Pareceres do CRLisboa

Consulta 11 /2017

 

CONSULTA 11/2017

 

Questão

 

Mediante requerimento rececionado nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados em (…), veio a Exma. Senhora Juiz do (…) solicitar, ao abrigo do disposto no artigo 54º, n.º 1, alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro (doravante apenas EOA), a emissão de Parecer quanto a uma questão de eventual conflito de interesses.

 

O pedido que nos foi dirigido tem subjacente a factualidade que passamos a transcrever:

“ (…) atendendo a que a progenitora do menor, (…), que trabalha como empregada doméstica de (…), constituiu como seu mandatário o Sr. Dr. (…), referindo a mesma que estabeleceu uma relação de confiança com o referido mandatário, e que ao longo do presente processo a mesma tem feito referência por diversas vezes a pressões por parte da sua entidade patronal, afirmando relativamente a (…) que ela “usa e abusa de mim”, que ela a obriga a ir aos fins de semana a casa dela conjuntamente com o filho, pese embora não faça parte do seu horário laboral, controla-lhe as mensagens de telemóvel, coage-a a assinar papéis dos quais desconhece o conteúdo, detém os relatórios e informações clínicas do seu filho, (…) uma vez que no processo de promoção e proteção n.º (…), que corre igualmente termos por este (..), (…), entidade patronal de (…), constituiu também como seu mandatário o Sr. Dr. (…)”.

 

Competência Consultiva Do Conselho Regional de Lisboa

 

Nos termos do disposto no artigo 54º, n.º 1, a alínea f) do EOA, compete aos Conselhos Regionais pronunciarem-se sobre questões de carácter profissional que se suscitem no âmbito da sua competência territorial.

 

A competência consultiva dos Conselhos Regionais está, assim, limitada pelo EOA às questões inerentemente estatutárias, isto é, as que decorrem dos princípios, regras, usos e praxes que regulam e orientam o exercício da profissão, maxime as que decorrem das normas do EOA e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido pela lei aos órgãos da Ordem dos Advogados.

 

A matéria colocada à apreciação deste Conselho Regional subsume-se, precisamente, a uma questão de carácter profissional nos termos descritos, pelo que haverá que proceder à emissão de Parecer quanto à questão que nos foi colocada.

 

Opinião

 

“A Deontologia é o conjunto de regras ético-jurídicas pelas quais o advogado deve pautar o seu comportamento profissional e cívico. (...) O respeito pelas regras deontológicas e o imperativo da elevada consciência moral, individual e profissional, constitui timbre da advocacia.” – António Arnaut, Iniciação à Advocacia – História – Deontologia – Questões Práticas, p. 49 e 50, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1996.

 

O Advogado, no exercício da sua profissão está vinculado ao cumprimento escrupuloso de um conjunto de deveres consignados no EOA e ainda àqueles que a lei, os usos, os costumes e as tradições profissionais lhe impõem – cf. artigo 88º, n.º 1 do EOA.

 

O cumprimento escrupuloso e pontual de todos esses deveres garante a dignidade e o prestígio da profissão.

 

O Título III do Estatuto trata da “Deontologia Profissional”, fixando, no Capítulo I, os Princípios Gerais e abordando, no Capítulo II, a questão das relações entre o Advogado e o Cliente. 

 

 

É neste último Capítulo e, mais especificamente no seu artigo 99º, que se encontra regulado o denominado “Conflito de Interesses”. Aí estão plasmadas várias situações em que existe uma situação de incompatibilidade para o exercício do patrocínio.

A matéria do conflito de interesses, regida estatutariamente pelo teor do artigo 99º do EOA, resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão e constitui expressa manifestação do princípio geral estatuído no artigo 89º do EOA, segundo o qual o “Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros”.

Nesta medida, o regime legal estabelecido a propósito do conflito de interesses cumpre uma tripla função[1]:

a) Defender a comunidade em geral, e os clientes de um qualquer Advogado em particular, de atuações menos lícitas e/ou danosas por parte de um Colega, conluiado ou não com algum ou alguns dos seus clientes;

b) Defender o próprio Advogado da possibilidade de, sobre ele, recair a suspeita de atuar, no exercício da sua profissão, visando qualquer outro interesse que não seja a defesa intransigente dos direitos e interesses dos seus clientes;

c) Defender a própria profissão, a Advocacia, do anátema que sobre ela recairia na eventualidade de se generalizarem este tipo de situações.

 

Assim, estipula o artigo 99º do EOA que:

a) O Advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária – cfr. n.º 1 da mencionada norma legal.

b) O Advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado – cfr. n.º 2 da mencionada norma legal.Trata-se de evitar que em causas distintas (isto é, sem qualquer conexão entre si) e pendentes, o Advogado seja simultaneamente a favor de um constituinte numa delas e contra ele noutra.

c) O Advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes – cfr. n.º 3 da mencionada norma legal.
Este impedimento pressupõe que o Advogado já representa um cliente num determinado litígio e este preceito legal impede-o de aceitar o patrocínio de um novo cliente para o representar no mesmo litígio, se este tiver um interesse conflituante com aquele outro.

d) Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o Advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes, no âmbito desse conflito – cfr. n.º 4 da mencionada norma legal.

e) O Advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente – cfr. n.º 5 da mencionada norma legal.

 

Por fim, estipula a mencionada norma legal que, quando o Advogado exerce a sua atividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, as mencionadas situações de impedimento para o patrocínio se aplicam quer à associação quer a cada um dos seus membros – cfr. n.º 6 da mencionada norma legal.

 

Vejamos então.

 

Num primeiro momento, a questão que se coloca é a de saber se, a circunstância de (…), progenitora do menor (…), ser empregada doméstica de (…), só por si e ipso facto, impede o Senhor Dr. (…) de, no âmbito dos processos de promoção e proteção n.ºs (…) e (…), ser mandatário, respetivamente, de (…) e (…). 

 

E não podemos deixar de responder negativamente à questão colocada. Bastará, para tanto, atentar no quadro normativo que acabamos de traçar.

 

De facto, estando em causa dois processos de promoção e proteção distintos e sem qualquer conexão material e/ou subjetiva, não vislumbramos – e, mais uma vez enfatize-se, do ponto de vista estritamente objetivo -, como possa existir qualquer impedimento na assunção dos dois mandatos.

 

Sem prejuízo do exposto, não se poderá olvidar que a matéria do conflito de interesses resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão. O que significa que a matéria do conflito de interesses é, também, uma questão de consciência do próprio Advogado, não podendo ser reduzida a premissas puramente objetivas.

 

O que equivale a dizer que, ainda que do ponto de vista objetivo não exista qualquer impedimento na assunção de determinado (s) mandato (s), caberá sempre ao Advogado avaliar e formular um juízo de consciência – quer ab initio quer durante o decurso do (s) mandato (s), nesta última hipótese, se em concreto tal se justificar -, sobre se a assunção daquele (s) não colidirá com os deveres que devem nortear o exercício da profissão e cujo cumprimento escrupuloso garante a dignidade e o prestígio da profissão.

 

Outra conclusão não se poderia tirar dos princípios da independência e da confiança, enquanto princípios basilares da profissão.

 

E, diga-se que, só o Advogado estará em posição de fazer essa avaliação.

 

É este, s.m.o., o nosso entendimento quanto à questão que nos foi colocada.

 

Lisboa, 22 de junho de 2017.

 

A Assessora Jurídica do CRL
Sandra Barroso

 

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados,

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 22 de junho de 2017.

  

O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins

 

[1] Cfr. Parecer do Conselho Regional de Lisboa n.º 6/02, aprovado em 16.10.2002, e no qual foi relator o Senhor Advogado Dr. João Espanha.

Sandra Barroso

Topo