Pareceres do CRLisboa

Consulta 9/2017

CONSULTA 9/2017

 

I


DO OBJETO DA CONSULTA


Veio o Meritíssimo Juiz de Direito do Tribunal (…), solicitar parecer ao Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados (doravante abreviadamente designado por “CRL”), no âmbito de requerimento que lhe foi dirigido pela Exma. Senhora Advogada Dra. (…), Recorrente no âmbito de um recurso de impugnação de uma contraordenação laboral que corre termos naquele juízo sob o n.º (…).

No essencial, as questões relativamente às quais a Exma. Senhora Advogada solicita parecer são:

1ª – “Uma visita inspetiva pelas senhoras inspetoras da ACT, em escritório de advogados, a fim de apurar das relações jus-laborais entre Advogada e trabalhadores, considerando e questionando a ora Recorrente se tal diligência deveria ter cumprido o art.º 278.º, n.º 1, do Código do Processo Penal (leia-se artigo 268º, n.º 1, do Código de Processo Penal) e se, caso não exista despacho judicial e acompanhamento da visita inspetiva por juiz de direito e por conselheiro de deontologia do conselho regional da ordem dos advogados?”;

2ª – “E se a resposta for positiva, tudo o que vier a ser apurado na visita inspetiva realizada, apenas por inspetoras da ACT, se encontra inquinado pelo vício de proibição de prova, nulidade/irregularidade nos termos do Código de Processo Penal?”;

3ª - “A realização de uma inspeção laboral, apenas por inspetoras da ACT, aos trabalhadores a exercerem funções num escritório de advogados, se revela conforme a uma interpretação constitucional dos direitos de defesa previstos no art.º 32.º da Constituição da República Portuguesa?”.

 

Desde já se afasta da competência do CRL a resposta à questão acima identificada como “3ª”, uma vez que não se trata, especificamente, de uma “questão de caráter profissional”, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 54.º, n.º 1, alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro (doravante apenas EOA), normativo legal que fixa a competência material deste Conselho.

A questão profissional que se coloca e à qual teremos de responder considerando aquelas que são as atribuições legais do CRL é a de saber se a Autoridade para as Condições do Trabalho (doravante abreviadamente designada por ACT) pode desenvolver a sua atividade inspetiva em escritório ou sociedade de Advogados sem se submeter às regras legais específicas que enquadram o direito de acesso e de obtenção de meios de prova nestes espaços profissionais, mormente, as decorrentes do EOA.


II


DO ESCRITÓRIO DO ADVOGADO


Entendemos crucial começar por caraterizar o escritório do Advogado, por forma a percebermos se estamos perante um espaço público em sentido estrito, ou se, ao invés, e atenta a natureza da Advocacia e atentos os particulares interesses que lhe estão subjacentes, o mesmo deve ser caraterizado de outro modo.

A este respeito, repristinamos aqui o que foi dito no Parecer n.º 9/PP/08-G, do Conselho Geral das Ordem dos Advogados, e em que foi Relator o Exmo. Senhor Advogado Dr. Nuno Lucas, que tinha por objeto saber se o Advogado está legalmente vinculado a disponibilizar no seu escritório o livro de reclamações[1].

No mencionado Parecer, e para o que aqui releva, pode ler-se o seguinte:

“(…) Apesar de não descrever, em concreto, quais as características obrigatórias de um escritório de advogado, o EOA estabelece, na alínea h), do seu art. 86.º, que constitui um dever do advogado para com a Ordem “Manter um domicílio profissional dotado de uma estrutura que assegure o cumprimento dos seus deveres deontológicos, nos termos de regulamento a aprovar pelo Conselho Geral”.

Compete, então, ao Conselho Geral, definir quais os meios essenciais ao exercício da actividade que devem estar reunidos no “centro da vida profissional” do advogado, sendo necessário aguardar pela aprovação do respectivo regulamento para que os possamos conhecer detalhadamente.

Ainda assim a disposição citada fornece-nos, por si só, um elemento de extrema utilidade na caracterização que nos ocupa.  Dela resulta que a aptidão essencial de um escritório de advogado é permitir aos profissionais da advocacia cumprirem os deveres deontológicos a que estão adstritos.

(…) Este aspecto original, próprio de uma profissão que exerce “uma actividade privada, mas de interesse público” e cuja dimensão de elemento indispensável à Administração da Justiça está consagrada na Lei e decorre da própria Constituição, constitui, quanto a nós, um elemento diferenciador relativamente aos “estabelecimentos” da maioria das actividades económicas privadas”.

(…) Ora, a advocacia não funciona segundo uma lógica de convite ao consumo de “bens jurídicos”, mediante condições preestabelecidas e iguais para todos. Isto é, o público em geral não tem um direito genérico de admissão de qualquer escritório de advogado para solicitar a prestação de serviços jurídicos.

Esta diferenciação relativamente ao comércio em geral e às demais actividades económicas resulta da circunstância dos serviços do advogado não estarem livremente disponíveis no mercado. A sua “aquisição” não depende apenas da vontade do adquirente e do pagamento de um preço.

(…) Para o advogado, a decisão de aceitar um patrocínio ou de prestar um qualquer serviço profissional implica necessariamente uma avaliação das características do caso face ao complexo de deveres a que está sujeito. Está muito longe de corresponder a uma mera transacção comercial. Donde se justifica não estar o advogado obrigado a disponibilizar os seus serviços ao público em geral.

 

A caracterização do escritório de advogado como local de acesso reservado é, aliás pacífica, na jurisprudência da Ordem dos Advogados:

“(…) De facto embora o acesso ao escritório de um advogado não seja equivalente ao de uma habitação, completamente privada e dependente da vontade casuística do seu possuidor, não é também público, no sentido de que todos podem entrar, aceder sem reservas, apenas com a restrição dos usos e costumes gerais. Não, o escritório de um advogado é semi-público, ou semi-privado, tem o seu acesso e servidão limitada pela vontade arbitrária do dono e pelas regras inerentes à profissão que exerce (…)” Parecer do CDP, relatado pelo Dr. Pedro Almeida e Sousa (…).

“De facto, ao invés do estabelecimento comercial afecto ao exercício do comércio, local aberto ao público para a venda, mais ou menos generalizada, de bens ou serviços, o escritório do Advogado não tem carácter público, em que todos podem entrar ou aceder sem reservas.” Parecer do CDC, relatado pelo Dr. Leite da Silva (…)”.

 


III


DOS ARTIGOS 75.º e 76. DO ESTATUTO

Do exposto, se infere que, incontornavelmente, o escritório ou sociedade de Advogados não é um local aberto ao público e de livre acesso por esse mesmo público.

Razões atinentes ao interesse público da Advocacia e às próprias garantias ou prerrogativas que ao Advogado são reconhecidas no exercício da sua profissão assim o exigem e justificam.

A Advocacia é uma profissão que beneficia de garantia constitucional, constante do artigo 208.º da Constituição da República Portuguesa (CRP): “a lei assegura ao advogado as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça”.

 

Entre estas prerrogativas encontram-se, e para o que releva para a presente pronúncia, o direito à proteção do segredo profissional[2]; o direito a regimes específicos de imposição de selos, arrolamentos, buscas e diligências equivalentes[3],  bem como os relativos à apreensão de documentos[4].

Decorre do artigo 75.º, n.º 1 do EOA em vigor que “A imposição de selos, o arrolamento, as buscas e diligências equivalentes (sublinhado nosso) no escritório ou sociedade de advogados ou em qualquer outro local onde faça arquivo, assim como a interceção e a gravação de conversações ou comunicações, através de telefone ou endereço eletrónico, utilizadas pelo advogado no exercício da profissão, constantes do registo da Ordem dos Advogados, só podem se decretados e presididos pelo juiz competente”.

Ainda nos termos do n.º 2 do mencionado normativo legal, “Com a necessária antecedência, o juiz deve convocar para assistir à imposição de selos, ao arrolamento, às bucas e diligências equivalentes, o advogado a ela sujeito, bem como o presidente do conselho regional, o presidente da delegação ou delegado da Ordem dos Advogados, conforme os casos, os quais podem delegar em outro membro do conselho regional ou da delegação”.

No que à apreensão de documentos especificamente diz respeito, estipula o artigo 76.º do EOA que:

“1 – Não pode ser apreendida a correspondência, seja qual for o suporte utilizado, que respeite ao exercício da profissão.

2 – A proibição estende-se à correspondência trocada entre o advogado e aquele que lhe tenha cometido ou pretendido cometer mandato e lhe haja solicitado parecer, embora ainda não dado ou já recusado.

3- Compreendem-se na correspondência as instruções e informações escritas sobre o assunto da nomeação ou mandato ou do parecer solicitado.

4 – Excetua-se o caso de a correspondência respeitar a facto criminoso relativamente ao qual o advogado tenha sido constituído arguido”.

Os normativos legais transcritos enquadram-se, no plano sistemático, dentro do conjunto de regras que definem os princípios gerais que regulam o exercício da Advocacia.

Sem prejuízo, e tendo em conta a natureza dos valores a proteger, as prerrogativas consagradas estão não apenas relacionadas com a dignidade da profissão, mas também intrinsecamente ligadas à proteção do sigilo profissional do Advogado e, em particular, de toda a informação sigilosa que possa encontrar-se dentro do seu escritório.

Quanto à posição do representante da Ordem neste tipo de “diligência”, diremos que o mesmo deve praticar todos os atos que repute convenientes para assegurar a regularidade e a serenidade da diligência; garantir o estrito cumprimento da legalidade, designadamente com o escrupuloso respeito pela Constituição da República, da lei processual penal e do Estatuto da Ordem dos Advogados; garantir a defesa intransigente do segredo profissional, mas também, e se necessário, esclarecer o Advogado visado quanto aos seus direitos e, em especial, quanto à possibilidade de reclamação nos termos do artigo 77.º do EOA.

O representante da Ordem deve ainda diligenciar junto do Juiz no sentido de lhe ser prestada informação sobre as finalidades da diligência que lhe permitam aferir, durante o ato, sobre o respeito das normas que visam proteger o segredo profissional e, se possível, evitar ao máximo a intromissão em matérias desnecessárias.

Grosso modo, pode dizer-se que a posição do representante da Ordem é de verdadeiro garante das prerrogativas que nos termos da CRP e da lei são reconhecidas ao Advogado.

Neste contexto, uma inspeção a um escritório de Advogado por inspetor do trabalho no quadro das atribuições da ACT deve classificar-se como uma “diligência equivalente” a uma imposição de selos, arrolamentos, buscas ou apreensões, para efeitos de aplicação do artigo 75.º do EOA?

 

IV


DOS PODERES INERENTES À ATIVIDADE INSPETIVA DA ACT


O procedimento contraordenacional laboral inicia-se com uma fase administrativa, com investigação e instrução, no decurso da qual devem realizar-se todas as diligências necessárias para o apuramento da verdade material e sedimentação dos factos.

Para o que releva, os inspetores do trabalho, no exercício da sua ação e no âmbito da sua missão de investigação e controlo, estão constituídos em agentes de autoridade pública, podendo, no exercício da sua atividade, executar um conjunto de poderes, tudo conforme decorre diretamente do Estatuto da Inspeção do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 102/2000, de 2 de junho.

Os poderes conferidos ao inspetor do trabalho estão previstos no artigo 11º do Decreto-Lei n.º 102/2000, os quais por facilidade de raciocínio passamos a transcrever:

 “1 - (…)

  1. Visitar e inspeccionar qualquer local de trabalho, a qualquer hora do dia ou da noite e sem necessidade de aviso prévio, sem prejuízo do disposto no direito processual penal sobre busca domiciliária;
  2. Obter a colaboração e fazer-se acompanhar de peritos, técnicos de serviços públicos e representantes de associações sindicais e patronais, habilitados com credencial emitida pelos serviços de inspecção, da qual conste a entidade a visitar e os serviços a efectuar;
  3. Interrogar o empregador, trabalhadores e qualquer outra pessoa que se encontre nos locais de trabalho sobre quaisquer questões relativas à aplicação de disposições legais, regulamentares ou convencionais, a sós ou perante testemunhas, com a faculdade de reduzir a escrito as declarações, sem prejuízo do direito de ser assistido por advogado, bem como do disposto no direito processual penal quanto aos arguidos;
  4. Solicitar a identificação das pessoas referidas na alínea anterior, a efectuar nos termos previstos na lei geral;
  5. Requisitar com efeitos imediatos ou para apresentação nos serviços da Inspecção-Geral do Trabalho, examinar e copiar documentos e outros registos que interessem para o esclarecimento das relações de trabalho e das condições de trabalho (…);
  6. Efectuar registos fotográficos, imagens vídeos e medições que sejam relevantes para o desenvolvimento da acção inspectiva;
  7. Solicitar informação sobre a composição de produtos, materiais e substâncias utilizados nos locais de trabalho, bem como recolher e levar para análise amostras dos mesmos, quando sejam relevantes para o desenvolvimento da acção inspectiva, dando do facto conhecimento ao empregador ou ao seu representante;
  8. Determinar a demonstração de processos de trabalho adoptados nos locais de trabalho;
  9. Adoptar, em qualquer momento da acção inspectiva, as medidas cautelares necessárias e adequadas para impedir a destruição, o desaparecimento ou a alteração de documentos e outros registos e de situações relacionadas com o referido nas alíneas e) a h), desde que não causem prejuízos desproporcionados;
  10. Notificar o empregador para adoptar medidas de prevenção no domínio da avaliação dos riscos profissionais, designadamente promover, através de organismos especializados, medições, testes ou peritagens incidentes sobre os componentes materiais de trabalho;
  11. Notificar testemunhas, peritos ou outras pessoas que possam dispor de informações úteis sobre a matéria do processo para comparência nos serviços da Inspecção-Geral do Trabalho ou noutro local;
  12. Notificar o empregador para que proceda ao apuramento das quantias em dívida aos trabalhadores ou à segurança social;
  13. Solicitar a colaboração de autoridades policiais, nomeadamente no caso de impedimento ou obstrução ao exercício da acção inspectiva, ou se for previsível a sua verificação.

2 – No exercício das suas funções, o inspector do trabalho pode efectuar a detenção em flagrante delito, nos termos da lei”.

 

Analisados os poderes inspetivos que acabamos de transcrever, afigura-se-nos claro que o conjunto de poderes e prerrogativas funcionais de que beneficia a atividade de inspeção laboral é suscetível de pôr em causa as prerrogativas e garantias associadas ao exercício da advocacia, profissão, como já vimos, com assento constitucional.

Desde logo, e pelo simples facto de, no exercício da sua atividade, o inspetor do trabalho poder livremente aceder às instalações onde funciona o escritório de Advogado. O que, não se compagina, de todo, com o que atrás ficou dito quanto à caraterização do escritório do Advogado.

Livre acesso esse que, também, colide com o dever de segredo profissional a que o Advogado está vinculado no exercício da sua atividade profissional.

E, neste ponto, não podemos olvidar que a simples presença do cliente ou potencial cliente no escritório, só por si, já impõe (ou pode impor) ao Advogado total reserva.

Dever de reserva este que também colide com o direito reconhecido ao inspetor do trabalho de solicitar a identificação das pessoas presentes no local de trabalho objeto da ação inspetiva.

Também quanto ao direito de apreensão de documentos e objetos de prova há o risco, ainda que meramente potencial e ainda assim merecedor de tutela, de devassa do direito/dever/imunidade de segredo profissional do Advogado. 

De resto, igual devassa existe quanto ao interrogatório de que o trabalhador administrativo que apoia a atividade profissional do Advogado pode ser alvo, desde logo, se atentarmos nos normativos legais contidos no artigo 92.º, n.ºs 7 e 8 do EOA.

Os normativos legais em causa estendem o dever de segredo profissional do Advogado a todas as pessoas que com ele colaboram no exercício da sua atividade profissional, recaindo, inclusive, sobre o Advogado o dever de exigir a estas pessoas o cumprimento do dever de sigilo mediante a outorga de declaração escrita.

Também o direito de efetuar registos fotográficos e imagens de vídeo contende com a imunidade de segredo profissional reconhecida ao Advogado no exercício da sua atividade profissional e com a própria natureza do escritório de um Advogado.

Portanto, uma simples análise, perfunctória e sem qualquer preocupação de exaustividade, é bastante para podermos concluir que os poderes associados à atividade inspetiva da ACT comportam um dinâmica e âmbito equivalentes, senão mesmo iguais, às diligências expressamente constantes da previsão do artigo 75.º do EOA e, portanto, suscetíveis de pôr em causa as prerrogativas e as garantias associadas ao exercício da Advocacia.

E, assim sendo, o local onde funciona um escritório ou sociedade de Advogados não pode ser alvo de uma atividade inspetiva direta da ACT, nos mesmos termos em que esta o pode fazer noutras instalações.

O princípio da legalidade plasmado no artigo 266.º, n.º 2 da CRP impõe que os poderes associados à atividade inspetiva da ACT sejam exercidos no estrito cumprimento da legislação especial que regula o exercício da Advocacia e de acordo com o formalismo aí exigido.  

 

Em conclusão:

Uma ação inspetiva laboral a um escritório ou sociedade de Advogados deve classificar-se como uma “diligência equivalente” a uma imposição de selos, arrolamentos, buscas ou apreensões, para efeitos de aplicação do disposto no artigo 75.º do EOA.

 

Lisboa, 2 de março de 2018.

 

A Assessora Jurídica do CRL
Sandra Barroso

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 2 de março de 2018.

 

O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins

 

 

[1] A final, concluiu-se que, atenta a natureza do escritório de Advogados, não existe obrigação legal de disponibilizar o livro de reclamações, estando, assim, o escritório de Advogados excluído do âmbito de aplicação do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro.

 

[2] Artigos 92.º do EOA e 13.º, n.º 2, alínea a) da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ).

[3] Artigos 75.º do EOA e 13.º, n.º 2, alínea d) da LOSJ.

[4] Artigos 76.º do EOA e 13.º, n.º 2, alínea d) da LOSJ.

 

Sandra Barroso

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