Pareceres do CRLisboa

Consulta nº10/2015

CONSULTA N.º 10/2015

Assunto:    
•    Segredo Profissional – Artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro.

Questão

Através de comunicação escrita recepcionada nos Serviços do Conselho Distrital de Lisboa no dia 6 de Março do corrente (entrada com o número de registo 9454), e esclarecimentos complementares prestados no dia 5 de Junho (entrada com o número de registo 19024), veio a Exma. Senhora Juíza do Tribunal da Comarca de Lisboa, Lisboa –, solicitar ao Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados a emissão de parecer quanto a uma questão de eventual violação do dever de sigilo profissional, previsto no artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

Subjacente à questão que nos foi colocada, está a factualidade que passamos a enunciar, estritamente de acordo com os elementos que foram colocados à nossa disposição.

Corre termos naquele Tribunal, sob o n.º - , uma acção declarativa de condenação em que é Autor A e Ré a Companhia de Seguros B

Subjacente ao litígio em curso, está o contrato de seguro celebrado entre as partes, mediante o qual a ora Ré garantia a responsabilidade civil emergente da circulação rodoviária do veículo de que o Autor era proprietário e melhor descrito nos autos, com cobertura de danos próprios.

A cobertura contratada por danos próprios em caso de furto ou roubo do veículo automóvel era de € 67.000,00 (sessenta e sete mil euros).

Tendo constatado o desaparecimento do seu veículo automóvel da via pública, o ora Autor fez a competente participação à Ré, solicitando o pagamento do montante indemnizatório no valor atrás referido, o qual, contudo, não foi pago.

Na acção em curso, peticiona o Autor, nomeadamente, o valor em causa a título de danos materiais, valor este que a Ré entende não ser devido, nos termos e com os fundamentos que melhor constam da Contestação.

No artigo 28º da Petição Inicial, o Autor, e para o que releva para o Parecer a emitir, alega o seguinte:
“Face à inexplicável morosidade da Ré em finalizar o processo, o Autor em 21 de Fevereiro de 2014 vem mais uma vez comunicar à Ré por carta registada com aviso de recepção o seu descontentamento pelo facto de, ainda, não ter sido ressarcido do valor da indemnização de € 67.000,00 e solicitar que lhe seja prestada, por escrito, toda a informação e esclarecimentos exigíveis para o caso, conforme carta registada que aqui se dá por integralmente reproduzida e se junta como doc. 14”.

A carta junta aos autos como Doc. n.º 14, é uma carta subscrita pelo Senhor Advogado Dr. C, mandatário do Autor, dirigida à ora Ré.

Em sede de Contestação, e no que à junção da mencionada carta diz respeito, sustenta a Ré o seguinte:

“1º
Veio o A. juntar aos autos, juntamente com a p.i., o documento 14 o qual é uma comunicação (resposta) enviada pelo mandatário constituído do A. à Ré, no âmbito e com vista à procura de uma solução extrajudicial para o litígio que se encontra pendente e posteriormente veio a dar origem aos presentes autos.


Sucede porém que o referido documento encontra-se abrangido, ao abrigo do disposto no art. 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados, adiante E.O.A., pelo segredo profissional.
(…)


Nestes termos, a junção do doc. 14 configura uma violação do segredo profissional, uma vez que não foi obtida previamente autorização para dispensa do sigilo profissional junto do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados”.

Em resposta, sustente o Autor:

“9º
O mandatário do Autor NUNCA teve quaisquer conversações com a Ré.

10º
Nunca houve lugar a qualquer fase de negociações entre o anterior Mandatário do Autor e a Ré.

11º
Nunca houve lugar a qualquer fase de negociações entre o ora Mandatário do Autor e a Ré.

12º
A Ré nunca informou o anterior mandatário ou o mandatário signatário de quaisquer factos.

13º
O advogado é obrigado a guardar segredo profissional relativo “a factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante as negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio”, art. 87º n.º 1 alínea e) do Estatuto da Ordem dos Advogados.

E/Ou

14º
O advogado é obrigado a guardar segredo profissional relativo “a factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que TENHA INTERVINDO”, nos termos do art. 87º, n.º 1, alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados.

Assim sendo,

15º
Na circunstância de ter havido, (QUE NÃO HOUVE, dada a fase preliminar do processo e a total ausência de resposta da Ré), o actual Estatuto da Ordem dos Advogados defende contudo que só o advogado que interveio nas negociações malogradas fica sujeito ao segredo profissional.

16º
Face ao supra exposto foi entendimento do mandatário signatário não haver factos que a Ré tenha comunicado ao mandatário susceptíveis de segredo profissional, porquanto a Ré remeteu-se ao silêncio.

Pelo exposto,

17º
O mandatário signatário considera, salvo o devido respeito, descabidas, despropositadas, falsas e inaceitáveis as afirmações invocadas pelo mandatário da Ré no art. 1º da contestação, pelo que não há qualquer violação do sigilo profissional por parte do mandatário do Autor”.

É, portanto, neste contexto e atenta a posição antagónica das partes, que é solicitada a nossa pronúncia.

Da competência consultiva do Conselho Distrital de Lisboa

Nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 50º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante Estatuto), aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, compete aos Conselhos Distritais pronunciarem-se sobre questões de carácter profissional, que se suscitem no âmbito da sua competência territorial.

A competência consultiva dos Conselhos Distritais está, assim, limitada pelo Estatuto às questões inerentemente estatutárias, isto é, as que decorrem dos princípios, regras, usos e praxes que regulam e orientam o exercício da profissão, maxime as que decorrem das normas do Estatuto, do regime jurídico das Sociedades de Advogados e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido pela lei aos órgãos da Ordem dos Advogados.

A matéria colocada à apreciação deste Conselho Distrital subsume-se, precisamente, a uma questão de carácter profissional nos termos descritos, pelo que haverá que proceder à emissão de Parecer quanto à questão que nos foi colocada.

Entendimento do Conselho Distrital de Lisboa

A prossecução da justiça e do direito, verdadeiros objectivos da profissão de Advogado, implicam que, necessariamente, qualquer pessoa que tenha de recorrer aos serviços de um Advogado, disponha de total confiança para que possa a este revelar os seus segredos, os seus interesses, sem qualquer receio de revelação dos mesmos (revelação essa que, a ser permitida, poderia colocar esses mesmos interesses em causa).

O Advogado tem uma dignidade e um estatuto próprios, não lhe sendo lícito revelar livremente factos, ainda que contidos em documentos, de que teve conhecimento no exercício da profissão, ainda que o (antigo) cliente lhe conceda autorização para tal, ou ainda que a sua revelação vise a defesa dos legítimos interesses do (antigo) cliente. 

O segredo profissional tem na sua génese a necessidade não só de garantir a relação de confiança entre o Advogado e o seu cliente – que deve ser sem limites - ,mas também o interesse público da função do Advogado enquanto agente activo da administração da justiça, entendida em sentido amplo e não restrita à actividade judicial.O regime do segredo profissional encontra-se, em larga medida, desenhado no artigo 87º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

O n.º 1 deste artigo contém aquilo que poderá caracterizar-se como a verdadeira regra geral do instituto jurídico-deontológico.

Aí se pode ler que “ O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços”.
Pode até dizer-se que, em certa medida, as demais regras previstas nas diversas alíneas do n.º 1, cujo elenco é meramente indicativo como decorre do elemento literal, são sobretudo explicitações ou pormenorizações daquela, que terão sido incluídas no Estatuto para salientar situações mais marcantes ou de maior dificuldade de interpretação.

O que seja segredo tem de ser aferido por três vias:

1.    pela forma como o conhecimento do facto chegou ao Advogado, quem o revelou e em que quadro fáctico;
2.    pelo teor do facto, que ajuda a perceber se tem ou não a natureza de segredo, pois nem tudo o que é revelado ao Advogado é, em si, um segredo;
3.    pelas próprias circunstâncias do conhecimento e da revelação.

A análise feita através deste triplo crivo, ajuda a discernir o que é e o que não é segredo.

Traçadas as linhas gerais que irão orientar o nosso pensamento, passemos de seguida à questão que ora nos ocupa, atendendo, estritamente, aos elementos que foram colocados à nossa disposição. 

O documento n.º 14, junto com a Petição Inicial, corresponde a uma carta datada de 21 de Fevereiro de 2014, dirigida pelo mandatário do Autor à ora Ré.

Lê-se na mencionada carta o seguinte:
“ O meu cliente (…) mandatou-me para o representar na resolução da questão relacionada com a regularização da dívida no montante de 67.000,00 € resultante do furto do veículo (…).

O Sr. Y vosso tomador do seguro enviou no dia 31 de Janeiro de 2014 os ditos documentos por carta registada e novamente no dia 14 de Fevereiro de 2014 junto da B (Coimbra) na pessoa da Srª. X vossa colaboradora que recepcionou novamente os documentos e a chave do veículo automóvel que já tinham sido, como supra referido, previamente enviados para a B (Lisboa) em 31 de Janeiro de 2014.

Este montante em dívida já deveria ter sido entregue ao Sr. Y. A justificação da existência de algum atraso no processo de averiguação é totalmente alheia à vontade do meu constituinte é da vossa exclusiva responsabilidade pelo que solicito que me informem por escrito o ponto da situação e quando o meu constituinte vai receber o montante em dívida de 67.000,00 €, sabendo V.Exas. que já se encontram em mora. (…) ”.

Vejamos então.

Não consta nem resulta do teor do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor, uma proibição genérica de revelação de correspondência trocada entre Advogados ou subscrita por Advogado.

Existe, sim, essa proibição quando, do seu teor decorram factos sujeitos a sigilo profissional. Isso mesmo prescreve o n.º 3 do artigo 87º do Estatuto – “o segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo”.

E isto, precisamente, porque o sigilo profissional se reporta a factos.

Portanto, não é a mera circunstância de determinada correspondência se mostrar subscrita ou dirigida a Advogado que só por si, e ipso facto, submete a referida correspondência ao regime do sigilo profissional.

A correspondência subscrita ou dirigida a Advogado só ficará sujeita ao regime do sigilo profissional se contiver factos, em si mesmos, sigilosos.

A norma estatutária aqui em causa, dentro dos seus objectivos, não abrange as comunicações enviadas entre as partes, por intermédio dos seus mandatários, que tenham um carácter meramente interpelatório ou que se traduzam numa mera resposta a uma interpelação, isto é, em ambos os casos, destinadas, apenas e somente, a fazer marcar a posição, no plano do direito, do seu remetente face ao destinatário.

O mesmo se diga, mutatis mutandi, quantas às comunicações que, embora juridicamente não revistam a natureza de interpelações admonitórias, se destinem exclusivamente a marcar a posição, a manifestação de vontade e os fundamentos, no plano do direito, do seu remetente face ao destinatário.

Dito por outras palavras, diremos que a não sujeição ao dever de sigilo pressupõe que, inequivocamente, as comunicações em causa não tenham carácter negocial, nem encerrem qualquer proposta negocial. Pois que, se assim for, já as mesmas estarão abrangidas pela esfera de protecção do sigilo profissional por força da norma legal contida no artigo 87º do Estatuto.

Aliás, o artigo 87º do Estatuto, parece-nos bem claro quanto a este aspecto. O que está aí em causa é a sujeição ao dever de sigilo profissional dos factos que um Advogado tenha tido conhecimento:

- Por lhe terem sido transmitidos pela contraparte ou respectivo representante durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio – alínea e) do artigo 87º. E isto independentemente de as negociações terem malogrado ou não, desde que subjacente esteja a tentativa de se chegar a um acordo para pôr termo a um diferendo ou litígio (judicial ou não).

- No âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo – alínea f) do artigo 87º.

E sublinhe-se que em tal situação não se exige que as negociações malogradas tenham por objecto um litígio processual pendente, abrangendo, assim, quaisquer negociações, mesmo quando em execução de um contrato.

Aliás, o pronome indefinido “quaisquer” utilizado pelo legislador não deixa grandes margens para dúvidas quanto a tal interpretação.

E mais se deverá acrescentar que estarão sujeitos a sigilo, no decurso de negociações, todos os factos, seja qual for a fonte do respectivo conhecimento – cliente, co-interessado ou contraparte –, que o próprio acordo não explicitou.

No caso concreto, através da carta datada de 21 de Fevereiro de 2014, que dirigiu directamente à ora Ré, pretendeu apenas o mandatário do Autor averiguar junto desta, qual o ponto da situação em relação à regularização do montante de € 67.000,00, que, em seu entender lhe é devido por força do seguro contratado, montante este que, de resto, corresponde ao agora peticionado nos autos a título de danos materiais, e a data previsível do pagamento desse mesmo valor.

Assim sendo, conclui-se que a carta em causa se destinou apenas a marcar a posição, a manifestação de vontade e os fundamentos, no plano do direito, do seu remetente face ao destinatário. Incontestavelmente, a carta objecto do pedido não tem carácter negocial, nem encerra qualquer proposta negocial.

Não existindo, assim, qualquer exigência de confidencialidade e de secretismo que o instituto jurídico-deontológico do sigilo profissional pressupõe, conclui-se que o mandatário do Autor não carecia da autorização prévia prevista no n.º 4 do artigo 87º do Estatuto para juntar ao processo judicial em curso a carta objecto do presente pedido, nem, consequentemente, carecia de qualquer autorização prévia para poder articular em juízo os factos nela contidos.

Contudo, e sem prejuízo deste nosso entendimento, o certo é que, nos termos da lei (cf. artigo 202º da Constituição da República Portuguesa e artigo 2º n.º 2 da Lei da Organização do Sistema Judiciário) é aos Tribunais que pertence a função jurisdicional e, portanto, a capacidade de julgar em definitivo se um meio de prova é ou não válido.

É este, salvo melhor opinião, o nosso entendimento sobre a questão que nos foi colocada.

Lisboa, 11 de Junho de 2015.

A Assessora Jurídica do CDL

Sandra Barroso

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados.

Notifique-se.

Lisboa, 11 de Junho de 2015.

O Presidente do Conselho Distrital de Lisboa
António Jaime Martins   

Sandra Barroso

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