Consulta 13/2018
CONSULTA 13/2018
Questão
Mediante comunicação rececionada nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados em (…), a Meritíssima Juiz de Direito titular do processo n.º (…), a correr termos no Tribunal (…), veio solicitar a emissão de parecer, com o enquadramento factual que abaixo será circunstanciado, cujo objeto se reconduz à questão de saber se o Exmo. Senhor Advogado Dr. (…), arrolado como testemunha, está, ou não, obrigado ao dever de sigilo quanto à matéria à qual pretende depor.
O enquadramento factual da questão que ora nos ocupa é o seguinte:
- São partes no processo judicial em curso a sociedade comercial com a firma (…), a qual assume a qualidade de Autora, e as sociedades comerciais (…), na qualidade, respetivamente, de 1ª e 2ª Rés.
- A ação judicial em curso tem como causa de pedir o documento intitulado “Memorando de Entendimento” (…).
- O “Memorando de Entendimento” tinha por escopo a prestação por parte da Autora à 1ª Ré de serviços de consultoria (…) necessários para a preparação e lançamento do (…), pretendido pela 1ª Ré.
- Sustenta a Autora que, não obstante ter prestado os serviços objeto do “Memorando de Entendimento”, os mesmos não foram pagos.
- Constitui, assim, objeto do litígio o direito de a Autora receber das Rés, como contrapartida pelos serviços prestados, a quantia de € 36.900,00 (trinta e seis mil e novecentos euros), acrescida de juros de mora.
- Por ter exercido as funções de Diretor do Departamento Jurídico da Ré (…), foi o Exmo. Senhor Dr. (…) arrolado como testemunha pelas Rés para prestar depoimento quanto às circunstâncias em que foi acordado e redigido o “Memorando de Entendimento” e quanto às alterações introduzidas à sua versão final.
Opinião
A obrigação de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia um carácter fundamental, para não dizer, verdadeiramente basilar.
Sem o segredo profissional erigido em regra de ouro não existe, nem pode existir, Advocacia livre e independente, ficando abalado o direito de defesa dos cidadãos que recorrem ao Advogado para proteção dos seus direitos, liberdades e garantias.
No fim da linha, é o próprio Estado de Direito Democrático que é atingido no seu âmago, porquanto o sigilo profissional entre o Advogado e o seu Constituinte é estruturante e conditio sine qua non do direito de defesa dos cidadãos. Assim o tem entendido a lei e a própria jurisprudência da Ordem dos Advogados.
Com efeito, Advogado é acometido, por força de lei ordinária e pela Constituição da República Portuguesa de uma verdadeira «missão de interesse público», competindo-lhe, designadamente:
- Defender o Estado de direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos;
- Pugnar pela boa aplicação das leis;
- Colaborar na administração da justiça e pugnar pelo seu rápido funcionamento;
- Assegurar o acesso ao direito nos termos da Constituição, como defensores e patronos;
- Opinar sobre os projetos de diplomas legislativos que interessem ao exercício da advocacia e o patrocínio judiciário em geral;
- Propor alterações legislativas relevantes para o sistema de justiça.
(v. art.ºs 3.º nas suas diversas alíneas e o 85.º, n.º 1 do EOA).
São, assim, os Advogados garantes de importantes funções do Estado com consagração constitucional como é o “acesso ao direito e aos tribunais” e o “patrocínio judiciário” previstos no art.º 20.º, n.ºs 1 e 2 da Lei Fundamental e que constituem “elemento essencial da administração da justiça” como resulta do art.º 208.º da mesma Lei, sendo-lhes com esse propósito conferidas garantias e imunidades no exercício do mandato forense (art.º 150.º, n.º 2 do Código de Processo Civil), num claro e inequívoco reconhecimento da relevante função social de interesse público da profissão.
Atente-se, aliás, na redação do art.º 13.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/1013, de 26 de agosto –, com a epígrafe “Imunidade do mandato conferido a advogados”:
“Artigo 13.º
Imunidade do mandato conferido a advogados
1 — A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício dos atos próprios de forma isenta, independente e responsável, regulando-os como elemento indispensável à administração da justiça.
2 — Para garantir o exercício livre e independente de mandato que lhes seja confiado, a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz, designadamente:
- a) O direito à proteção do segredo profissional;
- b) O direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de atos conformes ao estatuto da profissão;
- c) O direito à especial proteção das comunicações com o cliente e à preservação do sigilo da documentação relativa ao exercício da defesa;
- d) O direito a regimes específicos de imposição de selos, arrolamentos e buscas em escritórios de advogados, bem como de apreensão de documentos”.
Se ao Advogado não fosse reconhecido o direito de guardar para si, e só para si, o conhecimento de tudo quanto o seu Constituinte, diretamente ou por via de terceiros, lhe confiou, ou não fosse obrigado a reservar a informação que obteve no exercício do mandato, então não haveria Advocacia livre e independente, transformando-se os Advogados em testemunhas da acusação e desse modo se desvirtuando a sua função na administração da Justiça e no acesso ao direito, como lídimos defensores dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos.
Sob a epígrafe “Segredo Profissional”, dispõe o artigo 92º do EOA, o seguinte:
“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
- a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
- b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
- c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
- d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;
- e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
- f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o Bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.
5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.
8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever”.
Vejamos então o caso concreto.
Antes de mais, convirá sublinhar que os elementos que foram colocados à nossa disposição pelo Tribunal não nos permitiram, com o rigor que a matéria exige, concluir se a factualidade sobre a qual se pretende que o Senhor Dr. (…) venha a depor constitui, efetivamente, matéria sigilosa.
Em sequência, procedeu este Conselho, nos termos legais, às devidas averiguações junto do Senhor Advogado.
Concatenando todos os elementos de que dispomos, e no estrito cumprimento do disposto no artigo 92.º, n.º 1, alínea b) do EOA, concluímos nos termos que passamos a explanar.
Em termos gerais e abstratos, inferimos dos elementos de que dispomos que, na qualidade de Diretor Jurídico da Ré (…), o Senhor Advogado Dr. (…) praticou atos próprios da profissão, no sentido e com o alcance previsto na Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto, em relação a diversos assuntos que lhe foram confiados pela então Constituinte, traduzidos, desde logo, no aconselhamento jurídico prestado e na elaboração de diversos contratos.
Tendo em conta as funções, globalmente consideradas, que o Senhor Advogado Dr. (…) desempenhou na Ré (…) (e nas empresas por esta participadas), inferimos que as mesmas se enquadram na figura do denominado “Advogado de Empresa”.
E quanto à figura do “Advogado de Empresa”, repristinamos aqui o entendimento, o qual sufragamos, perfilhado no Parecer n.º 14/2008, do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, e em que foi Relator o Sr. Dr. João Loff Barreto.
Aí se pode ler o seguinte:
“(…) ressalta com meridiana clareza que os chamados “advogados de empresa” não estão, nem devem estar, subtraídos ao dever de sigilo que impende sobre os demais. De outra forma todo o sistema do sigilo profissional enfermaria de manifesta incongruência.
Importa notar que todo o advogado que tem a sua inscrição em vigor na Ordem dos Advogados e que exerce actos típicos da profissão, nomeadamente de consulta jurídica, só pode ser considerado como agindo nessa mesma qualidade e está integralmente adstrito ao cumprimento dos deveres consignados no Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de Janeiro, nomeadamente ao dever de sigilo profissional.
É o que resulta do disposto nos arts. 61.º, 63.º, 83.º, 87.º, e n.º 1, do art. 109.º todos do EOA conjugado com o disposto na aliena b) do n.º 5, do art. 3.º ambos da Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto.
A circunstância desse advogado exercer as suas funções para determinada “empresa”, à qual está ligado ao abrigo de um contrato de trabalho (como sucede, precisamente, no caso em análise), “apenas” obriga a acautelar que os termos desse contrato estejam em conformidade com os princípios deontológicos da profissão, salvaguardando nomeadamente a sua isenção e independência cf. Art. 68.º do EOA, não tendo a virtualidade de o dispensar do cumprimento de qualquer um desses deveres.
Neste sentido o Parecer do Instituto dos Advogados de Empresa e do Conselho Geral n.º E-7/2007, de 6 de julho de 2007:
“(…) em lado nenhum encontramos qualquer discriminação legal negativa de qualquer Advogado (desde que com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados), designadamente de qualquer Advogado que exerce a sua profissão no âmbito de uma relação jurídico-laboral.
Antes pelo contrário, o artigo 68º do EOA veio explicitamente consagrar, “urbi et orbe”, a plena compatibilidade de exercício da Advocacia com a subordinação jurídica,
Mais do que isso, tal preceito veio mesmo salvaguardar e garantir o exercício da Advocacia nesse contexto de vínculo jurídico-laboral nos ditamos da isenção, autonomia e independência técnicas do Advogado e dos princípios deontológicos da profissão”.
E que dizer, concretamente, quanto ao assunto em discussão nos autos em curso e no âmbito dos quais o Senhor Dr. (…) foi chamado a depor?
Ora, quanto a este ponto, a resposta dada pelo Senhor Dr. (…) em sede dos esclarecimentos prestados é clara e inequívoca.
De facto, afirma o Senhor Dr. (…) que, quanto ao documento intitulado “Memorando de Entendimento, prestou, efetivamente, aconselhamento jurídico à (…)”.
E, assim sendo, dúvidas inexistem de que, em relação ao documento que constitui a causa de pedir da ação judicial ora em curso e no âmbito da qual foi chamado a depor, o Senhor Dr. (…) está vinculado ao dever de guardar segredo profissional, por força do normativo legal contido no artigo 92.º, n.º 1 do EOA.
Enfatize-se que este dever de sigilo se estende a tudo que vá para além da mera literalidade dos factos contidos no “Memorando de Entendimento”.
Assim sendo, a obrigação de sigilo profissional deve ser mantida enquanto, pelos meios legalmente previstos, não cessar.
Para o efeito, estabelece a lei apenas dois mecanismos que se diferenciam desde logo a propósito do sujeito que tem legitimidade para impulsionar o levantamento do segredo profissional:
- Dispensa do sigilo profissional, a qual é solicitada pelo Advogado detentor dessa obrigação ao Presidente do Conselho Regional competente, sendo concedida, caso se verifiquem preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 92.º, n.º 4 do EOA;
- Incidente processual de quebra de sigilo profissional.
Lisboa, 19 de novembro de 2018.
A Assessora Jurídica do CRL
Sandra Barroso
Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados.
Notifique-se.
Lisboa, 19 de novembro de 2018.
O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins
Sandra Barroso
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