Pareceres do CRLisboa

Consulta 26 /2019

CONSULTA  26/2019

 

Questão

 

Mediante comunicação rececionada nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados em (…) e esclarecimentos prestados em (…), a Exma. Senhora Advogada Dra. (…), titular da cédula profissional n.º (…), veio solicitar a emissão de parecer quanto à questão de saber se uma missiva que juntou à contestação apresentada no âmbito do processo pendente no Tribunal (…), sob o n.º (…), contende, ou não, com o dever de sigilo.

 

No processo judicial em curso, a Senhora Advogada Consulente patrocina a Ré, a sociedade comercial com a firma (…), sendo Autora (…).

 

Opinião 

 

O Advogado tem uma dignidade e um estatuto próprios, não lhe sendo lícito revelar livremente factos, ainda que contidos em documentos, de que teve conhecimento no exercício da profissão, ainda que o (antigo) cliente lhe conceda autorização para tal, ou ainda que a sua revelação vise a defesa dos legítimos interesses do (antigo) cliente. 

 

O segredo profissional tem na sua génese a necessidade não só de garantir a relação de confiança entre o Advogado e o seu cliente – que deve ser sem limites -, mas também o interesse público da função do Advogado enquanto agente ativo da administração da justiça, entendida em sentido amplo e não restrita à atividade judicial.

 

O segredo profissional está, pois, intrinsecamente conexo ao princípio da confiança, ao dever de lealdade do Advogado para com o seu constituinte, mas também à dignidade da Advocacia e à sua função de manifesto interesse público.

 

Nos termos do disposto no artigo 92.º, n.º 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro, (doravante apenas EOA), o Advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.

 

O conceito de “factos” para efeitos do sigilo profissional é um conceito amplo e compreende não só os factos materiais suscetíveis de alegação, como os próprios documentos onde esses mesmos factos materiais estão contidos, como decorre do disposto no artigo 92.º, n.º 3 do EOA.

 

O dever de sigilo só pode, nomeadamente, ceder nos casos previstos no artigo 92.º, n.º 4 do EOA, que aqui se transcreve: “O Advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio Advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo (…)”.

 

Lançadas as premissas que irão orientar no nosso pensamento, vejamos agora o caso concreto.

 

Porque relevante para o parecer a emitir a final, analisemos, ainda que de forma perfunctória, a factualidade subjacente ao processo judicial em curso.

 

Em 28 de agosto de 2018, (…), na qualidade de promitente-compradora, e a sociedade comercial com a firma (…), na qualidade de promitente-vendedora, celebraram um contrato promessa de compra e venda de um bem futuro, no caso, um imóvel que teria que ser licitado no âmbito de um determinado processo executivo. Aquando da outorga do contrato promessa, a promitente-compradora entregou, a título de sinal, a quantia de € 6.000,00 (seis mil euros).

O contrato definitivo deveria ser outorgado até ao dia 28 de novembro de 2018.

 

Por vicissitudes várias, e por entender que se verificou uma impossibilidade objetiva e definitiva de a promitente-vendedora vir a adquirir o imóvel até ao dia 28 de novembro de 2018, a promitente-compradora, por intermédio da sua mandatária, dirigiu à promitente-vendedora uma missiva datada de 5 de novembro de 2018, com o seguinte teor:

“Reporto-me ao assunto identificado em epígrafe para, na qualidade de mandatária da Sra. (…) e em virtude do incumprimento do contrato de promessa de compra e venda celebrado no passado dia 28 de agosto de 2018, vir pelo presente solicitar a devolução à M/Constituinte da quantia de € 12.000,00 (Doze mil) a título de pagamento de sinal em dobro, nos termos e para efeitos do disposto no art.º 412º do Código Civil.

 

Como é do V/conhecimento foi a M/cliente informada da impossibilidade de transação do imóvel sito (…), em virtude de se ter tornado impossível a transmissão do mesmo para a sua propriedade em virtude do exercício do direito de remissão por parte da herdeira do Exmo. Senhor (…).

 

Neste sentido existe um incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda bem futuro assinado entre as partes em 28 de Agosto de 2018.

 

Neste sentido solicito que a quantia (…) seja devolvida até ao próximo dia 15 de Novembro de 2018. Caso V.Exa. não proceda ao pagamento da quantia acima indicada, mediante entrega ou envio, para a morada abaixo indicada, de dinheiro, vale postal ou cheque emitido à ordem da M/constituinte, serei forçada a recorrer aos meios legais ao M/alcance para acautelar e defender todos os direitos da M/constituinte, com os encargos judiciais e extra judiciais daí decorrentes.”

 

Em resposta, a promitente-vendedora, também por intermédio da sua mandatária, precisamente a Senhora Advogada Consulente, retorquiu, por carta datada de 20 de novembro de 2018, o seguinte:

“Na qualidade de mandatária de (…), acusamos desde já a recepção da vossa missiva datada de 5 de Novembro de 2018, e face ao teor da mesma, tendo em conta que a data para realização da escritura definitiva de compra e venda era até ao dia 28 de Novembro de 2018, conforme cláusula quarta do contrato promessa de compra e venda, entendemos configurar a mesma um incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda, imputável à sua constituinte.

Pelo que entendemos nada dever o meu constituinte a título de responsabilidade à sua constituinte.

No entanto, e porque pretende, face à sua missiva o meu constituinte colocar um ponto final em toda esta situação, vem requerer-se que seja facultado o NIB da sua constituinte pois pretende o meu constituinte devolver à sua constituinte o valor que esta pagou a título de sinal.”

 

Não tendo sido possível chegar a um consenso, a promitente-compradora intentou a competente ação judicial na qual peticiona a devolução do sinal em dobro em virtude do incumprimento do contrato promessa, a condenação da promitente-vendedora no pagamento das despesas em que incorreu com vista à celebração do contrato definitivo, bem como numa indemnização a título de danos não patrimoniais.

 

Em sede de contestação, a promitente-vendedora defende, grosso modo, que aquando da receção da missava datada de 5 de novembro de 2018, ainda lhe era possível o cumprimento do contrato prometido, mas que face à postura da Autora, a quem imputa o incumprimento do contrato, perdeu o interesse na celebração do contrato definitivo, não tendo, por isso adquirido o imóvel prometido vender.

 

Na contestação, a Senhora Advogada Consulente juntou as missivas datadas de 5 e 20 de novembro de 2018, tendo a mandatária da Autora suscitado a questão da sujeição ao dever de sigilo da missiva de 20 de novembro, requerendo, por conseguinte, o seu desentranhamento.

Em sequência, a Senhora Advogada Consulente informou os autos de que iria solicitar o competente parecer ao Conselho Regional de Lisboa.  

 

Vejamos então.

 

Como sempre temos defendido, não se pode enveredar por uma interpretação literal da norma legal ínsita no artigo 92.º, n.º 1 do EOA, sob pena de termos que considerar que todo e qualquer facto – ainda que vertido em documento -, de que o Advogado tome conhecimento no exercício da sua atividade profissional e por causa desse mesmo exercício está, sempre e em qualquer circunstância, abrangido pelo dever de segredo profissional. Não foi isto que o legislador pretendeu.

 

A consagração legal do instituto jurídico-deontológico do segredo profissional teve por escopo reservar para o seu âmago apenas aqueles factos relativamente aos quais exista uma exigência de confidencialidade e de secretismo que o instituto jurídico-deontológico do sigilo profissional pressupõe. Confidencialidade e secretismo estes que têm, forçosamente, que ser aferidos em função das particulares circunstâncias do caso concreto, mormente, atendendo ao teor do próprio facto; à forma como o facto chegou ao conhecimento do Advogado e às próprias circunstâncias da sua necessidade de revelação.

 

Neste contexto, temos defendido uma interpretação teleológica do disposto no artigo 92.º, n.º 1 do EOA, que impõe e exige uma dialética constante de todos os critérios enumerados em função do caso concreto apresentado e para finalidades específicas, tal como são descritas ou invocadas pelo Advogado que requer a dispensa.

 

Em matéria de correspondência subscrita ou dirigida a Advogado, não consta nem resulta do teor do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor uma proibição genérica de revelação de correspondência trocada entre Advogados ou subscrita por Advogado. Existe, sim, essa proibição quando do seu teor decorram factos abrangidos pelo dever de sigilo.

 

Ora, a norma legal aqui chamada à colação, dentro dos seus objetivos, não abrange as comunicações enviadas entre as partes, ainda que por intermédio dos seus mandatários, que se destinem exclusivamente a marcar a posição, a manifestação de vontade e os fundamentos, no plano do direito, do seu remetente face ao destinatário, como sucede, desde logo, com a missiva datada de 5 de novembro de 2018.

 

Contudo, o mesmo não sucede com a comunicação datada de 20 de novembro de 2018.

 

Como referimos, não estão abrangidas pelo dever de sigilo as comunicações escritas que tenham meramente por escopo marcar a posição, a manifestação de vontade e os fundamentos, no plano do direito, do seu remetente face ao destinatário. Contudo, tal pressupõe que as mesmas não tenham qualquer conteúdo negocial, pois que se, assim for, já ficarão abrangidas pelo estatuído no artigo 92.º, n.º 1 do EOA. O que sucede, precisamente, com a comunicação datada de 20 de novembro de 2018, já que entendemos que o último parágrafo da mesma materializa uma verdadeira proposta negocial, o que a sujeita aquela comunicação ao dever de sigilo, por força da cláusula geral contida no artigo 92.º, n.º 1 do EOA.

 

O que significa que, nos termos do regime legal em vigor, a sua junção aos autos pressuporia um pedido de autorização prévia. O que, no caso concreto, não sucedeu, não sendo possível, diga-se, agora e a posteriori, emitir pronúncia nos termos e para efeitos do disposto no artigo 92.º, n.º 4 do EOA, normativo que pressupõe e exige que o pedido de dispensa seja prévio à revelação dos factos – ainda que vertidos em documento.

 

Destarte, e com rigor processual, a missiva datada de 20 de novembro de 2018 está sujeita à cominação prevista no artigo 92.º, n.º 5 do EOA. E, realce-se, que este entendimento se impõe e prevalece ainda que sob o pretexto de que a mesma foi junta aos autos para defesa dos legítimos interesses da cliente. De facto, não podemos esquecer que estamos perante um dever com carácter social ou de ordem pública e não de natureza meramente contratual.

 

Contudo, e sem prejuízo deste nosso entendimento, o certo é que, nos termos da lei (cf. artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa e artigo 2.º, n.º 2 da Lei da Organização do Sistema Judiciário) é aos Tribunais que pertence a função jurisdicional e, portanto, a capacidade de julgar em definitivo se um meio de prova é ou não válido.

 

É este, salvo melhor opinião, o nosso entendimento sobre a questão que nos foi colocada.

 

Lisboa, 30 de junho de 2020.

 

A Assessora Jurídica do CRL
Sandra Barroso

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 30 de junho de 2020.

 

 O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
João Massano  

Sandra Barroso

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