Pareceres do CRLisboa

Consulta nº 26/2014

Consulta n.º 26/2014

Assunto:       

    Incidente processual de quebra do sigilo profissional – Artigo 135º do Código de Processo Penal e Artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro).
    Questão



Vem o Exmo. Senhor Juiz Desembargador da - Secção do Tribunal da Relação de - solicitar ao Senhor Presidente do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados a emissão de parecer, nos termos e para os efeitos do disposto nos números 3 e 4 do artigo 135º do Código de Processo Penal (doravante CPP).

O incidente de quebra do sigilo profissional foi suscitado no âmbito do inquérito pendente, à data da entrada em vigor do Novo Mapa Judiciário, nos Serviços do Ministério Público do Tribunal da Comarca --, sob o n.º -, quanto ao Senhor Advogado Dr. A, que se escusou a depor com fundamento no segredo profissional, ao abrigo da faculdade concedida pelo n.º 1 do artigo 135º do CPP.

Em resumo, pode sintetizar-se a questão em análise da seguinte forma:


a) O processo de inquérito em curso tem por objecto factos que a serem provados poderão consubstanciar, em termos abstractos, a prática dos crimes de falsificação de documento e de burla, previstos e punidos, respectivamente, pelo artigo 256º n.º 1 e pelo artigo 217º, ambos do Código Penal.
b) Da factualidade vertida na queixa apresentada pelo queixoso, resulta que, enquanto permaneceu no Brasil foram praticados actos de disposição do património das sociedades de que todos são sócios e melhor identificadas nos autos.
c) Sustenta ainda o queixoso que os arguidos chegaram, inclusive, a simular a sua presença em assembleias gerais e a falsificar a sua assinatura em documentos, em datas em que se encontrava no Brasil.
d) No decurso das diligências de investigação, os arguidos viriam a esclarecer que os documentos cujo teor e assinatura o queixoso impugna, foram elaborados no escritório do Senhor Advogado Dr. A e que, quando colocaram as suas assinaturas nesses mesmos documentos não constava a assinatura do queixoso, desconhecendo quem posteriormente a terá aposto, visto os documentos terem ficado na posse do Senhor Advogado.
e) Chamado a depor, o Senhor Dr. A escusou-se a depor invocando o sigilo profissional.
f) Considerada legítima a escusa, foi suscitado incidente junto do Tribunal da Relação de -.
g) Recebido o incidente, veio o Exmo. Senhor Juiz Desembargador da - Secção do Tribunal da Relação de -  solicitar a pronúncia deste Conselho, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 135º do CPP.


É o que faremos de seguida.


Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa   


Nunca é de mais referir o carácter fundamental e verdadeiramente basilar que a obrigação de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia.

Mas não só.

Trata-se de dever de primordial importância para o reconhecimento da plenitude de um Estado do Direito Democrático como consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.

É que o Estado de Direito Democrático não só exige um poder judicial independente, como também tem ainda subjacente o exercício de uma Advocacia livre, independente e responsável. Advocacia que, para ser exercida desta forma, terá necessariamente de, nas relações estabelecidas entre os Advogados e os seus clientes, assentar num elevadíssimo grau de confiança entre as partes.

Contudo, e mais do que exigido pelas partes, o segredo profissional é algo que é exigido pela própria ordem social e vertido em forma de lei no Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor (Lei n.º 15/2005, 26 de Janeiro).

E isto porque o sigilo vai ter frequentemente outros destinatários ou beneficiários para além do cliente, no âmbito dos serviços a este prestados, devendo o Advogado ser, nas suas múltiplas relações sociais e profissionais, merecedor de confiança e isenção. Não apenas o Advogado individualmente considerado, como profissional liberal que é, mas como membro de uma classe profissional.

Por isso, convirá realçar de forma plenamente convicta que estamos perante um dever com carácter social ou de ordem pública e não de natureza meramente contratual. Mais do que um dever do próprio profissional, “o sigilo é um dever de toda a classe, é condição da plena dignidade do Advogado bem como da Advocacia”[1].

Mas, tal não significa que o dever de guardar sigilo seja absoluto. Bem assim, existem casos em que o levantamento da obrigação de guardar sigilo profissional se poderá justificar. Se tal não acontecesse, em situações obviamente excepcionais, elementares princípios de justiça correriam o risco de serem fortemente atingidos.

Assim, e para o efeito, estabelece a lei dois mecanismos que se diferenciam desde logo a propósito do sujeito que tem legitimidade para impulsionar o levantamento do segredo profissional:

Dispensa de sigilo profissional, a qual é solicitada pelo Advogado detentor dessa obrigação ao Presidente do Conselho Distrital competente, sendo concedida, caso se verifiquem preenchidos os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados;

Incidente processual de quebra de sigilo profissional (mecanismo previsto no artigo 135º do Código de Processo Penal[2]), tendo legitimidade para o desencadear qualquer das partes em juízo ou a autoridade judiciária.

A decisão da quebra de sigilo é tomada, com audiência prévia, no caso concreto, da Ordem dos Advogados, audiência essa que recairá inevitavelmente, quanto ao preenchimento, ou não, das condições de que depende a quebra do sigilo profissional. Ou seja, sobre a existência de um interesse superior aos interesses que se visa proteger com a obrigação de guardar sigilo profissional.

Em suma, para que se possa concluir pela existência de um interesse preponderante há que verificar, em concreto e tal como o pedido de quebra se encontra alicerçado, se a audição do Advogado com quebra do sigilo, se reveste de absoluta necessidade, isto é, de imprescindibilidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser indispensável (ou seja, imprescindível, e não meramente útil) face ao objectivo de prova visado; de essencialidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser absolutamente determinante; e de exclusividade, pressupondo este requisito a inexistência de qualquer outro meio de prova para além do meio de prova sujeito a sigilo.

Sucede que, no caso vertente, e tal como se encontra recortado o pedido de audição da Ordem dos Advogados deduzido, nada nos permite concluir pela existência de um interesse preponderante ao sigilo que leve ao sacrifício deste dever. E, tal deve-se, unica e exclusivamente, à ausência de elementos fácticos que permitam essa ponderação.

Para que seja quebrado o dever de sigilo profissional, será, a nosso ver, sempre exigível uma situação de total excepcionalidade e absoluta necessidade da audição do Advogado em causa sobre os factos de que tomou conhecimento no exercício da profissão. O que não se manifesta de forma nenhuma fundamentada ou concretizada no incidente de quebra de sigilo profissional deduzido e ora sob análise.


Concluindo:

Entendemos que, no presente caso, não estão reunidas as condições de que depende a audição do Senhor Advogado Dr. A com quebra do sigilo profissional, no âmbito do inquérito pendente, à data da entrada em vigor do Novo Mapa Judiciário, nos Serviços do Ministério Público do Tribunal da Comarca - , sob o n.º - .

Notifique-se.

Lisboa, 6 de Outubro de 2014.

A Assessora Jurídica do CDL

Sandra Barroso

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

Lisboa, 6 de Outubro de 2014.

O Presidente do Conselho Distrital de Lisboa
António Jaime Martins




[1] Bastonário Dr. Augusto Lopes Cardoso, in “Do segredo profissional na Advocacia”, Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, 1998, p. 17.

[2] Também aplicável ao processo civil – vide Artigos 417º n.ºs 3 al. c) e 4 e 497º n.º 3, ambos do Novo Código de Processo Civil.



Sandra Barroso

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