Pareceres do CRLisboa

Consulta 17/2019

 

CONSULTA 17/2019

 

Questão

 

Mediante comunicação escrita rececionada nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados no dia (…), a Digníssima Procuradora Adjunta da (…) Secção do Departamento de Investigação e Ação Penal da (…), titular do processo de inquérito n.º (…), veio, ao abrigo do disposto na alínea f), do n.º 1, do artigo 54.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, solicitar a emissão de Parecer quanto à questão cujo enquadramento factual é, em síntese, o seguinte:

 a) No dia 18 de fevereiro de 2019, o arguido foi sujeito a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, tendo sido assistido pela Exma. Senhora Dra. (…), Ilustre Advogada.

b) O arguido ficou sujeito à medida de coação de prisão preventiva por existirem fortes indícios da prática de um crime de violência doméstica perpetrado contra (…).


c) Em 28 de fevereiro de 2019, a Exma. Senhora Dra. (…), Ilustre Advogada, substabeleceu sem reserva os poderes que lhe haviam sido conferidos pelo arguido na Exma. Senhora Dra. (…), Ilustre Advogada.

d) No dia 12 de março de 2019, a ofendida (…) prestou declarações na PSP, fazendo-se acompanhar pela Exma. Senhora Dra. (…), Ilustre Advogada, que no ato juntou procuração.

e) Ulteriormente, a Exma. Senhora Dra. (…), Ilustre Advogada, renunciou ao mandato que, afirma, “inadvertidamente” assumiu em representação da ofendida, pois que já representava o arguido “nos presentes autos, por procuração anteriormente junta e que assim se manterá”.

 

Neste contexto, vem a Digníssima Procuradora Adjunta solicitar a emissão de parecer no sentido de ver esclarecida a questão de saber se a Exma. Senhora Dra. (…), Ilustre Advogada, pode continuar a patrocinar o arguido ou se, ao invés, deve renunciar ao mandato que por este lhe foi conferido.

 

Opinião

 

Como questão prévia diremos que não temos dúvidas de que a questão colocada à apreciação deste Conselho se subsume, do ponto de vista objetivo, a uma “questão de carácter profissional”, nos termos do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 54.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro (doravante apenas EOA), que define a competência material do Conselho.

 

E dizemos do ponto de vista objetivo porque considerando aquela que é a competência material do Conselho, apenas emitiremos pronúncia chamando à colação as concretas normas e princípios aplicáveis, sem que tal consubstancie um qualquer juízo valorativo sobre a conduta da Exma. Senhora Dra. (…), Ilustre Advogada, a qual, obviamente, não nos cabe, nesta sede, sindicar. Vejamos então.

 

A factualidade trazida ao conhecimento deste Conselho contende, primacialmente, com a norma legal contida no artigo 99.º do EOA, onde estão plasmadas várias situações em que existe uma situação de impedimento para o exercício do mandato.  

 

A matéria do conflito de interesses resulta dos princípios da independência, da confiança e da dignidade da profissão e constitui expressa manifestação do princípio geral estatuído no artigo 89.º do EOA, segundo o qual o “advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros”.

 

Sintetizando, é o seguinte o âmbito do normativo legal aqui chamado à colação:

a) O Advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade, ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado, a parte contrária – cfr. n.º 1 da mencionada norma legal.
Esta norma destina-se a evitar situações de patrocínio por parte de um Advogado em questões relativamente às quais já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa, do ponto de vista dos direitos a defender pelo Advogado e das realidades que lhes estão materialmente subjacentes, com outras e que represente ou tenha representado a parte contrária.

b) O Advogado deve recusar o patrocínio contra quem, noutra causa pendente, seja por si patrocinado – cfr. n.º 2 da mencionada norma legal.
Trata-se de evitar que em causas distintas, isto é, sem qualquer conexão entre si, e pendentes, o Advogado seja simultaneamente a favor de um constituinte numa delas e contra ele noutra. O conceito de “causa” deve ser entendido como abrangendo qualquer assunto pendente confiado ao Advogado, relacionado ou não com litígios judiciais. O elemento teleológico do regime estatuído no normativo legal aqui chamado à colação assim o exige e impõe.

c) O Advogado não pode aconselhar, representar ou agir por conta de dois ou mais clientes, no mesmo assunto ou em assunto conexo, se existir conflito entre os interesses desses clientes – cfr. n.º 3 da mencionada norma legal.
Este impedimento pressupõe que o Advogado já representa um cliente num determinado litígio e este preceito legal impede-o de aceitar o patrocínio de um novo cliente para o representar no mesmo litígio, se este tiver um interesse conflituante com aquele outro.

d) Se um conflito de interesses surgir entre dois ou mais clientes, bem como se ocorrer risco de violação do segredo profissional ou de diminuição da sua independência, o Advogado deve cessar de agir por conta de todos os clientes no âmbito desse conflito – cfr. n.º 4 da mencionada norma legal.

e) O Advogado deve abster-se de aceitar um novo cliente se tal puser em risco o cumprimento do dever de guardar sigilo profissional relativamente aos assuntos de um anterior cliente, ou se do conhecimento destes assuntos resultarem vantagens ilegítimas ou injustificadas para o novo cliente – cfr. n.º 5 da mencionada norma legal.

 

Traçado o quadro legal que, em parte, sustentará a pronúncia a emitir, vejamos agora o enquadramento factual que subjaz à pronúncia solicitada.  

 

Inelutavelmente, um Advogado não deve, no mesmo processo de inquérito e em simultâneo, representar o arguido e o ofendido, pois que tal consubstancia uma situação de verdadeiro conflito de interesses que integra a previsão do artigo 99.º, n.ºs 1 - 1ª parte, e 3 do EOA, na medida em que tal situação põe em causa, designadamente, os princípios da isenção, da dignidade, da lealdade e da proteção do valor da confiança, o dever de sigilo, elementos basilares e fundamentais no complexo das relações que o Advogado estabelece no exercício da sua profissão, mormente com o seu cliente.

 

Aliás, se atentarmos na posição processual e substantiva (contraditórias) de cada um dos sujeitos processuais em causa – arguido e ofendido -, o conflito de posições e, por conseguinte, o conflito de interesses é latente e altamente potenciador da violação do dever de sigilo contido no artigo 92.º do EOA.

 

Portanto, inexoravelmente, a Exma. Senhora Dra. (…), Ilustre Advogada, não devia, quer do ponto de vista processual, quer do ponto de vista dos princípios que norteiam o exercício da profissão, exercer os dois mandatos no processo de inquérito em curso, um a favor do arguido e outro a favor da ofendida, ainda que de forma subsequente.  

 

Contudo e, não obstante, ter renunciado ao mandato conferido pela ofendida, poderá, ainda assim, a Exma. Senhora Dra. (…), Ilustre Advogada, manter o patrocínio do arguido?

 - Entendemos que não deve.

 

Prima facie, e acima de tudo, porque a norma legal contida no artigo 99.º, n.º 1 - 1ª parte prevê um impedimento a que a Exma. Senhora Dra. (…), Ilustre Advogada, assuma a representação da ofendida, constituindo, pelos mesmos motivos, um impedimento de manter a defesa do arguido. Ou seja, por força deste normativo legal, existe um impedimento claro e direto à manutenção da representação do arguido.

 

Inelutavelmente, os Advogados exercem uma atividade privada de elevadíssimo interesse público. Para além dos interesses privados, o Advogado serve o interesse público na medida em que participa, desempenhando uma função essencial, na realização da Justiça.

 

É precisamente isso que se procura salvaguardar, desde logo a nível constitucional, quando o artigo 208º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe “Patrocínio forense”, dispõe que “A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça (sublinhado nosso).

 

A Advogado é, assim, acometido pela Constituição, mas também pela lei ordinária- desde logo, o Estatuto e a Lei da Organização do Sistema Judiciário [1]-, de uma verdadeira “missão de interesse público”, já que ao Advogado incumbe uma relevante e abrangente função social de interesse público, destacando-se o seu papel de defensor dos direitos, liberdades e garantias, de colaborador na administração da justiça, bem como de garante do acesso ao direito e aos tribunais e do patrocínio judiciário, ambos constitucionalmente consagrados.

 

E, enquanto elemento essencial à administração da justiça, o Advogado deve estar, sempre e em qualquer circunstância, acima de qualquer suspeita, o que, impõe e exige que o Advogado exerça a sua atividade no rigoroso cumprimento daqueles que são os seus princípios estruturantes e norteadores da profissão, plasmados no Estatuto.

 

Neste conspecto, entendemos que razões de preservação da isenção, da independência, de salvaguarda do dever de sigilo, de decoro, de probidade, de dignidade e prestígio da profissão aconselham que a Exma. Senhora Dra. (…), Ilustre Advogada, renuncie (também) à defesa do arguido.

 

Notifique-se em simultâneo a Ilustre Advogada e a Digníssima Procuradora.

 

Lisboa, 30 de abril de 2019.

 

O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins

 

[1] Aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.

 

António Jaime Martins

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