Pareceres do CRLisboa

Consulta 4/2018

 

CONSULTA 4/2018

 

Questão

 

Mediante comunicação rececionada nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados em (…), a Exma. Senhora Advogada Dra. (…), titular da cédula profissional n.º (…), veio solicitar a emissão de parecer, com o enquadramento factual que abaixo será circunstanciado, cujo objeto se reconduz à apreciação da existência de uma eventual violação do sigilo profissional por outra Advogada, ao abrigo do disposto no artigo 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante apenas EOA).

 

Os factos descritos pela Senhora Advogada Consulente (doravante apenas Consulente), são, pois, os seguintes:

 

  1. No âmbito de um processo penal em curso (que a Consulente não identifica), a arguida e a sua então Advogada terão sido ambas notificadas para apresentar, caso assim fosse entendido, requerimento para pagamento em prestações da multa a que a arguida foi condenada a pagar.
  2. Quer a arguida, quer a sua então Advogada não se terão manifestado quanto ao despacho em causa.
  3. Neste contexto, e segundo a Consulente, o Tribunal terá contactado telefonicamente a Advogada em referência, tendo esta informado que a arguida não a contactou na sequência do despacho que lhes fora notificado.
  4. Segundo a opinião da Consulente, o facto de a então Advogada da arguida ter revelado que esta não a contactou para cumprimento do despacho proferido pelo Tribunal, foi decisivo para que este determinasse o cumprimento da pena de prisão em substituição da pena de multa.
  5. Pretende, assim, a Consulente ver esclarecida a questão de saber se a informação veiculada pela então Advogada da arguida junto do Tribunal consubstancia, ou não, violação do dever de guardar segredo profissional.

 

Competência material do Conselho Regional de Lisboa

 

A competência material do Conselho Regional de Lisboa fixada no artigo 54.º, n.º 1, alínea f) do EOA, cinge-se, estritamente, à pronúncia abstrata sobre as questões de ética ou deontologia profissional, não envolvendo ou consubstanciando qualquer juízo valorativo sobre a situação concreta que nos descreveu.

 

Portanto, a nossa pronúncia contenderá com a questão de saber se aquele facto, revelado no contexto em que o foi, e de acordo com a fundamentação que subjaz ao presente pedido, está, ou não, abrangido pela esfera de proteção do segredo profissional.

 

Opinião 

 

A situação exposta pela Consulente é um exemplo da riqueza multifacetada do instituto do segredo profissional e, ao mesmo tempo, um paradigma, como veremos, da necessidade absoluta de uma visão ética – e não apenas instrumental – do segredo profissional.

 

Entendemos que a dúvida da Consulente é legítima por duas razões, ambas relacionadas com a literalidade do artigo 92.º do EOA.

 

A primeira, porque da interpretação literal do corpo do art.º 92.º, n.º 1 do EOA se poderia concluir, em absurdo, que todo e qualquer facto transmitido ao Advogado no exercício da sua profissão ou por ele conhecido por força desse mesmo exercício estaria sempre sujeito ao regime do segredo profissional.

 

A segunda, porque ainda pela interpretação literal das diversas alíneas do n.º 1 se poderia concluir que a caraterização do facto sigiloso adviria do meio pelo qual esse facto teria chegado ao conhecimento do Advogado, não relevando para tal o conteúdo e a natureza sigilosa do próprio facto. O que, em tese, poderia levar-nos igualmente a conclusões absurdas.

 

Mas compreende-se também porque é que o artigo 92.º do EOA – sabendo-se à partida que a sua letra poderá conduzir a conclusões absurdas – se encontra redigido desta forma.

 

É sabido que o segredo profissional é a trave mestra da Advocacia. E a forma como se encontra redigido o normativo legal contido no art.º 92.º do EOA permite-nos, não nos atendo apenas e tão-só à sua letra, interpretar e reconstruir aquele que foi o espírito do legislador quanto aos factos que pretende ver protegidos pelo segredo profissional.  

 

O advérbio “designadamente” contido no art.º 92.º, n.º 1, permite-nos inelutavelmente chegar a essa conclusão, pois que indica que os factos sujeitos a segredo profissional não se esgotam naqueles que se encontram elencados nas suas diversas alíneas.

 

Portanto, a fronteira entre aquilo que está, ou não, abrangido pela esfera de proteção do dever de sigilo apenas se fará (e diga-se, dever-se-á fazer) por análise casuística. Apenas pela análise do caso concreto se poderá aferir da sujeição de um facto a sigilo profissional.

 

E para nos coadjuvar nesta análise, teremos de concatenar, como sempre temos defendido, (i) a forma como o conhecimento do facto chegou ao Advogado, quem o revelou e em que quadro fáctico; (ii) o teor do próprio facto, que ajuda a perceber se tem ou não a natureza de segredo, pois nem tudo o que é revelado ao Advogado é, em si, um segredo; e (iii) as próprias circunstâncias do conhecimento e da revelação.

 

A análise feita através deste triplo crivo, ajuda a discernir o que é e o que não é segredo.

 

Posto isto, vejamos então o caso submetido à nossa apreciação.

 

Começaremos por enfatizar que a expressão “por revelação do cliente” contida no art.º 92.º, n.º 1, alínea a) do EOA, não deve ser considerada na sua literalidade.

 

Subsumem-se à alínea em causa não só os factos que o cliente diretamente dá a saber ao seu Advogado, como também todos os factos de que o Advogado toma conhecimento de forma indireta por força da relação profissional mantida com esse mesmo cliente. 

 

Portanto, atendo-nos, estritamente, à circunstância de a situação descrita pela Consulente ser subsumível à alínea a) do normativo legal em causa, diríamos, e de forma precipitada, que estaríamos perante informação sujeita ao dever de sigilo.

 

Contudo, e conforme já expusemos anteriormente, a natureza sigilosa de um facto não depende apenas do meio ou da forma pelo qual chegou ao conhecimento do Advogado.

 

Prossigamos então.

 

Na relação com o cliente, a proteção do sigilo profissional visa, antes de mais, a tutela da confiança que se estabelece entre aquele e o seu Advogado, relativamente a factos, objetivos, que o cliente revela a este e que, por isto, queira que se mantenham numa esfera protegida de segredo, e consequentemente, não sejam revelados.

 

 

Não há, conforme a interpretação literal do artigo poderia permitir concluir, a proteção do sigilo profissional relativamente a todos os factos revelados pelo cliente – no sentido que atrás lhe demos -, mas tão somente, relativamente aos quais o cliente não pretenda a sua revelação e que, efetivamente, detenham natureza sigilosa.

 

No caso sob análise, estamos perante um comportamento (por omissão) da arguida, que terá sido revelado pela sua então Advogada junto do Tribunal.

 

A Consulente entende que a divulgação do comportamento em causa por parte da então Advogada da arguida o foi em violação do normativo legal contido no art.º 92.º do EOA e que aquela divulgação determinou a decisão do Tribunal em condenar a arguida no cumprimento de uma pena de prisão.

 

Ora, antes de mais, sublinharemos que tal consequência decorre automaticamente da lei processual penal e não depende de qualquer outro facto, senão o do não pagamento da pena de multa, em prestações ou não, conforme decisão judicial.

 

Ademais, o próprio comportamento da arguida - ausência de qualquer resposta ao despacho judicial, após notificada para se pronunciar sobre o pagamento da multa em prestações –, denuncia o seu silêncio, denuncia o próprio comportamento omissivo que a sua então Advogada acabou por comunicar ao Tribunal.

 

Portanto, a então Advogada da arguida mais não fez, em nosso entender, do que confirmar esse facto junto do Tribunal.  

 

Não vislumbramos, assim, no contexto atrás traçado, como pode considerar-se a ausência de contacto por parte da arguida com a sua mandatária protegida pelo sigilo profissional, quando o próprio comportamento da arguida já havia denunciado esse mesmo facto.  

 

É este, s.m.o., o nosso entendimento sobre a questão que nos foi colocada.

 

Lisboa, 3 de agosto de 2018.

 

A Assessora Jurídica do CRL
Sandra Barroso

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 3 de agosto de 2018.

 

O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins

Sandra Barroso

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