Pareceres do CRLisboa

Consulta 30 /2019

 Consulta  30/2019

 

Questão

 

Mediante requerimento que deu entrada nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados em (…), entrada com o número de registo (…), o Exmo. Senhor Dr. (…), Ilustre Advogado, portador da cédula profissional n.º (…), veio solicitar a emissão de parecer quanto à questão de saber se um Advogado que seja mandatário do assistente em processo penal pode, também e na fase de inquérito, acompanhar na respetiva inquirição, as testemunhas do assistente por si indicadas na queixa-crime apresentada.

 

Muito embora o Senhor Advogado Consulente coloque a questão em abstrato, a mesma reporta-se a um processo judicial em curso (que não identifica), como facilmente se alcança da comunicação que nos dirigiu.

 

Sem prejuízo, sublinha-se que, nos termos do disposto no artigo 54.º, n.º 1, alínea f) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro (doravante EOA), a competência material do Conselho Regional de Lisboa sobre as questões de ética ou deontologia profissional cinge-se, estritamente, às questões colocadas em abstrato e que não envolvam qualquer juízo valorativo sobre situações concretas. Pois que, não compete ao Conselho Regional apreciar as concretas condutas dos Senhores Advogados depois de as mesmas terem tido lugar.

 

Opinião

 

Por se mostrar útil para o raciocínio a desenvolver, começaremos por atentar no disposto no artigo 132.º, n.º 5 do Código de Processo Penal, segundo o qual não pode acompanhar testemunha, o Advogado que seja defensor do arguido no mesmo processo.

Não existe no Código de Processo Penal disposição similar a esta reportada ao Advogado que patrocine o assistente em processo penal.

 

Não respondendo o Código de Processo Penal diretamente à questão colocada, impõe-se verificar se a situação em análise poderá colocar em causa os princípios e valores que se pretendem salvaguardar com a fixação dos impedimentos consagrados no artigo 83.º, n.º 1 do EOA, ou quaisquer outros valores fundamentais da profissão, designadamente os estatuídos nos artigos 88.º e 89.º do EOA.

 

Refere o artigo 83.º do EOA que os impedimentos diminuem a amplitude do exercício da advocacia e constituem incompatibilidades relativas do mandato forense e da consulta jurídica, tendo em vista determinada relação com o cliente, com os assuntos em causa e por inconciliável disponibilidade para a profissão.

 

Por sua vez, preceitua o artigo 88.º, n.º 1 do EOA que “o advogado é indispensável à administração da justiça e, como tal, deve ter um comportamento público e profissional adequado à dignidade e responsabilidades da função que exerce, cumprindo pontual e escrupulosamente os deveres consignados no Estatuo e todos aqueles que a lei, os usos, costumes e tradições profissionais lhe impõem”.

 

Ainda nos termos do n.º 2 do mesmo preceito legal, a honestidade, probidade, retidão, lealdade, cortesia e sinceridade são obrigações profissionais.

 

Sob a epígrafe “Independência”, preceitua o artigo 89.º do EOA que o Advogado, no exercício da profissão, mantém sempre e em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao cliente, aos Colegas, ao tribunal e a terceiros.

 

Portanto, o que há que apreciar é se a relação concreta que se estabelece entre um Advogado que representa o assistente e, simultaneamente, representa as testemunhas arroladas por esse mesmo assistente, no âmbito do mesmo processo, é suscetível de por em causa os já invocados princípios, nomeadamente, da independência e isenção técnica.

 

Ora, parece-nos, em abstrato[1], admissível à luz dos normativos legais invocados que um Advogado, mandatário do assistente possa, simultaneamente, ser constituído mandatário da testemunha, ou testemunhas, arroladas por aquele, no mesmo processo de inquérito.

 

Três factos distintos concorrem para este entendimento. O primeiro, e porque são testemunhas arroladas pelo assistente, os seus interesses não serão, em teoria, conflituantes com os interesses do assistente. O segundo, porque os factos trazidos ao processo pelas testemunhas seriam sempre do conhecimento do Advogado do assistente, o qual pode, nos termos da lei processual penal, assistir a estes depoimentos. O terceiro, porque olhando para o estatuído no artigo 132.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, conclui-se que o papel do Advogado no ato de inquirição das testemunhas é tão-só o de garante dos direitos da testemunha, uma vez que não pode intervir na inquirição.

 

Sabemos que, em abstrato, existe a possibilidade de a testemunha poder, no ato de inquirição, vir a ser constituída arguida. Mas tal não afasta o entendimento atrás perfilhado.

Caso a testemunha venha, efetivamente, a ser constituída arguida, o Advogado do assistente não poderá, evidentemente, continuar a representar a pessoa em causa, pois que, neste caso, existe evidente conflito de interesses uma vez que o assistente e o arguido são, para efeitos de aferição de conflito de interesses estatuído no artigo 99.º do EOA, “partes contrárias”.

 

É este, s.m.o., o nosso entendimento sobre a questão que nos foi colocada.

 

Lisboa, 25 de outubro de 2019.

 

A Assessora Jurídica do CRL
Sandra Barroso

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 25 de outubro de 2019.

 

O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins

 

[1] E desde que o processo, durante a fase de inquérito, não tenha sido sujeito a segredo de justiça. Pois que, neste caso, a intervenção do mandatário do assistente no ato de inquirição de testemunhas seria atentório da dignidade da profissão, na medida em que consubstanciaria uma instrumentalização do mandato forense com vista a alcançar um objetivo vedado pelo Código de Processo Penal.

Sandra Barroso

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