Pareceres do CRLisboa

Consulta 28 /2019

CONSULTA 28/2019

 

Questão

 

Mediante comunicação escrita rececionada nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados em (…) (entrada com o número de registo (…), o Exmo. Senhor Dr. (…), Ilustre Advogado, titular da cédula profissional n.º (…), veio solicitar a emissão de parecer ao abrigo do disposto no artigo 54.º, n.º 1, alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados, quanto à questão cujo enquadramento factual passaremos a explanar.

 

Corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de (…), o processo n.º (…), em que o Ilustre Colega é mandatário do arguido (…).

 

Por acórdão de (…), o arguido foi absolvido do crime pelo qual se encontrava pronunciado.

 

Deste acórdão e de quatro decisões interlocutórias foi interposto recurso pela assistente, a sociedade comercial denominada (…).

 

Por acórdão de (…), proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, foram julgados procedentes os recursos interlocutórios n.ºs 2 e 4.

 

O recurso interlocutório n.º 2 teve por objeto a junção aos autos de um email enviado em 3 de março de 2006, pelo ora arguido ao seu Advogado, no caso, o Ilustre Colega.

 

O recurso interlocutório n.º 4 teve por objeto a inquirição, requerida pela assistente, do Ilustre Colega.

 

Reaberta a audiência em 1ª instância em (…), o Ilustre Colega escusou-se a depor, invocando o segredo profissional e a circunstância de ser mandatário constituído no processo.

 

Suscitado o incidente de quebra do segredo profissional, o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de (…), e sem audição da Ordem dos Advogados, rectius, do Conselho Regional de Lisboa -, ordenou a inquirição do Ilustre Colega, com quebra do sigilo profissional.

 

Notificado pelos Serviços do Conselho para esclarecer em que contexto o email de 3 de março de 2006, que lhe foi dirigido pelo constituinte e ora arguido, se encontra junto aos autos, veio o Ilustre Colega informar que o email em causa foi junto aos autos pela assistente.

 

É, portanto, este o enquadramento factual (e que para nós releva para a pronúncia a emitir a final) que subjaz ao pedido de parecer solicitado.

 

Entendimento do Conselho Regional de Lisboa

 

O patrocínio forense tem consagração no artigo 208.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), dispondo que “A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça”, num claro e inequívoco reconhecimento da relevante função social de interesse público da profissão.

 

A preservação do segredo profissional é o grande sustentáculo dessa função, pois é condição da confiança e segurança estabelecidas nas relações com os clientes, mas, sobretudo, na dimensão pública e social que a Advocacia tem.

 

Trata-se de um dever de primordial importância para o reconhecimento da plenitude do Estado do Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da CRP. É que o Estado de Direito Democrático não só exige um poder judicial independente, como também pressupõe e postula o exercício de uma Advocacia livre, independente e responsável.

 

Atente-se, na redação do artigo 13.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/1013, de 26 de agosto –, com a epígrafe “Imunidade do mandato conferido a advogados”:

“Artigo 13.º

 

Imunidade do mandato conferido a advogados

1 — A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício dos atos próprios de forma isenta, independente e responsável, regulando-os como elemento indispensável à administração da justiça.

2 — Para garantir o exercício livre e independente de mandato que lhes seja confiado, a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz, designadamente:

  1. a) O direito à proteção do segredo profissional;
  2. b) O direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de atos conformes ao estatuto da profissão;
  3. c) O direito à especial proteção das comunicações com o cliente e à preservação do sigilo da documentação relativa ao exercício da defesa;
  4. d) O direito a regimes específicos de imposição de selos, arrolamentos e buscas em escritórios de advogados, bem como de apreensão de documentos”.

 

Se ao Advogado não fosse reconhecido o direito de guardar para si, e só para si, o conhecimento de tudo quanto o seu constituinte, diretamente ou por via de terceiros, lhe confiou, ou não fosse obrigado a reservar a informação que obteve no exercício do mandato, então não haveria Advocacia livre e independente, transformando-se os Advogados em testemunhas de defesa e desse modo se desvirtuando a sua função na administração da Justiça e no acesso ao direito.

 

Vejamos então.

 

A situação que nos foi reportada pelo Ilustre Colega impõe e exige a abordagem de três pontos, quanto a nós, nevrálgicos, a saber:

  • Decisão do incidente processual de quebra do segredo profissional sem audição do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados;
  • Junção aos autos do email datado de 3 de março de 2006;
  • Inquirição do Ilustre Colega.

 

Consabidamente, o artigo 135.º do Código de Processo Penal (doravante apenas CPP) contempla duas hipóteses, a prevista no n.º 2 e a prevista no n.º 3.

 

A hipótese prevista no n.º 2 contende com a legitimidade ou ilegitimidade da escusa, isto é, saber se o Advogado tem ou não direito à escusa, saber se existe ou não sigilo, se o Advogado está a invocar criteriosa e corretamente que aquilo sobre que se pretende o seu depoimento é matéria sigilosa que lhe imponha o dever de silêncio.

 

A prevista no n.º 3, é o poder/dever de fazer cessar o legítimo direito à escusa por se entender subsistirem valores superiores ao dever/direito de sigilo.

 

Diz-nos o n.º 4 do normativo legal em apreço que “Nos casos previstos nos n.ºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e para os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável”.

 

Ora, se é verdade que a interpretação das normas jurídicas não deve cingir-se à letra da lei, pois que existem outros fatores interpretativos a ser ponderados nessa tarefa, a interpretação deve ter, sempre, como ponto de partida a letra da lei. Isto é o que decorre da norma basilar em matéria de interpretação da lei, ínsita no artigo 9.º do Código Civil.

 

Assim, interpretando o disposto no artigo 135.º, n.º 4 do CPP, outra conclusão não se pode retirar que não seja a de que o Tribunal da Relação de Lisboa deveria ter solicitado parecer prévio ao Conselho Regional de Lisboa. De facto, a letra da lei, a forma como a norma se encontra redigida, não nos permite, de todo, concluir tratar-se de uma mera faculdade do Tribunal.

 

A audição do Conselho Regional de Lisboa devia ter tido lugar antes da decisão sobre a existência de interesse preponderante, como resulta expressa e diretamente da remissão no n.º 4 para o n.º 3 do artigo 135.º do CPP, e não tendo sido ouvido Conselho Regional de Lisboa, nos termos e para o efeito previsto no mencionado normativo legal, existe uma irregularidade, invocável nos termos gerais. 

 

Coisa distinta e que em nada contende com a questão ora focada, porque, evidentemente, substancial e juridicamente diferente, é saber se o parecer emitido nos termos e para o efeito previsto no n.º 4 tem, ou não, carácter vinculativo. E, neste ponto, é evidente que o parecer emitido nos termos e para o efeito do disposto no artigo 135.º, n.º 4 do CPP não vincula o Tribunal, porquanto, e tal como resulta, desde logo, do normativo ínsito no artigo 202.º, n.º 1 da CRP, é aos Tribunais que compete em exclusivo o exercício da função jurisdicional.

 

Aqui chegados, vejamos agora a questão do email datado de 3 de março de 2006.

 

De acordo com a informação que nos foi facultada, a comunicação em causa foi junta aos autos pela assistente.

 

Originalmente, a comunicação eletrónica de 3 de março de 2006, estava sujeita a sigilo, sendo confidencial. E estava-o, precisamente, por estar em causa uma comunicação que tinha como remetente o arguido/cliente e como destinatário o seu Advogado, no caso, o Ilustre Colega. De facto, é no âmbito da relação Advogado/cliente que o dever de sigilo se manifesta em toda a sua amplitude.

 

Portanto, inelutavelmente, estamos perante uma comunicação protegida por um regime especial (e muito específico) de confidencialidade, precisamente o previsto no artigo 92.º, n.º 1 do EOA.

 

Apenas os seus remetente e destinatário podiam (e deviam) ter acesso ao seu conteúdo. O que implica que a sua revelação lícita em juízo apenas poderia ocorrer de acordo com os mecanismos que a lei prevê para o efeito. O que, no caso em análise, não sucedeu.

 

Atendendo à circunstancia de a comunicação em causa ser per se confidencial, o facto de ter chegado às mãos da assistente por razões alheias ao seu remetente e ao seu destinatário tem implicações do ponto de vista jurídico, mormente, no que à licitude da sua revelação e utilização em juízo respeita.

 

Tal como decorre do disposto no artigo 75.º, n.º 1 do Código Civil, nas cartas-missivas confidenciais – como é o caso -, não é lícito ao destinatário aproveitar os elementos de informação que ela tenha levado ao seu conhecimento.

 

E se existe esta reserva ou limitação de uso relativamente ao destinatário, por maioria de razão, ela existirá relativamente a quem não é destinatário e que apenas teve conhecimento da informação porque alguém deu um uso indevido à carta-missiva ou a ela teve acesso indevido. Nestes casos, o conhecimento do seu conteúdo não pode ser considerado um ato lícito.

 

Destarte, é nosso entendimento que a comunicação em causa não pode ser valorada como meio de prova lícito, pois que a apresentação das provas em juízo pressupõe que as mesmas tenham chegado à parte que as apresenta do modo lícito.

 

E de maior monta se reveste esta questão, quando olhamos para o concreto âmbito do depoimento a prestar pelo Ilustre Colega, que ater-se-á, justamente, ao assunto do email de 3 de março de 2006.

 

Dito por outras palavras, estando a situação que, a montante, suscitou a inquirição do Ilustre Colega, ferida de ilicitude, em bom rigor, não deveria ter sido suscitada a questão da sua inquirição. Precisamente porque aquela ilicitude contamina necessariamente todos os atos que se lhe seguiram e que, direta ou indiretamente, se reportam ao assunto do email de 3 de março de 2006.

 

E tal seria mais do que suficiente para inquinar a possibilidade de o Ilustre Colega ser ouvido como testemunha.  

 

Mas mais. Sendo o Ilustre Colega mandatário no processo não pode, em circunstância alguma, nesse mesmo processo, vir a assumir a qualidade de testemunha. Existe uma impossibilidade objetiva que irremediavelmente obsta a que o mesmo possa ser ouvida como testemunha, impossibilidade que se mantém em toda a sua extensão ainda que o Ilustre Colega venha a renunciar ao mandato que lhe foi conferido pelo arguido.

 

É entendimento, ao que sabemos unânime, dos diversos órgãos da Ordem que o Advogado não pode, em circunstância alguma, depor em processo ou em qualquer apenso desse mesmo processo, caso intervenha ou tenha intervindo como Advogado constituído seja no processo principal, seja nalgum apenso, já que isso é incompatível com a dignidade do mandato forense e com o estatuto do Advogado enquanto participante na administração da justiça.

 

Muito embora inexista na lei processual penal adjetiva qualquer referência textual ao impedimento de um Advogado constituído mandatário no processo prestar depoimento na qualidade de testemunha, a inadmissibilidade e impossibilidade de tal depoimento decorre do princípio geral da não promiscuidade dos intervenientes, mas também de interesses de ordem pública.

 

Desde logo, Advogado e testemunha têm deveres processuais distintos.

 

A testemunha presta juramento e está obrigada a responder com verdade às perguntas que lhe são colocadas (cfr. artigo 132.º, n.º 1, alíneas b) e d) do CPP).

 

O Advogado, não obstante, participe na realização da justiça, encontra-se sempre condicionado pelo interesse da parte que representa. A relação entre o Advogado e o cliente deve fundar-se na confiança recíproca. Destarte, e sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas, o Advogado tem o dever de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente – cfr. artigo 97.º, n.º s 1 e 2 do Estatuto. Em suma, ao Advogado não é possível exercer as funções de testemunha tais quais se encontram definidas na lei.

 

A nosso ver, as razões que subjazem ao regime dos impedimentos e suspeições do Juiz e do Ministério Público ou mesmo das testemunhas (cfr. artigos 39.º, 40.º, 43º, 54.º, 132.º, 133.º, 134.º, todos do CPP), têm igual cabimento quanto à atuação do mandatário do arguido que, em termos jurídicos, se identifica com a do arguido, sob pena de, assim não ser, haver subversão do próprio sistema processual penal, quando foi o próprio legislador que teve a especial preocupação (e não apenas no direito processual penal) de delimitar claramente os campos de atuação dos que administram a justiça (juízes e advogados) e dos que auxiliam a justiça, como é o caso das testemunhas.

 

Se o legislador teve o especial cuidado de impedir que o Advogado que seja mandatário constituído do arguido possa acompanhar uma testemunha (cfr. artigo 132.º, n.º 5 do CPP), mal se compreenderia que, depois, na mesma pessoa, se pudesse reunir a qualidade de Advogado e testemunha.

 

Mas mais grave ainda. É que, a ser admitido o depoimento do Ilustre Colega, dois princípios basilares do nosso ordenamento jurídico poderiam, desde logo, perigar. A saber, o princípio da presunção da inocência do arguido previsto no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República, bem como o direito ao silêncio do arguido previsto nos artigos 61.º, n.º 1, alínea d), 141.º, n.º 4, alínea a) e 343.º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, já que desta forma obter-se-ia um depoimento privilegiado, decorrente, em termos puramente hipotéticos e abstratos, do patrocínio pelo Advogado de um seu cliente, arguido, ainda que à custa da relativização ou desvalorização de princípios fundamentais do nosso ordenamento jurídico.

 

Por outras palavras, com o depoimento em causa o Advogado declararia o que o arguido pode silenciar. A situação descrita poderia conduzir ao absurdo de, embora os arguidos tenham direito a manter o silêncio durante todo o processo penal, os Tribunais poderem ordenar a prestação de depoimento dos seus mandatários para, deste modo, obterem a prova de que necessitam para a sua condenação ou absolvição.

 

 

Pretender que um mandatário quebre um interesse, que é público, seria a nosso ver subverter todo o sistema processual penal, subvertendo os direitos daquele que, até à sentença com trânsito em julgado, beneficia da presunção da sua inocência.

 

Se é certo que o Advogado é um defensor da administração da justiça e dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos em geral, como aliás o são, e devem ser, os Tribunais, o seu papel é exercido na defesa cidadãos perante a justiça ou injustiça do Estado de Direito Democrático, pugnando pela boa e justa aplicação das leis, para o que a Lei fundamental lhe confere as necessárias imunidades.

 

EM SUMA:

 

Nestes termos, entendo que o Ilustre Colega, Dr. (…), não pode ser ouvido como testemunha e com quebra do segredo profissional, no âmbito do processo pendente no Tribunal Judicial da Comarca de (…), sob o n.º (…).

 

Primeiro, porque houve preterição de uma formalidade prévia à decisão sobre a existência de interesse preponderante, direta e expressamente imposta pela remissão no n.º 4 para o n.º 3 do artigo 135.º do Código de Processo Penal.

 

Segundo, porque o Ilustre Colega é nesse processo mandatário constituído do arguido (…) e, assim sendo, existe uma impossibilidade objetiva que irremediavelmente afasta a possibilidade de, nesse mesmo processo, ser ouvido como testemunha.

 

Terceiro, porque, estando a circunstância que despoletou a questão da audição do Ilustre Colega como testemunha nos autos ferida de ilicitude, esta contamina necessariamente todos os atos que se lhe seguiram e que, direta ou indiretamente, se reportam ao assunto do email de 3 de março de 2006, como é, precisamente, o caso do depoimento do Ilustre Colega. 

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 8 de julho de 2019.

 

O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins

António Jaime Martins

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