Pareceres do CRLisboa

Consulta 1 /2019

 

CONSULTA 1/2019

 

Questão

 

Através de comunicação escrita rececionada nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados em (…), o Exmo. Senhor Juiz Desembargador Relator da (…) Secção do Tribunal da Relação de (…) veio solicitar ao Conselho Regional de Lisboa a emissão de parecer, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135º, números 3 e 4 do Código de Processo Penal.

 

O incidente de quebra do segredo profissional foi suscitado pela Digníssima Procuradora Adjunta, no âmbito do processo de inquérito pendente na (…) Secção de (…), do Departamento de Investigação e Ação Penal da Procuradoria da República da Comarca de (…), sob o número (…), quanto ao Exmo. Senhor Dr. (…), Ilustre Advogado, titular de cédula profissional n.º (…).

 

Os factos que subjazem ao incidente processual de quebra do segredo profissional são os que passaremos a enunciar.

 

No âmbito do processo que correu termos no Tribunal (…), com o número (…), o arguido, recebido o despacho de acusação pela prática de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, nº 1, do Código Penal, apresentou contestação, subscrita pelo seu mandatário, Senhor Dr. (…), e juntou aos autos um documento, que veio, alegadamente, a revelar-se falso.

 

Este facto – verificação da falsidade do documento junto aos autos acima já melhor identificados – determinou que fosse extraída certidão para investigação da prática de um crime de falsificação de documento, p.p. pelo artigo 256º do Código Penal.

 

É, pois, neste enquadramento fáctico que a Digníssima Procuradora Adjunta entende que o Senhor Dr. (…), Il. Advogado, deve prestar depoimento.

 

Entendimento do Conselho Regional de Lisboa

 

Nunca é de mais referir o carácter fundamental e verdadeiramente basilar que o dever de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia. Mas não só. Trata-se de dever de primordial importância para o reconhecimento da plenitude do Estado do Direito Democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa.

 

É que o Estado de Direito Democrático não só exige um poder judicial independente, como também pressupõe e postula o exercício de uma Advocacia livre, independente e responsável.

 

Ora, condição essencial ao exercício da profissão é a absoluta confiança que deve presidir à relação Advogado/Cliente, fundada, naturalmente, no princípio do respeito pelo segredo profissional, a que a lei e a Constituição asseguram, com latitude, a adequada tutela.

 

Transcendendo o âmbito da relação Advogado/Cliente, o segredo profissional reveste-se ainda de uma dimensão de ordem pública, tal como resulta claro do regime legal constante do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor (aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro).

 

E isto porque o sigilo tem outras dimensões e outros beneficiários para além do Cliente, devendo o Advogado ser, nas suas múltiplas relações sociais e profissionais, merecedor de confiança e isenção. Não apenas o Advogado individualmente considerado, como profissional liberal que é, mas como membro de uma classe profissional.

 

Por isso convirá realçar, de forma plenamente convicta, que se está na presença de um dever que constitui um princípio estruturante da Advocacia, assente não só na tutela dos interesses particulares que lhe possam estar subjacentes, mas adquirindo igualmente uma dimensão de ordem pública.

 

Mais do que um dever do próprio Profissional, “ o sigilo é um dever de toda a classe, é condição da plena dignidade do Advogado bem como da Advocacia” [1].

 

Contudo, tal não significa que o dever de segredo seja absoluto. Situações existem em que o levantamento do dever de guardar sigilo profissional se poderá, excecionalmente, justificar.

 

Assim, e para o efeito, estabelece a lei dois mecanismos que se diferenciam desde logo a propósito do sujeito que tem legitimidade para impulsionar o levantamento do segredo profissional:

  1. Dispensa do segredo profissional, a qual é solicitada pelo Advogado adstrito ao dever de segredo ao Presidente do Conselho Regional competente, sendo concedida, caso se verifiquem preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 92º, n.º 4 do EOA;

 

  1. Incidente processual de quebra de sigilo profissional, previsto no artigo 135º do Código de Processo Penal, tendo legitimidade para o desencadear qualquer das partes em juízo ou a autoridade judiciária.

 

A decisão da quebra de sigilo é tomada, com audição prévia da Ordem dos Advogados, audição essa que recairá, inevitavelmente, sobre o preenchimento ou não preenchimento das condições de que depende a quebra do sigilo profissional, ou seja, sobre a existência de um interesse superior aos interesses que se visa proteger com o dever de segredo.

 

Assim, para que se possa concluir pela existência de um interesse preponderante, haverá que verificar, em concreto e nos termos em que o pedido de quebra se encontra fundado (i) se o depoimento é absolutamente necessário para a descoberta da verdade material; (ii) se o crime apresenta uma gravidade tal que implicará a quebra do dever de sigilo profissional, dever este que, conforme tem sido referido em diversa doutrina e jurisprudência, quer dos diversos órgãos da Ordem dos Advogados, quer dos Tribunais, se reveste de interesse público (o que, desde logo, afastará a possibilidade de quebra em crimes de menor danosidade social); e (iii) a necessidade da proteção dos bens jurídicos afetados (tendo em conta a importância destes).

 

Em particular, no que à absoluta necessidade do depoimento diz respeito, haverá, nos termos do Regulamento de Dispensa do Segredo Profissional – Regulamento n.º 94/2006, de 12 de junho, DR, II Série, ainda em vigor por força do disposto no artigo 3º, n.º 7 da lei preambular do Estatuto -, que verificar se o depoimento do Advogado com quebra do sigilo se reveste de:

  • Imprescindibilidade: o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser indispensável (ou seja, imprescindível, e não meramente útil) face ao objetivo de prova visado;

 

 

  • Essencialidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser absolutamente determinante; e de
  • Exclusividade, pressupondo este requisito a inexistência de qualquer outro meio de prova que não o depoimento do obrigado ao sigilo.

 

Vejamos então o caso concreto.

 

É o despacho de 22.11.2018, da Digníssima Procuradora Adjunta da (…) Secção do Departamento de Investigação e Ação Penal de (…) que ordena a remessa do processo de inquérito n.º (…), ao Juízo de Instrução Criminal, que enquadra, factual e juridicamente, o objeto do presente parecer.  

 

Nele, e para o que ora releva, pode ler-se o seguinte:

Ora, para que se possa apurar a identificação do (s) agente (s) do crime em questão, necessário se torna, como decorre da análise dos autos, que sejam prestados esclarecimentos por parte do Ilustre Mandatário subscritor da contestação apresentada no âmbito do Processo n.º (…) e com a qual foi junto o documento em apreço nos autos (cfr. fls. 4 a 7).

Neste sentido, determinou-se a inquirição como testemunha do Sr. Advogado, Dr. (…), o qual se escusou a prestar depoimento, por entender que os factos em apreço nos autos estão abrangidos pelo sigilo profissional (cfr. fls 43 e 47). (…)

No caso em apreço, considerando que a diligência determinada se revela essencial para a identificação do autor dos factos em causa, ao que acresce a dificuldade de obtenção dessa informação caso aquela não seja realizada, o interesse na realização da justiça, enquanto interesse público, deve ser considerado preponderante face ao interesse particular do cliente visado ou de algum interesse público conexo com a preservação do segredo profissional”.

 

Mais, é afirmado que “da consulta do Processo n.º (…), é possível perceber que a testemunha em causa possuiu um papel activo na defesa do aí arguido (…), a qual passou pela junção aos autos do documento aqui em questão conhecendo a realidade e o contexto factual da situação em apreço naqueles e nestes autos. Acresce que, para além da inquirição de (…) (arguido no processo n.º (…) o depoimento do Sr. Dr. (…) configura o único modo de apurar a autoria dos factos aqui em causa”.

 

A Digníssima Procuradora Adjunta requer a audição do Senhor Dr. (…), Il. Advogado, com quebra do sigilo profissional, invocando a essencialidade do seu depoimento com base na preponderância dos valores da realização da justiça e da descoberta da verdade material.

 

O critério invocado pela Digníssima Procuradora Adjunta, de cujo preenchimento, a par com os restantes três, depende a eventual autorização para revelação de factos sujeitos a sigilo profissional - essencialidade – não é analisado pela preponderância de interesses relativamente à eventual quebra do sigilo, mas outrossim, da possibilidade ou impossibilidade de, mantendo-se o sigilo profissional, ser impossível àquele a quem incumbe o ónus da prova, demonstrar esse mesmo facto.

 

Ora, é verdade, que no seu requerimento, a Digníssima Procuradora Adjunta afirma que o depoimento do Il. Mandatário será o único meio passível de provar a origem do documento alegadamente falsificado, porém, não foram invocados quaisquer factos que possam confirmar que assim seja.

 

De facto, e conforme decorre do despacho sob análise, o processo encontra-se ainda numa fase investigatória, desconhecendo-se que outras diligências de prova – designadamente periciais – foram efetuadas para demonstração da efetiva falsificação daquele documento e da autoria da sua falsificação.

 

Portanto, isto seria suficiente para se concluir pelo não preenchimento do requisito da exclusividade, o que bastaria para se poder concluir que nunca poderia ser autorizado o depoimento do Senhor Dr. (…), com quebra do sigilo profissional.

 

Todavia, e ainda que assim não fosse, haveria que atentar no seguinte.

 

Um dos fundamentos aduzidos para que fosse suscitado o incidente de quebra do segredo profissional é o da necessidade de identificação do autor material da alegada falsificação, na fase investigatória.

 

A ser admitido tal depoimento com este fundamento, dois princípios basilares do nosso ordenamento jurídico poderiam, desde logo, perigar, a saber, o princípio da presunção da inocência do arguido previsto no artigo 32º, n.º 2 da Constituição da República, bem como o direito ao silêncio do arguido previsto nos artigos 61º, n.º 1, alínea d), 141º, n.º 4, alínea a) e 343º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal.

 

Com efeito, desta forma obter-se-ia um depoimento privilegiado, decorrente, em termos puramente hipotéticos e abstratos, do patrocínio pelo Advogado de um seu cliente, arguido, ainda que à custa da relativização ou desvalorização de princípios fundamentais do nosso ordenamento jurídico.

 

Por outras palavras, com o depoimento em causa o Advogado declararia o que o arguido pode silenciar.

 

A situação descrita poderia conduzir ao absurdo de, embora os arguidos tenham direito a manter o silêncio durante todo o processo penal, os Tribunais poderem ordenar a prestação de depoimento dos seus mandatários para, deste modo, obterem a prova de que necessitam para a sua condenação ou absolvição.

 

Pretender que um mandatário quebre um interesse, que é público, com a alegação de que tal depoimento, em fase de inquérito, é essencial para concluir sobre a autoria material de um crime, seria a nosso ver subverter todo o sistema processual penal, subvertendo os direitos daquele que, nesta fase e até à sentença com trânsito em julgado, beneficia da presunção da sua inocência.

 

Se é certo que o Advogado é um defensor da administração da justiça e dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos em geral, como aliás o são, e devem ser, os Tribunais, o seu papel é exercido na defesa dos cidadãos perante a justiça ou injustiça do Estado de Direito Democrático, pugnando pela boa e justa aplicação das leis, para o que a Lei fundamental lhe confere as necessárias imunidades.

 

Concluindo, tal como se encontra recortado o pedido de audição da Ordem dos Advogados, nada nos permite concluir, com o rigor que a matéria exige, pela existência de um interesse preponderante ao sigilo que leve, no caso vertente, ao sacrifício do dever de sigilo profissional.

 

 

Lisboa, 11 de fevereiro de 2019.

 

A Assessora Jurídica do CRL
Sandra Barroso

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados.

 

Nestes termos, entendo que não estão reunidas as condições de que depende a audição do Ilustre Colega, Dr. (…), com quebra do segredo profissional, devendo prevalecer os interesses que subjazem ao instituto jurídico-deontológico do dever de segredo profissional.  

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 11 de fevereiro de 2019.

 

O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins

 

[1] Bastonário Dr. Augusto Lopes Cardoso, in “Do segredo profissional na Advocacia”, Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, 1998, p. 17.

Sandra Barroso

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