Pareceres do CRLisboa

Consulta 10 /2019

 

CONSULTA 10/2019

 

Questão

 

Mediante requerimento rececionado nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados em (…), a Exma. Senhora Dra. (…), Ilustre Advogada, veio solicitar a emissão de parecer com o enquadramento factual que passaremos a circunstanciar.

 

A Senhora Advogada Consulente foi contactada por (…) para a patrocinar em duas ações judiciais, a saber: uma ação de divisão de coisa comum que corre termos no Tribunal (…), sob o n.º (…), e uma ação declarativa de condenação que corre termos no Tribunal (…), sob o n.º (…).

 

(…) transmitiu à Senhora Advogada Consulente que, no âmbito do processo n.º (…), não constituiu mandatário, mas que, no âmbito do processo n.º (…), constituiu como seu mandatário o Exmo. Senhor Dr. (…), Ilustre Advogado.

 

Na sequência desta informação, e em cumprimento do disposto no artigo 112.º, n.º 2 do Estatuto da Ordem dos Advogados, a Senhora Advogada Consulente contactou o Senhor Dr. (…).

 

Após diversas diligências no sentido de garantir o pagamento das despesas e honorários reclamados pelo Senhor Dr. (…), a Senhora Advogada Consulente não logrou obter o pagamento dos mesmos, ou sequer estabelecer um acordo com vista ao seu pagamento.

 

Por outro lado, e embora a Senhora Advogada Consulente tenha solicitado um substabelecimento ao Senhor Dr. (…), este não o fez ou sequer tomou posição relativamente ao facto de aceitar substabelecer os poderes forenses que lhe haviam sido conferidos por (…).

 

Neste contexto, (…) informou a Senhora Advogada Consulente que é seu propósito revogar a procuração que outorgou a favor do Senhor Dr. (…) e constitui-la a si como sua mandatária.

 

Por último, em conversa telefónica mantida com o Senhor Dr. (…), a Senhora Advogada Consulente tomou conhecimento de que aquele tem em seu poder documentos que lhe foram entregues pela antiga constituinte, os quais não foram (ainda) juntos ao processo por uma questão de estratégia processual.

 

A Senhora Advogada Consulente desconhece o teor destes documentos e, consequentemente, a sua utilidade ou imprescindibilidade para a defesa dos interesses de (…) e teme que, instado para o fazer, o Senhor Dr. (…) se recuse a entregar os documentos com fundamento na falta de pagamento da nota de despesas e honorários.

 

Com base nos factos anteriormente descritos, pretende a Senhora Advogada Consulente que seja emitida pronúncia sobre as seguintes questões:

 

  • “Se é lícito e deontologicamente correcto a aqui Requerente, após revogação do mandato conferido ao Sr. Dr. (…), pela senhora (…), aceitar patrocinar a mesma nos autos que correm termos no Tribunal (…), sob o Proc. Nº (…), sem que os honorários e despesas constantes do Doc. nº 10, que se junta, se encontrem pagos, em face das diligências que encetou;” E,
  • “Se, no caso de resposta afirmativa à questão anterior, é lícito ao Ilustre Advogado, recusar-se a entregar documentos que lhe foram entregues pela Sra. Dra. (…), e que ainda não foram juntos aos autos e que sejam necessários à prova do direito da cliente”.

 

Descritos sucintamente os factos e delimitado o objeto da presente consulta, analisemos, de per si, cada uma das questões que nos é colocada.

A primeira questão prende-se com a previsão do artigo 112.º, n.º 2 do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro (doravante apenas EOA), o qual determina o seguinte: “O advogado a quem se pretende cometer assunto anteriormente confiado a outro advogado não deve iniciar a sua atuação sem antes diligenciar no sentido de a este serem pagos os honorários e demais quantias que a este sejam devidas, devendo expor ao colega, oralmente ou por escrito, as razões da aceitação do mandato e dar-lhe conta dos esforços que tenha desenvolvido para aquele efeito.”

 

O dever plasmado no artigo 112.º, n.º 2 do EOA tem a sua ratio no dever de solidariedade que deve presidir à relação entre Advogados, dever este expressamente consagrado no artigo 111.º do mencionado diploma legal.

 

Contudo, o dever imposto pelo comando legal em causa – e reportamo-nos em concreto ao dever de o Advogado que pretende aceitar mandato quanto a um assunto anteriormente confiado a outro Colega “diligenciar no sentido de a este serem pagos os honorários e demais quantias que a este sejam devidas” – não deve ser interpretado no sentido de o Advogado que pretende assumir o mandato ficar impedido de o aceitar pelo facto de o constituinte se recusar a liquidar ao anterior Advogado a nota de honorários e despesas. O que o preceito legal em causa exige é que o Advogado envide esforços junto do cliente no sentido de a conta ser paga e se demonstre ter feito esses esforços.

 

No caso descrito e face aos documentos que instruem o pedido, parece-nos que a Senhora Advogada Consulente deu cabal cumprimento ao disposto no artigo 112.º, nº 2 do EOA, pelo que, poderá assumir o mandato pretendido, muito embora, a nota de despesas e honorários não se mostre liquidada.

 

Face à descrição factual apresentada pela Senhora Advogada Consulente impõem-se, ainda, duas notas adicionais.

 

A primeira contende com o facto de a revogação do mandato por parte do mandante ser livre, sugerindo-se apenas que, nesta situação concreta, a Senhora Advogada Consulente, à luz do dever de lealdade entre Colegas, dê nota ao Senhor Dr. (…) de que a constituinte irá revogar o mandato anteriormente conferido.

 

A segunda é que o Senhor Dr. (…) não tem qualquer dever deontológico ou processual de substabelecer os poderes que lhe foram conferidos pela antiga constituinte. Com efeito, o meio adequado para fazer cessar o mandato que lhe foi conferido, caso este opte por não enviar o substabelecimento solicitado pela Senhora Advogada Consulente, é o da revogação do mandato pelo mandante, nos termos do disposto no artigo 47.º do Código de Processo Civil e com os efeitos aí previstos.

 

Aqui chegados, haverá agora que analisar a segunda questão que contende com o direito de retenção. Ora, considerando a forma como a mesma se encontra recortada, e considerando aquela que é a competência material deste Conselho, apenas emitiremos pronúncia chamando à colação as concretas normas aplicáveis, sem que tal consubstancie qualquer juízo valorativo sobre a conduta do Senhor Dr. (…), a qual, obviamente, não nos cabe, nesta sede, sindicar. Vejamos então.

 

É no artigo 754.º do Código Civil que encontramos os requisitos (gerais) de que depende a existência e o exercício do direito de retenção.

 

Lido o normativo legal em causa, concluímos que os requisitos em causa são:

  1. A detenção lícita de uma coisa que deve ser entregue a outrem;
  2. Que aquele que pretende exercer o direto de retenção seja credor da pessoa com direito à entrega;
  3. Que o crédito daquele que pretende exercer o direto de retenção resulte de despesas com a coisa ou de prejuízos provenientes da própria coisa retida.

 

Do artigo 755.º, n.º 1, alínea g) do Código Civil, decorre ainda que o mandatário (forense ou não) goza do direito de retenção sobre as coisas que lhe tiverem sido entregues para execução do mandato, pelo crédito resultante da sua atividade.

 

O regime (especial) do direito de retenção aplicável ao mandato forense está regulado no artigo 101.º do EOA.

 

Nos termos n.º 2 do normativo legal em causa, quando cessa a representação do cliente, o Advogado deve restituir-lhe os valores, objetos ou documentos deste que se encontrem em seu poder.

 

Contudo, e de acordo com o n.º 3 da mesma norma legal, “o advogado, apresentada a nota de honorários e despesas, goza do direito de retenção sobre os valores, objetos ou documentos referidos no número anterior, para garantia do pagamento dos honorários e reembolso das despesas que lhe sejam devidas pelo cliente, a menos que os valores, objetos ou documentos em causa sejam necessários para prova do direito do cliente ou que a sua retenção cause a este prejuízos irreparáveis”.

 

Portanto, a norma estatutária determina que o Advogado só pode, legitimamente, exercer o direito de retenção quando, cumulativamente, se verifiquem (também) os seguintes requisitos:

a) O Advogado já tenha apresentado ao antigo constituinte a nota de honorários e despesas.
Enfatize-se que basta que a nota de honorários e despesas tenha sido apresentada, não sendo necessário que o cliente a tenha aprovado. Tal entendimento estriba-se no facto de, após a retenção efetuada pelo Advogado, o cliente poder defender-se, seja através da apresentação de um pedido de laudo, seja através da prestação de caução arbitrada pelo Conselho Regional, nos termos do artigo 101.º, n.º 4 do EOA, caso em que o Advogado deverá restituir os valores e objetos retidos, independentemente do pagamento a que tenha direito.


b) O direito de retenção incidir (exclusivamente) sobre valores, objetos ou documentos do antigo constituinte


c) Os valores, objetos ou documentos retidos não sejam necessários para a prova do direito do antigo constituinte


d) Quando a retenção dos valores, objetos ou documentos não cause prejuízos irreparáveis ao antigo constituinte.

 

Portanto, olhando para os requisitos elencados sob as alíneas c) e d), conclui-se que embora o Advogado possa exercer o direito de retenção sobre os documentos do antigo constituinte, só o poderá fazer desde que tais documentos não sejam necessários para prova do seu direito ou, no caso do exercício dessa retenção, não causem prejuízos irreparáveis ao antigo constituinte[1].

 

De todo o modo, e ainda que haja dúvidas sobre o teor dos documentos, mormente, no que tange à sua relevância para a prova do direito da antiga constituinte ou que a sua não devolução cause a este prejuízos irreparáveis, mediante a recusa do Senhor Dr. (…) em entregar os mesmos invocando o direito de retenção, sempre poderá a antiga constituinte requerer ao Conselho Regional de Lisboa que arbitre caução para garantia do crédito de que o Ilustre Advogado se arroga titular, determinando o Conselho Regional, ademais, a devolução dos documentos à antiga constituinte.

 

É este, s.m.o., o nosso entendimento sobre as questões que nos foram colocadas.

 

Lisboa, 2 de abril de 2019.

 

A Assessora Jurídica do CRL
Sandra Barroso

 

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 2 de abril de 2019.

 

O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins

 

 

[1] O que a Senhora Advogada Consulente não sabe, uma vez que desconhece o teor dos documentos que estão na posse do Senhor Dr. (…).

 

Sandra Barroso

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