Pareceres do CRLisboa

Consulta nº14/2014

Consulta n.º 14/2014

Assunto:       

    Segredo Profissional – Artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados (aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro).


Dos Factos

Veio o Exmo. Senhor Juiz titular do processo n.º - , pendente, à data da entrada em vigor do Novo Mapa Judiciário, no - Juízo de Competência Cível do Tribunal de Comarca de , solicitar a pronúncia do Conselho Distrital de Lisboa em matéria de sigilo profissional.

Pretende o Exmo. Senhor Juiz ver esclarecida a questão de saber se os factos invocados pela Autora, a Senhora Advogada  A, nos artigos 8º a 12º da Petição Inicial e os documentos juntos a esta sob os n.ºs 4 e 5, violam o dever de sigilo a que a Autora, Advogada em causa própria, possa, eventualmente, estar vinculada.

Da competência consultiva do Conselho Distrital de Lisboa

Nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 50º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA), aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, compete aos Conselhos Distritais pronunciarem-se sobre questões de carácter profissional que se suscitem no âmbito da sua competência territorial.

A competência consultiva dos Conselhos Distritais está, assim, limitada pelo EOA a questões inerentemente estatutárias, isto é, as que decorrem dos princípios, regras, usos e praxes que regulam e orientam o exercício da profissão, maxime as que decorrem das normas do EOA, do regime jurídico das sociedades de advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido pela lei aos órgãos da Ordem dos Advogados.

Ora, a matéria colocada à apreciação deste Conselho Distrital subsume-se, precisamente, a uma questão de carácter profissional nos termos descritos, pelo que há que proceder à emissão de parecer sobre a questão colocada.

Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa

A prossecução da Justiça e do Direito, verdadeiros objectivos da profissão de Advogado, implicam necessariamente que qualquer pessoa que tenha de recorrer aos serviços de um Advogado disponha de total confiança para que possa a este revelar os seus segredos, os seus interesses, sem qualquer receio de revelação dos mesmos (revelação essa que, a ser permitida, poderia colocar esses mesmos interesses em causa).

O regime do segredo profissional encontra-se, em larga medida, desenhado no artigo 87º do EOA.

O n.º 1 deste artigo contém aquilo que poderá caracterizar-se como a verdadeira regra geral do instituto jurídico-deontológico.

Aí se pode ler que “ O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”.

Pode até afirmar-se, em certa medida, que as demais regras previstas nas diversas alíneas do n.º 1 são sobretudo explicitações ou pormenorizações daquela, que terão sido incluídas no EOA para salientar situações mais marcantes ou de maior dificuldade de interpretação.

Mas, o que seja segredo tem de ser aferido por três vias:

    pela forma como o conhecimento do facto chegou ao Advogado, quem o revelou e em que quadro fáctico;
    pelo teor do facto, que ajuda a perceber se tem ou não a natureza de segredo, pois nem tudo o que é revelado ao Advogado é, em si, um segredo;
    pelas próprias circunstâncias do conhecimento e da revelação.

A análise feita através deste triplo crivo, ajuda a discernir o que é e o que não é segredo.

Contudo, e apesar de a tutela dos interesses do cliente ser um dos fundamentos do sigilo profissional, a verdade é que a latitude deste dever deontológico transcende a mera relação Advogado-cliente, estendendo-se, no que tange ao Advogado, a:

    factos que, por força de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados, qualquer colega, obrigado quanto aos mesmos factos ao segredo profissional, lhe tenha comunicado – alínea b);
    factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração – alínea c);
    factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do cliente ou pelo respectivo representante  - alínea d);
    factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise por termo ao diferendo em litígio – alínea e);
    factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, e em que tenha intervindo – alínea f).

    O conceito de “factos” para efeitos do sigilo profissional é um conceito amplo e compreende não só os factos materiais susceptíveis de alegação, como os próprios documentos onde esses mesmos factos materiais estão contidos, como decorre do disposto no n.º 3 do artigo 87º do Estatuto.

    O que facilmente se alcança se tivermos em conta que o sigilo profissional se reporta a factos.

    Do exposto se extrai que não é a mera circunstância de determinada correspondência se mostrar subscrita ou dirigida a Advogado que só por si, e ipso facto, a submete ao regime do sigilo profissional.

    A correspondência subscrita ou dirigida a Advogado só ficará sujeita ao regime do sigilo profissional se contiver factos, em si mesmos, sigilosos.

    Traçadas as linhas gerais que irão orientar o nosso pensamento, passemos de seguida à questão que ora nos ocupa, atendendo, estritamente, aos elementos que foram colocados à nossa disposição.

    A questão que se coloca é a de saber se a Autora, Advogada em causa própria, carecia, ou não, da autorização prévia prevista no artigo 87º n.º 4 do Estatuto, para poder articular os factos vertidos nos artigos 8º a 12º da Petição Inicial e para poder juntar a esta os docs. n.ºs 4 e 5.

    Antes de mais, refira-se que na acção actualmente em curso, a Autora peticiona o valor do IVA que a ora Ré, alegadamente, não terá pago aquando da apresentação da nota de honorários e despesas pelos serviços jurídicos que lhe foram prestados.

    Por facilidade de exposição, passamos a transcrever os artigos 8º a 12º da Petição Inicial:

“8º

Por diversas vezes foi a Ré interpelada e confessado essa dívida através do seu mandatário, Dr. B, tendo este chegado ao ponto de enviar via fax, a fotocópia do cheque destinado a ser entregue à ora A. para pagamento do referido IVA, (Docs. n.ºs 4 e 5).



Acordou-se então, que a colaboradora da A. Dr.ª C, se deslocaria ao escritório do mandatário da Ré, levando consigo os documentos que tinha em seu poder pertencentes àquela, e o recibo comprovativo do pagamento dos honorários,

10º

Em contrapartida, o mandatário da Ré, entregar-lhe-ia o cheque, cuja fotocópia havia enviado à A. via fax.

11º

Tal deslocação revelou-se infrutífera, já que o mandatário da Ré se negou a entregar o cheque à Drª C, alegando falta do inventário dos documentos.

12º

Perante este imprevisto, a DrªC ofereceu-se para proceder à elaboração do pretendido inventário, mas o representante da Ré, mesmo assim, negou-se a entregar o dito cheque.”


Os documentos relativamente aos quais a nossa pronúncia é solicitada correspondem a duas cartas:

- uma datada de 24.01.2005, subscrita pelo Senhor Advogado Dr. B, e dirigida à Autora, acompanhada da cópia de um cheque emitido a favor da ora Autora, no valor de x € (precisamente o valor peticionado nos autos, acrescido dos juros de mora as taxas legais sucessivamente em vigor);  - outra datada de 03.02.2005, subscrita pelo Senhor Advogado Dr. B e dirigida à Autora.

Analisados os elementos colocados à nossa disposição, não temos dúvidas em afirmar que, quer os factos articulados nos artigos 8º a 12º da Petição Inicial, quer os documentos sobre os quais a nossa pronúncia é pretendida, se enquadram numa tentativa malograda de obter uma solução extrajudicial quanto ao IVA alegadamente em dívida, matéria esta que constitui o objecto do litígio actualmente em curso.

Assim sendo, dúvidas não restam de que a factualidade em causa, vertida nos artigos 8º a 12º da Petição Inicial e contida nos mencionados documentos, cai directamente na previsão da alínea f) do n.º 1 do artigo 87º do Estatuto.

O que nos leva a concluir que a Autora carecia da autorização prévia prevista no artigo 87º n.º 4 do Estatuto para:

a) poder articular os factos vertidos nos artigos 8º a 12º da Petição Inicial, da forma como o fez, isto é, com referência expressa à intervenção do então Advogado da ora Ré.

O que não sucedeu.

Pelo que, consequentemente, esses factos deveriam, a nosso ver, ser cominados da sanção de “não escritos”, já que está em causa a prática de um acto proibido por lei.

b) poder juntar os documentos onde as negociações malogradas estão plasmadas.

O que também não sucedeu.

Assim, com rigor processual, os mencionados documentos estão sujeitos à cominação prevista no n.º 5 do artigo 87º do EOA, não podendo, consequentemente, fazer prova em juízo.


Contudo, é aos Tribunais que pertence a função jurisdicional e, por isso, a capacidade de julgar em definitivo se uma prova é ou não válida e se os factos articulados deverão, ou não, ser cominados da sanção de “não escritos”.

É este, s.m.o., o nosso entendimento quanto à questão que nos foi colocada.

Notifique-se.

Lisboa, 6 de Outubro de 2014.

A Assessora Jurídica do CDL
Sandra Barroso

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

Lisboa, 6 de Outubro de 2014.

O Presidente do Conselho Distrital de Lisboa
António Jaime Martins



Sandra Barroso

Topo