Pareceres do CRLisboa

Consulta nº 34/2014

CONSULTA N.º 34/20014

Assunto:      

Conflito de Interesses – Artigo 94º do EOA. 

Questão

Através de comunicação escrita recepcionada nos Serviços do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados no dia 9 de Maio do corrente (entrada com o número de registo ), a Senhora Advogada Dra. - , titular da cédula profissional n.º -, veio, ao abrigo do disposto no artigo 50º, n.º 1, alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro), solicitar a emissão de Parecer quanto a uma questão de eventual conflito de interesses.

O enquadramento factual, tal como exposto pela Senhora Advogada Consulente, é, em síntese, o seguinte:

a) A Senhora Advogada Consulente patrocina o Banco A, um dos credores do insolvente, num processo de insolvência pendente, à data da entrada em vigor do Novo Mapa Judiciário, no Tribunal de Comércio de Lisboa.

b) De entre os inúmeros credores do insolvente, há credores que são também clientes da Senhora Advogada Consulente noutros processos judiciais. Um desses credores é o Banco B.

c) Ambos os Bancos são credores hipotecários de alguns prédios rústicos e urbanos que integram a massa insolvente.

d) O constituinte da Senhora Advogada requerente, o Banco A, na qualidade de credor hipotecário, indicou os valores base e a modalidade para venda de três dos imóveis que constituem a massa insolvente.

e) Em sequência, o Banco B requereu a adjudicação desses três imóveis pelos valores que haviam sido indicados pelo Banco A.

f) Tal requerimento foi aceite por todos os intervenientes, tendo, por conseguinte, o Administrador de Insolvência aceite a referida proposta e emitido o respectivo título de adjudicação.

g) Porém, no dia da escritura, o Banco B apercebeu-se que os valores pelos quais havia requerido a adjudicação dos três imóveis eram muito superiores ao valor que pretendia, atendendo ao valor da sua hipoteca e ao facto de se ver obrigado a depositar valor suficiente para pagar os créditos do Banco A, pelo que não outorgou a escritura pública.

h) Contudo, entende o Banco A que o Banco B não poderá, sem mais, desistir da proposta apresentada, porquanto já foi emitido o respectivo título de adjudicação, entendimento este defendido pela Senhora Advogada Consulente quer junto do Administrador de Insolvência, quer nos autos.

i) Entendimento que o Banco B não aceita e ao qual se opõe.

Considerando a factualidade exposta, vem a Senhora Advogada Consulente solicitar a emissão de parecer quanto à existência de eventual conflito de interesses, não obstante entender que a mesma não integra nenhuma das situações previstas no artigo 94º do Estatuto.


Da competência consultiva do Conselho Distrital de Lisboa

Nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 50º do Estatuto, compete aos Conselhos Distritais pronunciarem-se sobre questões de carácter profissional que se suscitem no âmbito da sua competência territorial.

A competência consultiva dos Conselhos Distritais está, assim, limitada pelo EOA a questões inerentemente estatutárias, isto é, as que resultam da interpretação e aplicação dos princípios, regras, usos e praxes que regulam e orientam o exercício da profissão, maxime as que decorrem das normas do EOA, do regime jurídico das sociedades de advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido pela lei aos órgãos da Ordem dos Advogados.

Ora, a matéria colocada à apreciação deste Conselho Distrital subsume-se, precisamente, a uma questão de carácter profissional nos termos descritos, pelo que haverá que proceder à emissão de parecer nos termos solicitados.

Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa

O Advogado, no exercício da sua profissão, está vinculado ao cumprimento escrupuloso de um conjunto de deveres consignados no Estatuto e ainda àqueles que a lei, os usos, os costumes e as tradições profissionais lhe impõem.

O cumprimento escrupuloso e pontual de todos esses deveres garante a dignidade e o prestígio da profissão.

No artigo 94º do Estatuto encontra-se regulado o denominado “conflito de interesses”.

Aí estão plasmadas várias categorias de situações geradoras de incompatibilidade para o exercício do patrocínio.

A matéria do conflito de interesses resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão e constitui expressa manifestação do princípio geral estatuído no art. 84º do Estatuto, segundo o qual o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros”.

Nesta medida, o regime legal estabelecido a propósito do conflito de interesses cumpre uma tripla função[1]:

Defender a comunidade em geral, e os clientes de um qualquer Advogado em particular, de actuações menos lícitas e/ou danosas por parte de um Colega, conluiado ou não com algum ou alguns dos seus clientes;

Defender o próprio Advogado da possibilidade de, sobre ele, recair a suspeita de actuar, no exercício da sua profissão, visando qualquer outro interesse que não seja a defesa intransigente dos direitos e interesses dos seus clientes;

Defender a própria profissão, a Advocacia, do anátema que sobre ela recairia na eventualidade de se generalizarem este tipo de situações.

Decorre assim, da norma legal em apreço, que:

    “1 – O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.

    2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.

    3 – O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.

    4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.

    5 - O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.
   
    6 - Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.”

 Analisemos então a questão colocada.

Em bom rigor, a resposta a dar não passa pelo n.º 1 desta norma, a qual tem por escopo evitar situações de patrocínio, por parte de um Advogado, em questões, relativamente às quais:

    -  já tenha intervindo em qualquer outra qualidade;
    - sejam conexas, do ponto de vista dos direitos a defender pelo Advogado e das realidades que lhes estão materialmente subjacentes, com outras em que represente, ou tenha representado a parte contrária.

Tal como se verifica descrita a situação, o que se passa é algo de diferente: a Senhora Advogada Consulente presta serviços jurídicos ao Banco B em assuntos independentes e autónomos dos serviços que presta ao Banco A, no âmbito do processo de insolvência.

Não existe, pois, identidade material de assuntos confiados à Senhora Advogada Consulente, nem conexão dos mesmos no sentido que tivemos oportunidade de expor.

A chave para se responder à dúvida colocada reside, a nosso ver, na correcta interpretação do disposto no n.º 2 do artigo 94º do Estatuto, nos termos do qual “O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.”

A norma legal em causa tem um âmbito definido: trata-se de evitar que em causas distintas, isto é, sem qualquer conexão entre si, o Advogado seja, simultaneamente a favor de um constituinte numa delas e contra ele noutra.

Em primeiro lugar, refira-se que o conceito de “causa pendente” não diz apenas respeito a processos judiciais, devendo ser entendido como abrangendo qualquer assunto pendente confiado ao Advogado, relacionado ou não com litígios judiciais.

O elemento teleológico do regime estatuído no artigo 94º do Estatuto afasta uma interpretação meramente literal da norma, que nos levaria a limitar o conceito de “causa pendente” a “processo judicial pendente”.

O caso presente, tal como enunciado, levanta a questão de saber se a Senhora Advogada Consulente, no processo de insolvência, se encontra a patrocinar o Banco A contra o Banco B, que a Senhora Advogada Consulente patrocina noutros processos judiciais.

Obviamente que do ponto de vista processual a resposta à questão colocada terá de ser necessariamente negativa.

E para efeitos de aferição de conflito de interesses?

Ora, já neste contexto, entendemos que a resposta a dar terá de ser necessariamente afirmativa.

De facto, os interesses do Banco A e do Banco B são agora conflituantes e antagónicos, no que concerne à questão da adjudicação dos três imóveis de que ambos são credores hipotecários.

Assim, para efeitos de aferição de conflito de interesses, deve considerar-se que a Senhora Advogada Consulente se encontra a litigar em juízo contra o Banco B, também seu constituinte noutros processos judiciais.

Pelo exposto, entendemos, salvo melhor opinião, que a Senhora Advogada Consulente deverá cessar a representação do Banco A no processo de insolvência em curso, por existir conflito de interesses superveniente.

Notifique-se.

Lisboa, 2 de Outubro de 2014.


A Assessora Jurídica do CDL
Sandra Barroso

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

Lisboa, 2 de Outubro de 2014.

O Presidente do Conselho Distrital de Lisboa
António Jaime Martins



[1] Cfr. Processo de Consulta do CDL n.º 6/02, aprovado em 16.10.2002, e no qual foi relator o Dr. João Espanha.



Sandra Barroso

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