Pareceres do CRLisboa

Consulta nº 35/2014

CONSULTA N.º 35/2014

Assunto:      

    Conflito de Interesses – Artigo 94º do EOA.
    OBJECTO


Através de comunicação escrita recepcionada nos Serviços do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados no dia 18 de Setembro do corrente (entrada com o número de registo - ), o Senhor Advogado Dr. A, sócio da Sociedade de Advogados “ B ” veio, ao abrigo do disposto no artigo 50º, n.º 1, alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro), solicitar a emissão de Parecer quanto a uma questão de eventual conflito de interesses.

O enquadramento factual, tal como exposto pelo Senhor Advogado Consulente, é, em síntese, o seguinte:

    Em 2010, o Senhor Advogado Consulente patrocinou o Dr. C, bem como algumas sociedades farmacêuticas por este detidas e geridas.

    Neste contexto, foram encetadas negociações com alguns credores das sociedades farmacêuticas com vista à sua reabilitação.

    Também outros Advogados que exercem a sua actividade profissional na “ B ” praticaram outros actos jurídicos, designadamente, reconhecimentos (do próprio cliente, da sua esposa, Dra. X, e dos representantes legais das sociedades).

    O patrocínio ao cliente estendeu-se também à Dra. X, uma vez que foram encetadas negociações com credores onde ambos figuravam em acordos de pagamentos.

    O patrocínio prestado pelo Senhor Advogado Consulente cessou em finais de 2010.

   O Senhor Advogado Consulente foi agora contactado pela Dra. X para assumir, especificamente e apenas, a sua defesa em acções judiciais de reversão fiscal e de eventual crime fiscal e de insolvência dolosa pessoal ou da sociedade cuja gestão, alegadamente, assumiu de direito e de facto.

    A Dra. X e o Dr. C encontram-se separados de facto e em processo de divórcio por mútuo consentimento.

É esta, ipsis litteris, a factualidade que sustenta o pedido de emissão de Parecer que nos foi dirigido.


COMPETÊNCIA CONSULTIVA DO CONSELHO DISTRITAL DE LISBOA

Nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 50º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA), compete aos Conselhos Distritais pronunciarem-se sobre questões de carácter profissional que se suscitem no âmbito da sua competência territorial.

A competência consultiva dos Conselhos Distritais está, assim, limitada pelo EOA a questões inerentemente estatutárias, isto é, as que decorrem dos princípios, regras, usos e praxes que regulam e orientam o exercício da profissão, maxime as que decorrem das normas do EOA, do regime jurídico das Sociedades de Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido pela lei aos órgãos da Ordem dos Advogados.

A matéria colocada à apreciação deste Conselho Distrital subsume-se, precisamente, a uma questão de carácter profissional nos termos descritos, pelo que haverá que proceder à emissão de Parecer quanto à questão que nos foi colocada.


ANÁLISE E ENQUADRAMENTO ESTATUTÁRIO

“A Deontologia é o conjunto de regras ético-jurídicas pelas quais o advogado deve pautar o seu comportamento profissional e cívico. (...) O respeito pelas regras deontológicas e o imperativo da elevada consciência moral, individual e profissional, constitui timbre da advocacia.” – António Arnaut, Iniciação à Advocacia – História – Deontologia – Questões Práticas, p. 49 e 50, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996.

O Advogado, no exercício da sua profissão está vinculado ao cumprimento escrupuloso de um conjunto de deveres consignados no Estatuto e ainda àqueles que a lei, os usos, os costumes e as tradições profissionais lhe impõem (artigo 83º do EOA).

O cumprimento escrupuloso e pontual de todos esses deveres garante a dignidade e o prestígio da profissão.

O Título III do Estatuto trata da “Deontologia Profissional”, fixando, no Capítulo I, os Princípios Gerais e abordando, no Capítulo II, a questão das relações entre o Advogado e o cliente.

É neste último Capítulo e, mais especificamente no seu artigo 94º, que se encontra regulado o denominado “Conflito de Interesses”.

Aí estão plasmadas várias situações em que existe uma situação de incompatibilidade para o exercício do patrocínio.

A matéria do conflito de interesses, regida estatutariamente pelo teor do artigo 94º do Estatuto, resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão e constitui expressa manifestação do princípio geral estatuído no artigo 84º do EOA, segundo o qual o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros”.

Nesta medida, o regime legal estabelecido a propósito do conflito de interesses cumpre uma tripla função[1]:

    Defender a comunidade em geral, e os clientes de um qualquer Advogado em particular, de actuações menos lícitas e/ou danosas por parte de um Colega, conluiado ou não com algum ou alguns dos seus clientes;

    Defender o próprio Advogado da possibilidade de, sobre ele, recair a suspeita de actuar, no exercício da sua profissão, visando qualquer outro interesse que não seja a defesa intransigente dos direitos e interesses dos seus clientes;

    Defender a própria profissão, a Advocacia, do anátema que sobre ela recairia na eventualidade de se generalizarem este tipo de situações.

Preceitua a norma legal em apreço o seguinte:


“1 – O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária.
2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado.
3 – O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes.
4 – Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito.
5 - O Advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.
6 - Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.”

Vejamos então o caso concreto.

Em primeiro lugar, diremos que a circunstância do Senhor Advogado Consulente ter sido mandatário do Dr. C não é, de per si – e, frise-se, do ponto de vista objectivo –, suficiente para, sem mais, se concluir pela existência de conflito de interesses impeditivo da assunção do novo mandato.

De facto, o Estatuto da Ordem dos Advogados não contém, em matéria de conflito de interesses, uma proibição geral de patrocínio contra quem foi anteriormente seu cliente, mas apenas uma proibição de patrocínio:

    Contra quem seja por si patrocinado noutra causa pendente.
    Em causas em que já tenha intervindo ou que sejam conexas com outras em que tenha representado a parte contrária.

    Em causas que possam colocar em crise o sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

Importa, antes de mais, ter presente que a expressão parte contrária a que se refere o artigo 94º do EOA não se resume ao conceito processual, e como tal o Dr. C e a Dra. X poderão ser partes contrárias para efeitos de aferição de conflito de interesses, tudo dependendo da factualidade em que assentar a defesa da Dra. X . E será desde logo o caso, por exemplo, se essa defesa, de alguma forma, se consubstanciar na imputação de responsabilidade recíproca.

A matéria do conflito de interesses resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão.

O que significa que a matéria do conflito de interesses é, em primeira linha, uma questão de consciência do Advogado.

Cabe a cada Advogado formular um juízo de consciência sobre se a relação de confiança que estabeleceu com um seu antigo cliente lhe permite, livremente e sem constrangimentos, assumir agora um patrocínio contra ele.

E desde já se diga que, se repugna a um Advogado litigar contra quem foi seu antigo cliente, tal deve ser entendido como causa justificante da recusa de patrocínio – ainda que isso não resulte de norma expressa. Outra conclusão não se poderia tirar dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão.

Mas, se por qualquer motivo – que será legítimo, diga-se, e sem que tal não implique qualquer juízo depreciativo da conduta do Advogado – tal repugnância não existir, haverá então, em segunda linha, que averiguar se uma determinada situação consubstancia ou não conflito de interesses.

Assim, deverá o Senhor Advogado Consulente avaliar:

    se é inequívoco que o assunto que a Dra. X pretende confiar-lhe não é conexo com qualquer outro em que tenha intervindo ou de que tenha tomado conhecimento em representação do Dr. C.E, em abstracto, diremos que poderá existir essa conexão material, isto se tivermos em conta a natureza dos processos judiciais que a Dra. X pretende confiar ao Senhor Advogado Consulente.

    se a aceitação do novo mandato não afectará a sua independência e a sua isenção, enquanto princípios estruturantes da profissão;

    se a assunção do novo mandato não colocará em crise o sigilo profissional relativamente aos assuntos que anteriormente lhe foram confiados pelo Dr. C;

    e se do conhecimento dos assuntos do antigo constituinte não resultam vantagens ilegítimas ou injustificadas para a Dra. X.

E, diga-se que, só o Senhor Advogado Consulente estará em posição de fazer essa avaliação.

Contudo, verificando-se qualquer uma das circunstâncias enunciadas supra, deverá o Senhor Advogado Consulente recusar a assunção do novo mandato.

Permitimo-nos ainda chamar a atenção para o seguinte.

A observância dos deveres deontológicos é exigível quer da Sociedade de Advogados, enquanto pessoa colectiva, quer, naturalmente, dos Advogados que a integrem, individualmente considerados.

Tal decorre directamente do artigo 208º do Estatuto que consagra o princípio de uma deontologia uniforme, independentemente do tipo de exercício de advocacia, individual ou societária, que é praticada.

A génese e a ratio do princípio são as de evitar situações promíscuas ou de transparência duvidosa quando o Advogado exerça a sua actividade em associação, entenda-se em grupo.

Nestas circunstâncias, o Advogado que exerça a sua actividade integrado em determinada estrutura deve respeitar as regras destinadas, nomeadamente, a evitar o conflito de interesses e a salvaguardar o dever de sigilo, mesmo no que respeita a assuntos e clientes de outros Advogados integrados em estrutura societária ou de associação para os quais nunca tenha prestado serviços[2].


O n.º 6 do artigo 94º do EOA consagrou expressamente a extensão do âmbito de aplicação das regras atinentes aos conflitos de interesses à actividade profissional desenvolvida em associação, sob forma de sociedade ou não, em relação a todos os Advogados associados.

Assim, caso o Senhor Advogado Consulente conclua, nos termos anteriormente expostos, pela impossibilidade de aceitar o novo mandato, qualquer Advogado que exerça a sua actividade profissional na “ B ” ficará igualmente impedido de aceitar o novo mandato.

Isto independentemente do vínculo que liga esse mesmo Advogado à Sociedade ou da natureza exclusiva, ou não, desse mesmo vínculo.

É este, salvo melhor opinião, o nosso entendimento sobre a questão que nos foi colocada, estritamente de acordo com os elementos que foram colocados à nossa disposição.

Lisboa, 1 de Outubro de 2014.

A Assessora Jurídica do CDL
Sandra Barroso

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

Notifique-se.
Lisboa, 1 de Outubro de 2014.

O Presidente do Conselho Distrital de Lisboa
António Jaime Martins



[1] Cfr. Parecer do Conselho Distrital de Lisboa n.º 6/02, aprovado em 16.10.2002, e no qual foi relator o Senhor Advogado Dr. João Espanha.

[2] Obviamente, a inibição decorrente do n.º 6 do artigo 94º do EOA, só vincula o Advogado enquanto exercer a sua profissão integrado nessa estrutura. Mas é evidente que um Advogado que deixa de exercer a profissão integrado numa determinada estrutura societária ou de associação mantém a obrigação de se abster de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de outros clientes da estrutura que integrou, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.


Sandra Barroso

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