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Consulta 3/2017

 

CONSULTA N.º 3/2017

 

Questão

 

Através de comunicação rececionada nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados no dia (…), a Exma. Senhora Juiz de Direito do Tribunal (…), veio solicitar a pronúncia deste Conselho quanto à (i) legitimidade da escusa para depor apresentada pelos Senhores Advogados Dr. (…) e Dra. (…) no âmbito do processo n.º (…), nos termos e para os efeitos do disposto nos números 1, 2 e 4 do artigo 135º do Código de Processo Penal (doravante apenas CPP).

 

Entendimento do Conselho Regional de Lisboa

 

A existência da obrigação de segredo profissional impede o Advogado de revelar factos sigilosos e, ou, os documentos onde esses mesmos factos possam estar contidos, exceto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Regional respetivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro (de ora em diante designado Estatuto) e pelo artigo 4º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional (Regulamento n.º 94/2006, publicado no Diário da República, II Série, n.º 113, de 12 de junho de 2006).

 

Ainda que dispensado nos termos referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional. O Advogado é, pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade ativa para solicitar, se assim o entender, dispensa do dever segredo.

 

A lei processual penal[1], porém, consagra um regime de exceção, previsto no artigo 135.º.

 

De harmonia com este regime, que será o relevante no caso ora em apreço, a regra continua a ser a de o Advogado poder (e, à luz do Estatuto, “dever”) escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo dever de segredo profissional. Deduzida a escusa perante o Juiz ou perante a autoridade judiciária que presidir ao ato, poderão suscitar-se dúvidas, que deverão ser fundadas, acerca da legitimidade da invocação do sigilo profissional e da escusa em depor que o mesmo fundamenta – cfr. n.º 2 do artigo 135º do CPP.

 

Quando tal acontecer, o Juiz decide sobre a legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cfr. n.º 4 do artigo 135º do CPP[2]. Nesta sede, o que terá de se aferir é se o Advogado está ou não a invocar corretamente o dever de segredo profissional, o que implica que os factos sobre os quais se pretende que venha a depor deverão constituir matéria abrangida no âmbito do sigilo.

 

Cumprirá, pois, indagar se os factos aos quais os depoimentos dos Senhores Advogados Dr. (…) e Dra. (…) são pretendidos se deverão considerar abrangidos pela esfera de proteção do sigilo profissional.

 

Vejamos então.

 

Nunca é de mais referir o carácter fundamental, para não dizer, verdadeiramente basilar, que a obrigação de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia. Mais do que uma condição para o seu desempenho é, sobretudo, um traço essencial da sua própria existência.

 

Sem o segredo profissional erigido em regra de ouro não existe, nem pode existir, Advocacia livre e independente, ficando abalado o direito de defesa dos cidadãos que recorrem ao Advogado para proteção dos seus direitos, liberdades e garantias.

 

No fim da linha, é o próprio Estado de Direito Democrático que é atingido no seu cerne, porquanto o sigilo profissional entre o Advogado e o seu Constituinte é estruturante e conditio sine qua non do direito de defesa dos cidadãos. Assim o tem entendido a lei e a própria jurisprudência da Ordem dos Advogados.

 

Com efeito, o Advogado é acometido, por lei ordinária e pela Constituição, de uma verdadeira «missão de interesse público», competindo-lhe, designadamente:

- defender o Estado de direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos;

- pugnar pela boa aplicação das leis;

- colaborar na administração da justiça e pugnar pelo seu rápido funcionamento;

- assegurar o acesso ao direito nos termos da Constituição, como defensores e patronos;

- opinar sobre os projetos de diplomas legislativos que interessem ao exercício da advocacia e o patrocínio judiciário em geral;

- propor alterações legislativas relevantes para o sistema de justiça.

(v. art.ºs 3.º nas suas diversas alíneas e o 90.º, n.º 1 do Estatuto).

 

São, assim, os Advogados garantes de importantes funções do Estado com consagração constitucional como é o “acesso ao direito e aos tribunais” e o “patrocínio judiciário” previstos no art.º 20.º, n.ºs 1 e 2 da Lei Fundamental e que constituem “elemento essencial da administração da justiça” como resulta do art.º 208.º da mesma Lei, sendo-lhes com esse propósito conferidas garantias e imunidades no exercício do mandato forense (art.º 150.º, n.º 2 do Código de Processo Civil), num claro e inequívoco reconhecimento da relevante função social de interesse público da profissão.

 

Atente-se, aliás, na redação do art.º 13.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/1013, de 26 de Agosto –, com a epígrafe “Imunidade do mandato conferido a advogados”:

“Artigo 13.º

Imunidade do mandato conferido a advogados

1 — A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício dos atos próprios de forma isenta, independente e responsável, regulando-os como elemento indispensável à administração da justiça.

2 — Para garantir o exercício livre e independente de mandato que lhes seja confiado, a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz, designadamente:

  1. a) O direito à proteção do segredo profissional;
  2. b) O direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de atos conformes ao estatuto da profissão;
  3. c) O direito à especial proteção das comunicações com o cliente e à preservação do sigilo da documentação relativa ao exercício da defesa;
  4. d) O direito a regimes específicos de imposição de selos, arrolamentos e buscas em escritórios de advogados, bem como de apreensão de documentos”.

 

Se ao Advogado não fosse reconhecido o direito de guardar para si, e só para si, o conhecimento de tudo quanto o seu Constituinte, diretamente ou por via de terceiros, lhe confiou, ou não fosse obrigado a reservar a informação que obteve no exercício do mandato, então não haveria Advocacia livre e independente, transformando-se os Advogados em testemunhas de defesa e desse modo se desvirtuando a sua função na administração da Justiça e no acesso ao direito.

Existem, em suma, segundo entendimento há muito perfilhado por este Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados[3] três grandes ordens de razões que estão na origem da consagração estatutária do dever (que é ao mesmo tempo direito) do advogado guardar segredo profissional sobre factos e documentos dos quais tome conhecimento no exercício da profissão:

  1. A indispensabilidade de tutelar e garantir a relação de confiança entre o advogado e o cliente.
  2. O interesse público da função do advogado enquanto agente ativo da administração da justiça.
  3. A garantia do papel do advogado na composição extrajudicial de conflitos, contribuindo para a paz social.

 

Sob a epígrafe “Segredo Profissional”, dispõe o artigo 92º do Estatuto, o seguinte:

“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

  1. a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
  2. b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
  3. c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
  4. d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;
  5. e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
  6. f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.

4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o Bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.

5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.

7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.

8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever”.

 

Vejamos então o caso concreto.

 

Dos elementos colocados à nossa disposição, decorre, com interesse para a pronúncia a emitir o seguinte.

 

O Ministério Público pretende ouvir os Senhores Advogados Dr. (…) e Dra. (…) aos pontos (…) a (…) da pronúncia.

 

A factualidade vertida nos mencionados pontos da pronúncia está relacionada com o pagamento de dívidas fiscais e à segurança social das sociedades comerciais com as firmas (…) e (…), de um valor a que foi condenada a (…) e ainda de dívidas do próprio arguido (…) nas quais intervieram os Senhores Advogados Dr. (…) e Dra. (…).

 

Pode ler-se no ponto (…) da pronúncia o seguinte:

“No período compreendido entre 07.09.2012 e 17.09.2013 foram os advogados (…) e (…), os quais tinham uma relação de amizade com (…) e (…), que foram contratados por este último para efectuar os referidos pagamentos”.

 

Conforme decorre da ata de audiência de julgamento de (…), os Senhores Advogados Dr. (…) e (…) “confirmaram terem, nesse período, uma procuração outorgada por (…) no âmbito de relações empresariais”.

 

O ponto (…) da pronúncia contém um quadro discriminativo das “operações financeiras destinadas a integrar os proventos ilícitos obtidos por (…) na economia legítima com vista a ser utilizado por este sem que a sua origem fosse detectável”.

 

No mencionado quadro e sobre o item “identificação origem” por variadíssimas vezes é feita referência a (…) e (…).

 

No ponto (…) da pronúncia, conclui-se do seguinte modo:

“No período de tempo em causa (isto é, no período compreendido entre março de 2012 e julho de 2014), foram pagas dívidas da responsabilidade de (…) com recurso a tais proventos por (…) e (…) no valor de € 51.701,61”.

 

Tudo ponderado, conclui-se, sem margem para dúvidas, que os Senhores Advogados tiveram conhecimento dos factos aos quais foram chamados a depor no exercício da profissão e por causa desse mesmo exercício. Pelo que, existindo uma relação de causalidade necessária entre o exercício dessas funções e o conhecimento desses mesmos factos, dúvidas não restam de que os Senhores Advogados estão, quanto a eles, obrigados a sigilo, já que a obrigação de segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao Advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, nos termos conjugados do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 92.º do Estatuto.

 

Assim sendo, a obrigação de sigilo profissional deve ser mantida enquanto, pelos meios legalmente previstos, não cessar.

 

Para o efeito, estabelece a lei apenas dois mecanismos que se diferenciam desde logo a propósito do sujeito que tem legitimidade para impulsionar o levantamento do segredo profissional:

  • Dispensa de sigilo profissional, a qual é solicitada pelo Advogado detentor dessa obrigação ao Presidente do Conselho Regional competente, sendo concedida, caso se verifiquem preenchidos os requisitos exigidos pelo n.º 4 do artigo 92.º do Estatuto;
  • Incidente processual de quebra de sigilo profissional.

 

EM SUMA:  

 

Tudo ponderado, e salvo melhor opinião, entendemos que a escusa para depor apresentada pelos Senhores Advogados Dr. (…) e Dra. (…) é legítima, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 135.º n.ºs 1, 2 e 4 do Código de Processo Penal.

 

Lisboa, 24 de janeiro de 2017.

 

A Assessora Jurídica do CRL
Sandra Barroso


Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 24 de janeiro de 2017.

 

O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins

 

 

[1] Também aplicável ao processo civil – vide Artigos 417.º n.ºs 3 al. c) e 4 e 497.º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil.

[2] No caso vertente, a Exma. Senhora Juiz titular do processo não teve dúvidas quanto à legitimidade da escusa, tendo, por conseguinte, requerido ao Tribunal da Relação de (…) que ordenasse a prestação de depoimento dos Senhores Dr. (…) e Dra. (…) com quebra do segredo profissional. Não obstante, o Tribunal da Relação de (…) entendeu que o Tribunal de 1ª instância deveria ter ouvido a Ordem dos Advogados.

 

[3] Parecer do então designado Conselho Distrital de Lisboa n.º 02/01, aprovado em sessão plenária no dia 13.03.2003, no qual foi relator o Dr José Ferreira de Almeida.  

Sandra Barroso

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