Pareceres do CRLisboa

Consulta 9/2019

 CONSULTA 9/2019

 

Questão

 

O Exmo. Senhor r. (…), Ilustre Advogado, veio solicitar a emissão de Parecer, nos termos e com os fundamentos que passamos a enunciar, ainda que de forma perfunctória.

 

Por despacho proferido em (…), o Il. Colega passou à situação de reforma ao abrigo disposto no artigo 159.º, n.º 1, alínea b) do Estatuto dos Militares das Forças Armadas à data em vigor[1].

 

Mediante denúncia apresentada em (…), a Caixa Geral de Aposentações tomou conhecimento de que o Il. Colega consta da lista de Advogados que integram o Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais (SADT).

 

Por entender que, ssim sendo, o Il. Colega se encontra abrangido pelo regime das incompatibilidades previsto no artigo 78.º do Estatuto da Aposentação, foi o Il. Colega notificado para esclarecer se, efetivamente, presta serviços no âmbito do SADT e, na afirmativa, desde quando “para efeitos de promover o reembolso das pensões indevidamente abonadas”.

 

Em sequência, veio o Il. Colega solicitar a emissão de parecer sobre a situação descrita, enfatizando que “É meu entendimento que não sou titular de funções públicas, no sentido em que, em si mesma e no seu núcleo distintivo, a profissão não corresponde ao exercício de função pública, mas antes ao desempenho de uma actividade privada (de interesse público) (...)”.

 

 

Competência material do Conselho Regional de Lisboa

 

Nos termos do disposto no artigo 54.º, n.º 1, alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro (doravante apenas EOA), compete aos Conselhos Regionais pronunciarem-se sobre as questões de carácter profissional que se suscitem no âmbito da sua competência territorial.

 

A competência consultiva do Conselho Regional de Lisboa está, assim, limitada às questões inerentemente estatutárias, isto é, as que decorrem dos princípios, regras, usos e praxes que regulam e orientam o exercício da profissão, maxime as que decorrem das normas do Estatuto e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por Lei à Ordem dos Advogados.

 

Resulta com meridiana clareza que a situação descrita pelo Il. Colega reveste, primacialmente, natureza estritamente jurídica. Pelo que, num primeiro momento tenderíamos a concluir, e diga-se que de forma precipitada, que o Conselho Regional de Lisboa não teria competência (material) para se pronunciar sobre a questão sub judice.

 

Não obstante, se olharmos com minúcia para a fundamentação que subjaz à pronúncia que nos foi solicitada, inexoravelmente concluímos que já consubstanciará uma questão profissional subsumível ao normativo legal contido no artigo 54.º, n.º 1, alínea f) do EOA, sabermos se o Advogado no exercício da profissão e, em particular, no exercício do patrocínio oficioso, está, ou não, no exercício de funções públicas.

 

Neste conspecto, e no estrito cumprimento do princípio da legalidade a que estamos vinculados na nossa atuação, será este, precisamente, o objeto da nossa pronúncia.

 

Opinião

 

Porque não despiciendo, considerando aquela que será a linha de raciocínio do Parecer que nos propomos emitir, começaremos por discorrer, ainda que de forma breve, sobre a natureza jurídica da Ordem dos Advogados.

 

Consabidamente, a Ordem dos Advogados, enquanto associação pública profissional representativa dos profissionais que exercem a Advocacia, integra a administração autónoma do Estado de base associativa (com assento constitucional desde a revisão constitucional de 1982) - cfr. artigo 267.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa e artigo 1º do EOA.

 

A Ordem dos Advogados, enquanto pessoa coletiva de direito público[2], tem determinados poderes e direitos, para prossecução das suas funções públicas, dos quais destacamos o poder de emitir decisões unilaterais de autoridade (cfr. artigo 6.º, n.º 3 do EOA); o poder regulamentar (cfr. artigo 3.º, alínea c) – 2ª parte); o poder sancionatório (cfr. artigos 14.º, n.º 4 e 91.º, alínea e); e o poder disciplinar (cfr. artigo 3.º, alínea g).

 

A natureza pública da Ordem dos Advogados advém-lhe precisamente do facto de a associação profissional não nascer do direito de associação que a lei, em geral, reconhece aos particulares, mas antes consubstancia uma devolução de poderes do Estado a uma pessoa coletiva, confiando aos próprios interessados (membros dessa mesma associação) a disciplina e a defesa da sua profissão.

 

Enquanto associação pública profissional, a Ordem dos Advogados é uma associação de sujeitos privados que integram uma pessoa coletiva pública. E esses sujeitos privados são, precisamente, os Advogados que exercem uma atividade privada de elevadíssimo interesse público. Pois que, para além dos interesses privados, o Advogado serve o interesse público na medida em que participa, desempenhando uma função essencial, na realização da Justiça.

 

É precisamente isso que se procura salvaguardar, desde logo a nível constitucional, quando o artigo 208º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “Patrocínio forense”, dispõe que “A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça (sublinhado nosso).

 

A Advogado é, assim, acometido pela Constituição e pela lei ordinária, de uma verdadeira «missão de interesse público», competindo-lhe, designadamente:

- Defender o Estado de direitos e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos;

- Pugnar pela boa aplicação das leis;

- Colaborar na administração da justiça e pugnar pelo seu rápido funcionamento;

- Assegurar o acesso ao direito nos termos da Constituição, como defensores e patronos;

- Opinar sobre os projetos de diplomas legislativos que interessem ao exercício da advocacia e o patrocínio judiciário em geral;

- Propor alterações legislativas relevantes para o sistema de justiça.

(v. artigos 3.º nas suas diversas alíneas e 90.º, n.º 1, ambos do Estatuto da Ordem dos Advogados).

 

São, assim, os Advogados garantes de importantes funções do Estado com consagração constitucional como é o “acesso ao direito e aos tribunais” e o “patrocínio judiciário” previstos no artigo  20.º, n.ºs 1 e 2 da Lei Fundamental e que constituem “elemento essencial da administração da justiça” como resulta do artigo 208.º da mesma Lei, sendo-lhes com esse propósito conferidas garantias e imunidades no exercício do mandato forense (artigo 154.º, n.º 2 do Código de Processo Civil), num claro e inequívoco reconhecimento da relevante função social de interesse público da profissão.

 

Atente-se, aliás, na redação do artigo 13.º da Lei n.º 62/1013, de 26 de agosto - Lei da Organização do Sistema Judiciário -, que, sob a epígrafe “Imunidade do mandato conferido a advogados” preceitua o seguinte:

“1 — A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício dos atos próprios de forma isenta, independente e responsável, regulando-os como elemento indispensável à administração da justiça.

2 — Para garantir o exercício livre e independente de mandato que lhes seja confiado, a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz, designadamente:

a) O direito à proteção do segredo profissional;

b) O direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de atos conformes ao estatuto da profissão;

c) O direito à especial proteção das comunicações com o cliente e à preservação do sigilo da documentação relativa ao exercício da defesa;

d) O direito a regimes específicos de imposição de selos, arrolamentos e buscas em escritórios de advogados, bem como de apreensão de documentos”.

 

Dos transcritos dispositivos legais se infere que ao Advogado incumbe uma relevante e abrangente função social de interesse público, destacando-se o seu papel de defensor dos direitos, liberdades e garantias; de colaborador na administração da justiça, bem como de garante do acesso ao direito e aos tribunais e do patrocínio judiciário, ambos constitucionalmente consagrados.

 

Portanto, inelutavelmente, o Advogado, enquanto profissional liberal que é, exerce funções privadas de relevante interesse público, de forma independente, ainda que no exercício do patrocínio oficioso. É o que decorre quer da Lei Fundamental, quer da lei ordinária.

 

Por fim, uma pequena nota. Olhando apenas para o Estatuto chegaríamos à mesma conclusão por interpretação a contrario sensu do regime das incompatibilidades fixado no seu artigo 82.º, na medida em que esta norma legal considera incompatível com o exercício da Advocacia, nomeadamente, o exercício de qualquer cargo, função ou atividade que revista natureza pública e/ou que corresponda ao exercício de funções públicas, justamente porque a assunção desses cargo, função ou atividade por parte do Advogado em simultâneo com o exercício da Advocacia, poria em causa (nomeadamente) a independência profissional do Advogado enquanto princípio estruturante da profissão.

 

Em suma, dúvidas não subsistem de que Advogado no exercício da sua atividade profissional, e ainda que integrado no âmbito do Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais, está, sempre e em qualquer circunstância, no exercício de funções estritamente privadas, muito embora participe na administração da justiça.

 

Notifique-se o Il. Colega pelo meio mais expedito.

 

Lisboa, 1 de março de 2019.

 

O Vice-Presidente do Conselho Regional de Lisboa

(por delegação de poderes de 23 de fevereiro de 2017)
João Massano

 

[1] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 236/99, de 25 de junho.

 

[2] Cfr. Artigo 1.º, n.ºs 1 e 2 do Estatuto e artigo 4.º, n.º 1 do Regime Jurídico de Criação, Organização e Funcionamento das Associações Públicas Profissionais, aprovado pela Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro.

João Massano

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