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CONSULTA 25/2018

Consulta 25/2018

 

Questão

 

Mediante comunicação rececionada nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados em (…) (entrada com o número de registo (…), a Exma. Senhora Juíza de Instrução do Tribunal (…), veio solicitar ao Conselho Regional de Lisboa a emissão de parecer, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135.º, números 3 e 4 do Código de Processo Penal (doravante CPP).

 

O incidente de quebra do segredo profissional foi suscitado no âmbito do processo de inquérito pendente na (…) Secção do Departamento de Investigação e Ação Penal de (…), sob o n.º (…), quanto ao Exmo. Senhor Dr. (…), Ilustre Advogado. 

 

Subjacente o incidente processual de quebra do segredo profissional ora suscitado, está a factualidade que passamos a enunciar, ainda que de forma sintética:

  1. No processo de inquérito n.º (…) investiga-se a prática de um crime de abuso de confiança agravado, previsto e punido pelo artigo 205º, n.º 1 e 5 do Código Penal;
  2. Chamado a depor, o denunciado, Senhor Advogado Dr. (…), invocou o sigilo profissional e a qualidade de Advogado para recusar prestar depoimento;
  3. Refere o Ministério Público no seu despacho que, no caso concreto, não só não existe um interesse público na manutenção do sigilo, como o único interessado na sua manutenção, o queixoso que conferiu a procuração ao denunciado, requereu o depoimento do mesmo;
  4. Entende ainda o Ministério Público que os esclarecimentos pretendidos do denunciado são essenciais ao prosseguimento da investigação dos factos subjacentes ao processo de inquérito em curso, à descoberta da verdade material e, por fim, à realização da justiça;
  5. Considerada ilegítima a escusa, foi suscitado o incidente de quebra do segredo profissional junto do Juízo de Instrução Criminal de (…);
  6. Recebido o incidente, veio a Exma. Senhora Juíza de Instrução solicitar a pronúncia do Conselho Regional de Lisboa, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135.º, n.ºs 3 e 4 do CPP.

 

 

Entendimento do Conselho Regional de Lisboa

 

Nunca é de mais referir o carácter fundamental e verdadeiramente basilar que o dever de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia.

Mas não só. Trata-se de dever de primordial importância para o reconhecimento da plenitude do Estado do Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.

 

É que o Estado de Direito Democrático não só exige um poder judicial independente, como também pressupõe e postula o exercício de uma Advocacia livre, independente e responsável.

 

Ora, condição essencial ao exercício da profissão é a absoluta confiança que deve presidir à relação Advogado/Cliente, fundada, naturalmente, no princípio do respeito pelo segredo profissional, a que a lei e a Constituição asseguram, com latitude, a adequada tutela.

 

Transcendendo o âmbito da relação Advogado/Cliente, o segredo profissional reveste-se ainda de uma dimensão de ordem pública, tal como resulta claro do regime legal constante do Estatuto da Ordem dos Advogados em vigor (aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro). E isto porque o sigilo tem outras dimensões e outros beneficiários para além do cliente, devendo o Advogado ser, nas suas múltiplas relações sociais e profissionais, merecedor de confiança e isenção. Não apenas o Advogado individualmente considerado, como profissional liberal que é, mas como membro de uma classe profissional.

 

Por isso convirá realçar, de forma plenamente convicta, que se está na presença de um dever que constitui um princípio estruturante da Advocacia, assente não só na tutela dos interesses particulares que lhe possam estar subjacentes, mas adquirindo igualmente uma dimensão de ordem pública.

 

 

Mais do que um dever do próprio Profissional, “ o sigilo é um dever de toda a classe, é condição da plena dignidade do Advogado bem como da Advocacia”[1].

 

Contudo, tal não significa que o dever de segredo seja absoluto.

 

Situações existem em que o levantamento do dever de guardar sigilo profissional se poderá, excecionalmente, justificar.

 

Assim, e para o efeito, estabelece a lei dois mecanismos que se diferenciam desde logo a propósito do sujeito que tem legitimidade para impulsionar o levantamento do segredo profissional:

  1. Dispensa do segredo profissional, a qual é solicitada pelo Advogado adstrito ao dever de segredo ao Presidente do Conselho Regional competente, sendo concedida, caso se verifiquem preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 92.º, n.º 4 do EOA;
  2. Incidente processual de quebra de sigilo profissional, previsto no artigo 135.º do Código de Processo Penal[2], tendo legitimidade para o desencadear qualquer das partes em juízo ou a autoridade judiciária.

 

A decisão da quebra de sigilo é tomada, com audição prévia da Ordem dos Advogados, audição essa que recairá, inevitavelmente, sobre o preenchimento ou não preenchimento das condições de que depende a quebra do sigilo profissional, ou seja, sobre a existência de um interesse superior aos interesses que se visa proteger com o dever de segredo.

 

Assim, para que se possa concluir pela existência de um interesse preponderante, haverá que verificar-se, em concreto e nos termos em que o pedido de quebra se encontra fundado:

  • se o depoimento é absolutamente necessário para a descoberta da verdade material;
  • se o crime apresenta uma gravidade tal que implicará a quebra do dever de sigilo profissional, dever este que, conforme tem sido referido em diversa doutrina e jurisprudência, quer dos diversos órgãos da Ordem dos Advogados, quer dos tribunais, se reveste de interesse público (o que, desde logo, afastará a possibilidade de quebra em crimes de menor danosidade social);
  • a necessidade da proteção dos bens jurídicos afetados (tendo em conta a importância destes).

 

Em particular, no que à absoluta necessidade do depoimento diz respeito, haverá, nos termos do Regulamento de Dispensa do Segredo Profissional – Regulamento n.º 94/2006, de 12 de junho, DR, II Série, ainda em vigor por força do disposto no artigo 3.º, n.º 7 da lei preambular do Estatuto -, que verificar se o depoimento do Advogado com quebra do sigilo se reveste de imprescindibilidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser indispensável (ou seja, imprescindível, e não meramente útil) face ao objetivo de prova visado; de essencialidade, o meio de prova sujeito a sigilo tem de ser absolutamente determinante; e de exclusividade, pressupondo este requisito a inexistência de qualquer outro meio de prova que não o depoimento do obrigado ao sigilo.

 

Vejamos então.

 

Antes de mais, permitimo-nos enfatizar que a legitimidade da escusa a que alude o normativo legal contido no artigo 135.º, n.º 2 do Código de Processo Penal consiste em aferir se o Advogado está ou não a invocar corretamente o dever de segredo profissional, o que implica que os factos sobre os quais se pretende que venha a depor deverão constituir matéria abrangida no âmbito do sigilo.

 

No caso vertente, não temos dúvidas de que o Senhor Advogado Dr. (…) está obrigado a sigilo quanto aos factos em investigação no processo de inquérito em curso, por deles ter tido conhecimento por causa da sua qualidade de Advogado.

 

E, assim sendo, a obrigação de guardar segredo deverá manter-se enquanto não cessar nos termos previstos na lei e dos dois mecanismos que esta prevê para o efeito e a que atrás aludimos.

 

O segredo profissional não é um direito, mas uma obrigação legal do Advogado.

 

A obrigação de segredo profissional não é estabelecida em benefício direto de cada um dos clientes, pois vincula o Advogado mesmo contra a vontade e o interesse do seu cliente.

 

A obrigação de segredo profissional é um dever de ordem pública, só cedendo nos casos excecionalmente previstos na lei e em particular no artigo 92.º, n.º 4 do EOA, mediante vontade expressa do Advogado e autorização do órgão competente.

O que equivale a dizer que o cliente nunca poderá desvincular o Advogado da obrigação de sigilo, ainda que lhe conceda autorização para depor sobre factos sigilosos.

 

Compreende-se a necessidade de autorização da Ordem dos Advogados. Sendo o segredo profissional um dever de ordem pública, caberá à Ordem e, no caso concreto, aos Presidentes dos Conselhos Regionais, enquanto pessoa coletiva de direito público, defender o Estado de Direito e zelar pela função social e cumprimento dos princípios deontológicos da profissão de Advogado.  

 

Prossigamos a nossa análise.

 

Sabemos que o direito criminal se destina a punir as ofensas consideradas intoleráveis aos valores ou interesses fundamentais à convivência humana.

 

Daí que a Constituição da República Portuguesa garanta, no seu artigo 32.º, ao sujeito processual que assuma a qualidade de arguido “todas as garantias de defesa”, ou seja, todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar os factos que lhe são imputados. 

 

E percebe-se que assim seja, atenta a gravidade da imputação/suspeita que sobre o arguido recai: a prática de um facto qualificado pela lei penal como crime, portanto, um facto grave que, segundo a teoria do direito criminal, põe em causa o respeito pelas mais elementares regras de convivência social.

 

As diversas alíneas do artigo 61.º, n.º 1 do Código de Processo Penal são afloramentos ou ilações do mencionado comando constitucional.

 

Diz-nos a alínea d) que o arguido tem o direito de não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar.

 

E esse direito do arguido sobrepõe-se a qualquer ponderação de interesses que o mecanismo processual do incidente de quebra do sigilo profissional exige e pressupõe, não sendo legalmente possível, através dele, impor a um arguido que preste declarações, com quebra do segredo profissional.

 

No caso vertente, decorre dos elementos colocados à nossa disposição que o Exmo. Senhor Advogado Dr. (…) assume, já, a qualidade de arguido no processo de inquérito em curso, pelo que, assim sendo, não se emite a pronúncia solicitada, por entendermos que a mesma, e salvo o devido respeito, se nos afigura inútil, do ponto de vista da sua utilidade prática.

  

Lisboa, 14 de maio de 2018.

 

A Assessora Jurídica do CRL
Sandra Barroso

 

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 14 de maio de 2018.

 

 O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins

 

[1] Bastonário Dr. Augusto Lopes Cardoso, in “Do segredo profissional na Advocacia”, Centro Editor Livreiro da Ordem dos Advogados, 1998, p. 17.

[2] Também aplicável ao processo civil por remissão do artigo 417º n.º 4 do Código de Processo Civil.

 

Sandra Barroso

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