Pareceres do CRLisboa

Consulta 4 /2019

 

CONSULTA 4/2019

 

Questão

 

Corre termos no Cartório Notarial de (…) sob o n.º (…), um processo de inventário por herança, no âmbito do qual o Exmo. Senhor Dr. (…), Ilustre Advogado, patrocina, simultaneamente, a cabeça-de-casal, (…), e os interessados (…).

 

Neste contexto, vem a Senhora Notária, Dra. (…), solicitar a pronúncia do Conselho Regional de Lisboa quanto à eventual existência de um conflito de interesses nos patrocínios assumidos pelo Senhor Dr. (…).  

 

Opinião

 

O objeto da consulta solicitada subsume-se à matéria relativa a conflitos de interesses prevista no artigo 99.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro (doravante apenas EOA). 

 

O artigo 99.º do EOA, sob a epígrafe “Conflito de Interesses”, determina nos seus números 1 a 6, o seguinte:

“1 - O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária.

2 - O advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado. 

3 - O advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes. 

4 - Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito. 

5 - O advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente.

6 - Sempre que o advogado exerça a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.”

 

É claro, através da análise do citado artigo, que a limitação ao exercício da advocacia, por referência a outra atividade profissional ou cliente, visa evitar a violação dos deveres de isenção, independência e, fundamentalmente, do dever de sigilo profissional.

 

Vejamos então.

 

Começaremos por enfatizar que, em abstrato, na fase inicial do processo de inventário, nada obsta a que um Advogado represente o cabeça-de-casal e os interessados na partilha, isto, obviamente, no pressuposto de que, à data da entrada do processo, inexista qualquer conflito de interesses entre eles, nos termos do transcrito n.º 3, do artigo 99.º do EOA.

 

Contudo, no momento em que passe a existir um conflito de interesses entre, pelo menos, dois dos seus representados, o Advogado deve cessar a representação de todos aqueles que representava no momento em que esse conflito não existia nos termos do n.º 4 do normativo legal em causa.

 

Portanto, no caso vertente, o que teremos de verificar é se, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 99.º do EOA, os mandatos assumidos pelo Senhor Dr. (…) são incompatíveis.

 

Para tanto, importa, antes de mais, atentar nos seguintes factos.

 

Em 08.04.2008, faleceu (…), tendo-lhe sucedido os seus três filhos, (…).

 

Em 09.03.2015, faleceu a interessada na herança, (…), tendo-lhe sucedido, por testamento, os filhos da sua irmã (…), a saber: (…).

 

Em 07.11.2016, o interessado, (…), intentou o processo de inventário que corre termos no Cartório Notarial de (…).

 

Em 09.06.2017, (…) prestou compromisso de honra como cabeça-de-casal, por óbito de sua mãe (…).

 

Em 05.07.2017, após a tomada de declarações da cabeça-de-casal, o Senhor Dr. (…) juntou aos autos procuração forense outorgada por esta, bem como procurações outorgadas pelos seus filhos, na qualidade de herdeiros da sua irmã, (…).

 

Em 29.10.2017, a cabeça-de-casal juntou aos autos a retificação de relação de bens quanto à inventariada e requereu a cumulação de inventários.

 

Em 28.02.2018, (…) prestou novo compromisso de honra como cabeça-de-casal, desta feita quanto ao inventário da sua irmã (…).

 

Em 03.04.2018, a cabeça-de-casal juntou aos autos a relação de bens referente ao inventário da sua irmã (…).

 

Em sequência, os filhos da cabeça-de-casal, na qualidade de herdeiros da inventariada (…), foram notificados nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 30.º e 32.º do Regime Jurídico do Processo de Inventário[1].

 

Em 20.05.2018, o Senhor Dr. (…), em representação dos interessados (…) e demais irmãos, indicou a existência de um direito de crédito da herança de (…) sobre o interessado e Requerente do inventário (…), no valor de € 5.738,35.

 

Em 28.05.2018, (…) apresentou reclamação quanto à relação de bens.

 

Em 11.06.2018, a cabeça-de-casal respondeu à reclamação apresentada por (…), invocando, nomeadamente, a existência do aludido direito de crédito, alicerçado nos documentos juntos aos autos em 20.05.2018, pelos seus filhos.

 

Posto isto, prossigamos a nossa análise.

 

É evidente que, num processo de inventário por herança, uma reclamação à relação de bens apresentada pelo interessado que exercer as funções de cabeça-de-casal se traduz, em abstrato, na manifestação de um desacordo dos interessados na partilha relativamente aos bens descritos, ou eventualmente omitidos, nessa relação de bens, e indicia um conflito entre os interesses patrimoniais que se discutem no âmbito de um processo de inventário.

 

Sem prejuízo, a questão do conflito de interesses não pode ser resolvida com base em premissas puramente abstratas e objetivas, antes pressupondo uma análise casuística.

 

Assim, olhando para os concretos fundamentos que subjazeram à reclamação apresentada, facilmente concluímos que os interesses no processo quer da cabeça-de-casal, quer dos interessados, todos representados pelo Senhor Dr. (…), não são dissemelhantes. Pelo contrário, o que existe entre eles é uma total comunhão de interesses.

 

De facto, os interessados, representados pelo Senhor Dr. (…), suscitaram o aditamento à relação de bens do direito de crédito da herança de (…) sobre o interessado e Requerente do processo de inventário, (…), no valor de € 5.738,35 (cinco mil setecentos e trinta e oito euros e trinta e cinco cêntimos), aditamento que, como é bom de ver, em nada colide com os interesses da cabeça-de-casal, também representada pelo Senhor Dr. (…).

 

Inexiste, portanto, a nosso ver, qualquer conflito de interesses que belisque os princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão, e que o normativo ínsito no artigo 99.º do EOA pretende acautelar.

 

Sem prejuízo, e caso venha a existir algum conflito entre a cabeça-de-casal e os interessados ou entre os interessados individualmente considerados, deverá o Senhor Dr. (…), atento o estatuído no artigo 99.º, n.º 4 do EOA, cessar a representação de todos eles.

 

É este, s.m.o., o nosso entendimento sobre a questão que nos foi colocada.

 

Lisboa, 6 de setembro de 2019.

A Assessora Jurídica do CRL
Sandra Barroso


Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados.

 

Notifique-se quer a Exma. Senhora Notária Dra. (…), quer o Exmo. Senhor Advogado Dr. (…).

 

Lisboa, 6 de setembro de 2019.

 

O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins

 

 

 

 

[1] Aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de março.

 

Sandra Barroso

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