogado Senhor Dr. A, dúvidas não subsistem de que as antigas funcionárias deste estão obrigadas a sigilo quanto aos factos de que nesse âmbito tomaram conhecimento, por força do disposto no artigo 87º n.ºs 1 e 7 do Estatuto.  

 

E, subsistem, no caso vertente, valores superiores ao dever/direito de sigilo profissional?

 

Analisados os (escassos) elementos fácticos trazidos ao conhecimento deste Conselho, concluímos, desde logo, que não são identificados de modo objectivo, concreto e exacto qual o facto ou factos sobre os quais a desvinculação é pretendida. 

E seria indispensável para a pronúncia a emitir que nos tivessem sido dados a conhecer quais os factos, concretos e determinados, a que a audição das antigas funcionárias com quebra do sigilo profissional é pretendida.

De facto, só conhecendo esses factos estaríamos em condições de, em conjugação com as demais particularidades do caso concreto, verificar se o dever de sigilo profissional deveria ceder.  

 

E desconhecendo os factos aos quais os depoimentos são pretendidos, também não estamos em condições de aferir se os depoimentos das antigas funcionárias são, efectivamente, um meio de prova exclusivo dos factos que se pretendem ver provados.   

O recurso a um meio de prova sujeito ao dever de sigilo – como é o caso do depoimento destas duas testemunhas -, deve ser sempre encarado como um meio excepcionalíssimo, sob pena de se banalizarem os deveres fundamentais desta nossa profissão.

O meio de prova sujeito a sigilo terá sempre de ser um meio de prova exclusivo, único meio de prova de determinado facto ou acervo de factos. Não interessa, em matéria de sigilo, que o meio de prova sujeito a sigilo seja o melhor, o mais eficaz ou o meio de prova de obtenção mais simples. Terá de ser o único meio de prova da factualidade visada nos autos.

E, no caso concreto, nada nos permite concluir nesse sentido. 

 

Por outro lado, tal como se encontra recortado o pedido de audição da Ordem dos Advogados – que, recorde-se, apenas foi instruído com cópia da acta da audiência de discussão e julgamento que se realizou no dia 05.05.2013, onde foi suscitada a questão da sujeição ao dever de sigilo das testemunhas –, nada nos permite concluir pela existência de um interesse preponderante ao sigilo que leve ao sacrifício deste dever.

Para que seja quebrado o dever de sigilo profissional, será sempre exigível uma situação de total excepcionalidade e absoluta necessidade da audição das pessoas vinculadas a sigilo profissional.

O que não se manifesta de forma nenhuma na fundamentação – rectius, na escassez de fundamentação – em que assenta o incidente de quebra de sigilo profissional deduzido e ora sob análise.

E, não nos parece suficiente, salvo o devido respeito, que o pedido de audição com quebra de sigilo profissional se funde, única e exclusivamente, na sua essencialidade para a descoberta da verdade material.

A fundamentação factual da total excepcionalidade e absoluta necessidade da audição das duas testemunhas seria, a nosso ver, relevante para a pronúncia a emitir.

 

Em suma, não sendo possível, nos termos atrás fundamentados, concluir pela existência de um interesse superior aos interesses que se visa proteger com instituto jurídico-deontológico do sigilo profissional plasmado no artigo 87º do Estatuto, forçoso é concluir que não estão, a nosso ver, reunidas as condições de que depende a audição com quebra do sigilo profissional das B e C, antigas funcionárias do escritório de advocacia do Senhor Dr. A, no âmbito do processo pendente - , Juízo - , - Secção – Juiz -, sob o n.º -.

 

Lisboa, 23 de Julho de 2014.

 

A Assessora Jurídica do CDL

Sandra Barroso

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 23 de Julho de 2014.

 

O Presidente do Conselho Distrital de Lisboa

António Jaime Martins

 

 

[1] Bastonário Dr. Augusto Lopes Cardoso, in “Do segredo profissional na Advocacia”, Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, 1998, p. 17.

Sandra Barroso

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