Pareceres do CRLisboa

Consulta nº 31/2014

CONSULTA N.º 31/2014

Assunto:       

    Legitimidade da escusa para depor – Artigo 135º n.ºs 1, 2 e 4 do Código de Processo Penal e Artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro)

Questão

Através de comunicação recepcionada nos Serviços do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados no dia 17 de Julho do corrente (entrada com o número de registo) o Exmo. Senhor Juiz da - Secção de Instância Criminal da Instância Central da Comarca de - veio solicitar a pronúncia do Conselho Distrital de Lisboa quanto à (i) legitimidade da escusa para depor apresentada pelo Senhor Advogado Dr. A , titular da cédula profissional n.º -, no âmbito do processo n.º -, nos termos e para os efeitos do disposto nos números 1, 2 e 4 do artigo 135º do Código de Processo Penal (doravante CPP).

No despacho proferido nos autos pela Exma. Senhora Procuradora-Adjunta titular do processo, pode ler-se, nomeadamente, o seguinte:

“ Nos presentes autos mostra-se suficientemente indiciado que a arguida C, funcionária da Segurança Social, no exercício da sua actividade de fiscalização de contribuintes, solicitou ao grupo “X”, uma quantia em dinheiro, de modo a que durante um ano tal grupo não fosse sujeito a acções inspectivas, pelo Departamento de Fiscalização do ISS.

(…)

Nos autos, foi determinada a inquirição, na qualidade de testemunha, de B, advogado.
(…)

Na data da inquirição, o referido causídico juntou aos autos o extracto de uma decisão proferida pela Ordem dos Advogados, no âmbito de um processo de quebra de sigilo profissional, decisão esta que o impede de prestar depoimento como testemunha no presente inquérito, porquanto não se mostram devidamente preenchidos os pressupostos inerentes ao regime excepcional da dispensa, plasmados no art. 87º, n.º 4, do Estatuto da Ordem dos Advogados.

Compulsados os autos, constata-se que o conhecimento que o Dr. A tem dos factos sob investigação, resulta da circunstância de na qualidade de advogado do denunciante grupo “ X ” e no âmbito do exercício do referido mandato ter presenciado os factos investigados conforme supra se descreveu.
Acresce que, a referida situação veio a ser denunciada pelos representantes do grupo “ X ”, dando origem aos presentes autos.

Dispõe o n.º 4 do art. 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados que “o advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamente”.

Deste modo, cremos que a inquirição do Dr. A nos presentes autos, não põe em causa o sigilo profissional de advogado, uma vez que o seu depoimento em nada contende com o patrocínio do seu constituinte, antes pelo contrário.

Parece-nos que a recusa não é legítima pelas razões já indicadas, pelo que nos termos do disposto no art. 135º, n.º 2, 3 e 4 do CPP, promove-se a V.Exa. que aprecie a legitimidade da escusa e considerando-se a mesma ilegítima determine a prestação de depoimento pela testemunha A”.

É, portanto, neste contexto que a nossa pronúncia é solicitada.

Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa

A existência da obrigação de segredo profissional impede o Advogado de revelar factos sigilosos e, ou, os documentos onde esses mesmos factos possam estar contidos, excepto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Distrital respectivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, (de ora em diante designado EOA) e pelo artigo 4º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional (Regulamento n.º 94/2006, publicado no Diário da República, II Série, n.º 113, de 12 de Junho de 2006).

Ainda que dispensado nos termos referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional. O Advogado é, pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade activa para solicitar, se assim o entender, dispensa do dever segredo.

A lei processual penal[1], porém, consagra um regime de excepção, previsto no artigo 135º.

De harmonia com este regime, que será o relevante no caso ora em apreço, a regra continua a ser a de o Advogado poder (e, à luz do EOA, “dever”) escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo dever de segredo profissional. Deduzida a escusa perante o Juiz ou perante a autoridade judiciária que presidir ao acto, poderão suscitar-se dúvidas, que deverão ser fundadas, acerca da legitimidade da invocação do sigilo profissional e da escusa em depor que o mesmo fundamenta – cfr. n.º 2 do artigo 135º do CPP. Quando tal acontecer, como no caso vertente, o Juiz decide sobre a legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cfr. n.º 4 do artigo 135º do CPP.

Nesta sede, o que terá de se aferir é se o Advogado está ou não a invocar correctamente o dever de segredo profissional, o que implica que os factos sobre os quais se pretende que venha a depor deverão constituir matéria abrangida no âmbito do sigilo.

Cumprirá, pois, indagar se os factos aos quais o depoimento do Senhor Advogado Dr. A é pretendido se deverão considerar abrangidos pela esfera de protecção do sigilo profissional.

Vejamos então.

Nunca é de mais referir o carácter fundamental, para não dizer, verdadeiramente basilar, que a obrigação de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia. Mais do que uma condição para o seu desempenho é, sobretudo, um traço essencial da sua própria existência.

Sem o segredo profissional erigido em regra de ouro não existe, nem pode existir, Advocacia livre e independente, ficando abalado o direito de defesa dos cidadãos que recorrem ao Advogado para protecção dos seus direitos, liberdades e garantias.

No fim da linha, é o próprio Estado de Direito Democrático que é atingido no seu cerne, porquanto o sigilo profissional entre o Advogado e o seu Constituinte é estruturante e conditio sine qua non do direito de defesa dos cidadãos. Assim o tem entendido a lei e a própria jurisprudência da Ordem dos Advogados.

Com efeito, o Advogado é acometido, por força da lei ordinária e pela Constituição de uma verdadeira «missão de interesse público», competindo-lhe, designadamente:

- defender o Estado de direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos;
- pugnar pela boa aplicação das leis;
- colaborar na administração da justiça e pugnar pelo seu rápido funcionamento;
- assegurar o acesso ao direito nos termos da Constituição, como defensores e patronos;
- opinar sobre os projetos de diplomas legislativos que interessem ao exercício da advocacia e o patrocínio judiciário em geral;
- propor alterações legislativas relevantes para o sistema de justiça.
(v. art.ºs 3.º nas suas diversas alíneas e o 85.º, n.º 1 do EOA).

São, assim, os Advogados garantes de importantes funções do Estado com consagração constitucional como é o “acesso ao direito e aos tribunais” e o “patrocínio judiciário” previstos no art.º 20.º, n.ºs 1 e 2 da Lei Fundamental e que constituem “elemento essencial da administração da justiça” como resulta do art.º 208.º da mesma Lei, sendo-lhes com esse propósito conferidas garantias e imunidades no exercício do mandato forense (art.º 150.º, n.º 2 do Novo Código de Processo Civil), num claro e inequívoco reconhecimento da relevante função social de interesse público da profissão.

Atente-se, aliás, na redacção do art.º 13.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/1013, de 26 de Agosto –, com a epígrafe “Imunidade do mandato conferido a advogados”:

“Artigo 13.º

Imunidade do mandato conferido a advogados

1 — A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício dos atos próprios de forma isenta, independente e responsável, regulando-os como elemento indispensável à administração da justiça.
2 — Para garantir o exercício livre e independente de mandato que lhes seja confiado, a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz, designadamente:

a) O direito à proteção do segredo profissional;b) O direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de atos conformes ao estatuto da profissão;
c) O direito à especial proteção das comunicações com o cliente e à preservação do sigilo da documentação relativa ao exercício da defesa;
d) O direito a regimes específicos de imposição de selos, arrolamentos e buscas em escritórios de advogados, bem como de apreensão de documentos”.

Se ao Advogado não fosse reconhecido o direito de guardar para si, e só para si, o conhecimento de tudo quanto o seu Constituinte, directamente ou por via de terceiros, lhe confiou, ou não fosse obrigado a reservar a informação que obteve no exercício do mandato, então não haveria Advocacia livre e independente, transformando-se os Advogados em testemunhas de defesa e desse modo se desvirtuando a sua função na administração da Justiça e no acesso ao direito.

Existem, em suma, segundo entendimento há muito perfilhado por este Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados[2] três grandes ordens de razões que estão na origem da consagração estatutária do dever (que é ao mesmo tempo direito) do advogado guardar segredo profissional sobre factos e documentos dos quais tome conhecimento no exercício da profissão:

    A indispensabilidade de tutelar e garantir a relação de confiança entre o advogado e o cliente.
    O interesse público da função do advogado enquanto agente activo da administração da justiça.
    A garantia do papel do advogado na composição extrajudicial de conflitos, contribuindo para a paz social.

    Sob a epígrafe “Segredo Profissional”, dispõe o artigo 87º do Estatuto, o seguinte:

“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ourevelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o Bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamento.

5 - Os actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.

7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua actividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.

8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração”.

Todo o Advogado que exerça actos típicos da profissão só pode ser considerado como agindo nessa mesma qualidade e está integralmente adstrito ao cumprimento dos deveres consignados no Estatuto da Ordem dos Advogados, nomeadamente, ao dever de sigilo profissional.

O que seja segredo tem de ser aferido por três vias:

    pela forma como o conhecimento do facto chegou ao Advogado, quem o revelou e em que quadro fáctico;
    pelo teor do facto, que ajuda a perceber se tem ou não a natureza de segredo, pois nem tudo o que é revelado ao Advogado é, em si, um segredo;
    pelas próprias circunstâncias do conhecimento e da revelação.

A análise feita através deste triplo crivo, ajuda a discernir o que é e o que não é segredo.

Finalmente, não se supõe, ou pressupõe, nunca, a dispensa de sigilo, mesmo que esteja em causa a defesa dos direitos e interesses do próprio cliente, ou antigo cliente, e ainda que o próprio dele queira prescindir, pois que o segredo profissional tem interesse público e não visa proteger apenas a advocacia.

Vejamos então o caso concreto.

Conforme decorre do despacho exarado nos autos pela Exma. Senhora Procuradora-Adjunta, já em momento anterior o Senhor Dr. A apresentou, ao abrigo do disposto no artigo 87º n.º 4 do EOA, um pedido de dispensa de sigilo profissional. Este pedido foi objecto de despacho de indeferimento por se ter concluído não estarem preenchidos os requisitos exigidos quer pelo artigo 87º n.º 4, quer pelo Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional (Regulamento n.º 94/2006, de 12 de Junho, DR, II Série).

Evidentemente que a decisão em apreço teve como pressuposto necessário a sujeição ao dever de sigilo dos factos aos quais o depoimento do Senhor Dr. A é pretendido. De resto, se assim não for, não exige o regime legal em vigor qualquer pronúncia ao abrigo do artigo 87º n.º 4 do EOA, nem qualquer outra pronúncia prévia para que um Advogado possa colaborar com a justiça.

E, de acordo com a factualidade e o circunstancialismo que então nos foi dado a conhecer pelo Senhor Dr. A – e que, nesta sede, não podemos divulgar, atento o disposto no alínea b) do n.º 1 do artigo 87º do EOA –, concluímos que o Senhor Dr. A tomou conhecimento dos factos objecto do processo de inquérito em curso no exercício da profissão e por causa desse mesmo exercício.

Pelo que, existindo uma relação de causalidade necessária entre o exercício da profissão e o conhecimento desses mesmos factos, dúvidas não restam de que o Senhor Dr. A está, quanto a eles, obrigado a sigilo, já que a obrigação de segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao Advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, nos termos conjugados do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 87º do EOA.

Assim sendo, a obrigação de sigilo profissional deve ser mantida enquanto, pelos meios legalmente previstos, não cessar.

EM SUMA:

Tudo ponderado, entendemos, salvo melhor opinião, que a escusa para depor apresentada pelo Senhor Advogado Dr. A é legítima, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135º n.ºs 1, 2 e 4 do Código de Processo Penal.

Lisboa, 3 de Outubro de 2014.

A Assessora Jurídica do CDL

Sandra Barroso

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,


Notifique-se.

Lisboa, 3 de Outubro de 2014.

O Presidente do Conselho Distrital de Lisboa
António Jaime Martins



[1] Também aplicável ao processo civil – vide Artigos 417º n.ºs 3 al. c) e 4 e 497º n.º 3, ambos do Novo Código de Processo Civil.

[2] Parecer do Conselho Distrital de Lisboa n.º 02/01, aprovado em sessão plenária no dia 13.03.2003, no qual foi relator o Dr José Ferreira de Almeida. 

Sandra Barroso

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