Pareceres do CRLisboa

Consulta 15 /2018

Consulta 15/2018

 


Questão

 

Através de comunicação escrita rececionada nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados em (…) (entrada com o número de registo …), o Exmo. Senhor Juiz Desembargador Relator da (…) Secção Cível do Tribunal da Relação de (…) veio solicitar ao Conselho Regional de Lisboa a emissão de parecer, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135.º, números 3 e 4 do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 417.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.  

 

O incidente de quebra do segredo profissional foi suscitado pela Ré, (…), no âmbito do processo pendente no Tribunal Judicial da Comarca de (…), sob o n.º (…), quanto à Exma. Senhora Dra. (…), Ilustre Advogada. 

 

A Ilustre Advogada foi arrolada como testemunha pela Ré por ter sido ela quem terá assessorado o Autor, (…), na compra e venda de terrenos na (…), negócio jurídico que, agora, constitui a causa de pedir do processo n.º (…).

 

Por ter tido conhecimento dos factos sobre os quais o seu depoimento é pretendido no exercício da sua profissão e por causa dela, a Ilustre Advogada recusou-se a prestar depoimento, o que fez ao abrigo da interpretação conjugada dos artigos 417.º, nº 3, alínea c), do Código de Processo Civil e 92.º, n.º 1, alínea a) e n.º 4, do Estatuto da Ordem dos Advogados, invocando, para tanto, o cumprimento do sigilo profissional a que está obrigada.

 

Entendimento do Conselho Regional de Lisboa

 

Nunca é de mais referir o carácter fundamental e verdadeiramente basilar que o dever de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia.

Mas não só.

 

 

Trata-se de dever de primordial importância para o reconhecimento da plenitude do Estado do Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.

 

É que o Estado de Direito Democrático não só exige um poder judicial independente, como também pressupõe e postula o exercício de uma Advocacia livre, independente e responsável.

 

Ora, condição essencial ao exercício da profissão é a absoluta confiança que deve presidir à relação Advogado/Cliente, fundada, naturalmente, no princípio do respeito pelo segredo profissional, a que a lei e a Constituição asseguram, com latitude, a adequada tutela.

 

Transcendendo o âmbito da relação Advogado/Cliente, o segredo profissional reveste-se ainda de uma dimensão de ordem pública, tal como resulta claro do regime legal constante do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor (aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro). E isto porque o sigilo tem outras dimensões e outros beneficiários para além do Cliente, devendo o Advogado ser, nas suas múltiplas relações sociais e profissionais, merecedor de confiança e isenção. Não apenas o Advogado individualmente considerado, como profissional liberal que é, mas como membro de uma classe profissional.

 

Por isso convirá realçar, de forma plenamente convicta, que se está na presença de um dever que constitui um princípio estruturante da Advocacia, assente não só na tutela dos interesses particulares que lhe possam estar subjacentes, mas adquirindo igualmente uma dimensão de ordem pública.

 

Mais do que um dever do próprio Profissional, “ o sigilo é um dever de toda a classe, é condição da plena dignidade do Advogado bem como da Advocacia”[1].

 

 

Contudo, tal não significa que o dever de segredo seja absoluto. Situações existem em que o levantamento do dever de guardar sigilo profissional se poderá, excecionalmente, justificar.

 

Assim, e para o efeito, estabelece a lei dois mecanismos que se diferenciam desde logo a propósito do sujeito que tem legitimidade para impulsionar o levantamento do segredo profissional:

  1. Dispensa do segredo profissional, a qual é solicitada pelo Advogado adstrito ao dever de segredo ao Presidente do Conselho Regional competente, sendo concedida, caso se verifiquem preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 92.º, n.º 4 do EOA;
  2. Incidente processual de quebra de sigilo profissional, previsto no artigo 135.º do Código de Processo Penal[2], tendo legitimidade para o desencadear qualquer das partes em juízo ou a autoridade judiciária.

 

Primeiro a lei processual penal e depois a lei processual civil consagram um verdadeiro entorse na regra cimeira da legitimidade exclusiva do detentor do segredo para requerer o seu levantamento.

 

Assim, dispõe o artigo 417.º n.º 1 do Código de Processo Civil que todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade.

 

Contudo, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 3 da referida normal legal, considera-se legítima a recusa se a obediência importar violação do sigilo profissional.

 

E, quanto ao regime desta recusa, o artigo 417.º, n.º 4 limita-se a remeter para a norma do processo penal e para a sua disciplina específica.

 

A decisão da quebra de sigilo é tomada, com audição prévia da Ordem dos Advogados, audição essa que recairá, inevitavelmente, sobre o preenchimento ou não preenchimento das condições de que depende a quebra do sigilo profissional, ou seja, sobre a existência de um interesse superior aos interesses que se visa proteger com o dever de segredo.

 

Vejamos então o caso concreto.

 

Antes de mais, haverá que enfatizar que, no caso vertente, não suscita qualquer dúvida a sujeição ao dever de segredo profissional por parte da Ilustre Colega.

 

Feito este pequeno parêntese, haverá que emitir a pronúncia solicitada, ou seja, verificar se subsistem, no caso concreto, valores superiores ao dever/direito de sigilo profissional. 

 

Para que se possa concluir pela existência de um interesse preponderante, haverá que verificar se, em concreto e nos termos em que o pedido de quebra se encontra fundado, o depoimento é absolutamente necessário para a descoberta da verdade material.

 

No que à absoluta necessidade do depoimento diz respeito, haverá, nos termos do Regulamento de Dispensa do Segredo Profissional – Regulamento n.º 94/2006, de 12 de junho, DR, II Série, ainda em vigor por força do disposto no artigo 3.º, n.º 7 da lei preambular do Estatuto -, que verificar se o depoimento do Advogado com quebra do sigilo se reveste, nomeadamente, de:

  1. Imprescindibilidade: o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser indispensável (ou seja, imprescindível, e não meramente útil) face ao objetivo de prova visado;
  2. Essencialidade: o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser absolutamente determinante;
  • Exclusividade: pressupondo este requisito a inexistência de qualquer outro meio de prova para além do meio de prova sujeito a sigilo.

 

 

Vejamos então o caso concreto.

 

O requerimento elaborado pelo Ilustre Advogado da Ré, Dr. (…), e que enquadra, factual e juridicamente, o objeto do presente parecer, invoca que o depoimento da Ilustre Colega é essencial, imprescindível e exclusivo, para o apuramento da verdade material, uma vez que terá sido ela quem acompanhou e representou o Autor no processo de aquisição da sociedade (…), proprietária do prédio designado (…), cuja redução do preço se vem pedir, através da ação judicial em causa, por alegado erro-vício.

 

Nos termos do mencionado requerimento, e designadamente do seu artigo 16º, a Exma. Sra. Dra. (…) será a única que poderá responder ao seguinte, cuja verdade se pretende apurar nos autos em referência, a saber:

  • Diligências prévias à compra e venda, incluindo as visitas realizadas pelo Autor aos terrenos do (…);
  • Características relevantes dos prédios em causa para a determinação do preço de aquisição da sociedade (…);
  • Reproduções geográficas dos terrenos e consequentes convicções criadas pelo Autor quanto a estes;
  • Momento em que o Autor se dedicou ao investimento nas propriedades em causa e verificou a existência de uma construção nova no local;
  • Características de uma nova construção;
  • Divergências relativas à área do prédio (…) e à descrição predial autónoma deste;
  • Implicações do conhecimento da verdadeira composição do prédio na decisão da compra pelo Autor”.

 

Grosso modo, a factualidade transcrita corresponderá aos seguintes factos que constituem a designada, no despacho saneador, como “base instrutória”, a saber: 1, 3, 5 a 12, 18 a 21 e 26 a 47.

 

O recurso a um meio de prova sujeito ao dever de sigilo deve ser sempre encarado como um meio excecionalíssimo, sob pena de se banalizarem os deveres fundamentais desta nossa profissão.

 

O meio de prova sujeito a sigilo terá sempre de ser um meio de prova exclusivo, único meio de prova de determinado facto ou acervo de factos. Não interessa, em matéria de sigilo, que o meio de prova sujeito a sigilo seja o melhor, o mais eficaz ou o meio de prova de obtenção mais simples. Terá de ser o único meio de prova da factualidade visada nos autos.

 

E, no caso concreto, nada nos permite concluir, com o rigor que a matéria exige, nesse sentido. 

 

De facto, cabe dizer que, da leitura da petição inicial, da contestação e da própria “base instrutória”, decorre que o negócio objeto dos autos teve a intervenção de mediadores imobiliários e diversos consultores (artigo 27 da base instrutória).

 

Decorre ainda, e encontram-se aliás juntos aos autos, que a Ré entregou ao Autor todos os documentos que permitiriam a este identificar a composição, descrição, área, limites e eventuais ónus existentes sobre o prédio denominado (…).

 

A eventual coincidência do teor desses mesmos documentos com o estado físico do prédio comprado, apenas poderá ser confirmado por uma eventual prova pericial, sendo certo que, em momento algum, é afirmado que a Dra. (…), Ilustre Advogada, terá acompanhado o seu cliente na alegada visita que este terá feito ao local.

 

Mesmo a invocada due diligence, alegadamente efetuada pela Dra. (…), não terá sido apenas por si levada a cabo, uma vez que pressupõe a análise de diversos documentos, desde logo, de carácter contabilístico, que certamente, também, lhe terão sido facultados por outrem, que, deste modo, tem conhecimento dos documentos enviados à Dra. (…) para análise e posterior aconselhamento do seu cliente.

 

Ora, daqui decorre que, muitos dos factos sobre os quais se pretende que verse o depoimento da Ilustre Advogada, são factos cujo conhecimento pode ser atestado e confirmado por terceiros.

 

 

Por outras palavras, os elementos colocados à nossa disposição não nos permitem de forma inelutável concluir que a Ilustre Advogada é a única que detém o conhecimento dos factos que a Ré quererá provar ou infirmar em Audiência de Discussão e Julgamento.

 

Antes de pelo contrário. Conforme já ficou dito, somos levados a concluir que, pelo menos em relação à grande maioria dos factos, a Ré poderá lançar mão de outros meios de prova.

 

Mas mais. É que, concatenando a fundamentação que subjaz ao incidente de quebra do segredo profissional suscitado pela Ré nos autos, mormente, a que se reporta à razão de ciência da Ilustre Advogada invocada pela Ré, e a factualidade a que o depoimento daquela é pretendido, concluímos que alguns dos factos não contendem nem com a due diligence, nem com as demais diligências pré-contratuais em que a Ilustre Advogada interveio, suscitando, assim, a dúvida quanto à absoluta necessidade da dispensa, designadamente, quanto ao preenchimento do requisito da exclusividade da dispensa.

 

Concluindo, diremos que, tal como se encontra recortado o pedido de audição da Ordem dos Advogados, nada nos permite concluir, com o rigor que a matéria exige, pela existência de um interesse preponderante ao sigilo que leve ao sacrifício deste dever.

 

Lisboa, 7 de outubro de 2018.

 

A Assessora Jurídica do CRL
Sandra Barroso

 

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados.

 

 

Nestes termos, entendo que não estão reunidas as condições de que depende a audição da Ilustre Colega, Dra. (…), com quebra do segredo profissional, devendo prevalecer os interesses que subjazem ao instituto jurídico-deontológico do dever de segredo profissional.  

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 7 de outubro de 2018.

 

O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins

 

[1] Bastonário Dr. Augusto Lopes Cardoso, in “Do segredo profissional na Advocacia”, Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, 1998, p. 17.

[2] Também aplicável ao processo civil por remissão do artigo 417.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.

 

Sandra Barroso

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