Pareceres do CRLisboa

Consulta 11/2019

 

CONSULTA 11/2019

 

Questão

 

Através de comunicação escrita rececionada nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados em (…), o Exmo. Senhor Juiz Desembargador Relator da (..) Secção Cível do Tribunal da Relação de (…), veio solicitar ao Conselho Regional de Lisboa a emissão de parecer, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135.º, números 3 e 4 do Código de Processo Penal (CPP), aplicável ex vi artigo 417.º, n.º 4 do Código de Processo Civil (CPC).  

 

O incidente de quebra do segredo profissional foi suscitado pelo Tribunal no âmbito da ação para cobrança de honorários pendente no Tribunal (…), sob o n.º (…), quanto aos Exmos. Senhores Dra. (…), Dra. (…) e Dr. (…), Ilustres Advogados. 

 

Os Senhores Advogados foram arrolados como testemunhas pela Autora, a Senhora Dra. (…), Ilustre Advogada.

 

Chamados a depor, os Senhores Advogados escusaram-se a depor com base no dever de sigilo.

 

As escusas foram julgadas legítimas pela Exma. Senhora Juíza de Direito titular do processo n.º (…), que, em sequência, determinou “(…) vão os autos ao Tribunal da Relação de (…), a fim de ser devidamente decidida a quebra ou não do sigilo profissional invocado”.

 

Recebido o incidente, veio o Tribunal da Relação de (…) solicitar o parecer do Conselho Regional de Lisboa nos termos e para o efeito previsto no artigo 135.º, n.º 4 do CPP.

 

 

Entendimento do Conselho Regional de Lisboa

 

Nunca é de mais referir o carácter fundamental e verdadeiramente basilar que o dever de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia. Mas não só. Trata-se de dever de primordial importância para o reconhecimento da plenitude do Estado do Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.

 

É que o Estado de Direito Democrático não só exige um poder judicial independente, como também pressupõe e postula o exercício de uma Advocacia livre, independente e responsável.

 

Ora, condição essencial ao exercício da profissão é a absoluta confiança que deve presidir à relação Advogado/Cliente, fundada, naturalmente, no princípio do respeito pelo segredo profissional, a que a lei e a Constituição asseguram, com latitude, a adequada tutela.

 

Transcendendo o âmbito da relação Advogado/Cliente, o segredo profissional reveste-se ainda de uma dimensão de ordem pública, tal como resulta claro do regime legal constante do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor (aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro). E isto porque o sigilo tem outras dimensões e outros beneficiários para além do Cliente, devendo o Advogado ser, nas suas múltiplas relações sociais e profissionais, merecedor de confiança e isenção. Não apenas o Advogado individualmente considerado, como profissional liberal que é, mas como integrante de uma profissão com dignidade constitucional e com relevante e reconhecido interesse público.

 

Por isso convirá realçar, de forma plenamente convicta, que se está na presença de um dever que constitui um princípio estruturante da Advocacia, assente não só na tutela dos interesses particulares que lhe possam estar subjacentes, mas adquirindo igualmente uma dimensão de ordem pública.

 

Mais do que um dever do próprio Profissional, “o sigilo é um dever de toda a classe, é condição da plena dignidade do Advogado bem como da Advocacia”[1].

 

Contudo, tal não significa que o dever de segredo seja absoluto. Situações existem em que o levantamento do dever de guardar sigilo profissional se poderá, excecionalmente, justificar.

 

Assim, e para o efeito, estabelece a lei dois mecanismos que se diferenciam desde logo a propósito do sujeito que tem legitimidade para impulsionar o levantamento do segredo profissional:

  1. A dispensa do segredo profissional, a qual é solicitada pelo Advogado adstrito ao dever de segredo ao Presidente do Conselho Regional competente, sendo concedida, caso se verifiquem preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 92.º, n.º 4 do EOA;
  2. O incidente processual de quebra de sigilo profissional, previsto no artigo 135.º do Código de Processo Penal [2], tendo legitimidade para o desencadear qualquer das partes em juízo ou a autoridade judiciária.

 

Primeiro a lei processual penal e depois a lei processual civil consagram um verdadeiro entorse na regra cimeira da legitimidade exclusiva do detentor do segredo para requerer o seu levantamento.

 

Assim, dispõe o artigo 417.º n.º 1 do CPC que todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade.

 

Contudo, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 3 da referida normal legal, considera-se legítima a recusa se a obediência importar violação do sigilo profissional.

 

E, quanto ao regime desta recusa, o artigo 417.º, n.º 4 do CPC limita-se a remeter para a norma do processo penal e para a sua disciplina específica.

 

A decisão da quebra de sigilo é tomada, com audição prévia da Ordem dos Advogados, audição essa que recai, inevitavelmente, sobre o preenchimento ou não preenchimento das condições de que depende a quebra do sigilo profissional, ou seja, sobre a existência de um interesse superior aos interesses que se visa proteger com o dever de segredo.

 

Vejamos então.

 

Antes de mais, haverá que enfatizar que, no caso vertente, também não nos suscita qualquer dúvida a sujeição ao dever de segredo profissional por parte dos Senhores Advogados Dra. (…), Dra. (…) e Dr. (…).

 

Feito este pequeno parêntese, prossigamos a nossa análise.

 

Para que se possa concluir pela existência de um interesse preponderante, ou seja, de um valor superior ao dever/direito de sigilo profissional, importa verificar se, em concreto e nos termos em que o pedido de quebra se encontra fundado, o depoimento com quebra do segredo profissional é absolutamente necessário para a descoberta da verdade material.

 

No que à absoluta necessidade do depoimento diz respeito, haverá, nos termos do Regulamento de Dispensa do Segredo Profissional – Regulamento n.º 94/2006, de 12 de junho, DR, II Série, ainda em vigor por força do disposto no artigo 3.º, n.º 7 da lei preambular do Estatuto -, que verificar se o depoimento do Advogado com quebra do sigilo se reveste, nomeadamente, de:

  • Imprescindibilidade: o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser indispensável (ou seja, imprescindível, e não meramente útil) face ao objetivo de prova visado;
  • Essencialidade: o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser absolutamente determinante;

 

  • Exclusividade: pressupondo este requisito a inexistência de qualquer outro meio de prova para além do meio de prova sujeito a sigilo.

 

Ora, para que se possa aferir da absoluta necessidade nos termos acabados de enunciar e, mormente, da sua imprescindibilidade e essencialidade, importa prima facie saber a que facto ou acervo de factos o depoimento com quebra do segredo profissional é pretendido.

 

Este é, quanto a nós, o ponto de partida da pronúncia a emitir nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135.º, n.º 4 do CPP. De facto, só concatenando a factualidade pretendida ver provada com os demais meios de prova existentes no processo, no contexto daquele que é o objeto do litígio e são os temas da prova (quando enunciados), é possível sustentar, factual e juridicamente, essa mesma pronúncia.

 

Sucede que os elementos que foram colocados à nossa disposição não nos permitem aferir a factualidade que constituirá o âmbito dos depoimentos a prestar pelos Senhores Advogados com quebra do segredo profissional, o que, de per si, inquina a possibilidade de emitir pronúncia nos termos e para o efeito previsto no artigo 135.º do CPP, aplicável ex vi artigo 417.º, n.º 4 do CPC.

 

Lisboa, 19 de julho de 2019.

 

A Assessora Jurídica do CRL
Sandra Barroso

 

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados.

 

Nestes termos, entendo que, tal como se encontra recortado o pedido de audição deste Conselho Regional, os elementos de que dispomos não nos permitem aferir da existência, ou não, de um interesse preponderante ao sigilo que leve ao sacrifício deste dever.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 19 de julho de 2019.

 

O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins

 

[1] Bastonário Dr. Augusto Lopes Cardoso, in “Do segredo profissional na Advocacia”, Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, 1998, p. 17.

[2] Também aplicável ao processo civil por remissão do artigo 417.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.

 

Sandra Barroso

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