Pareceres do CRLisboa

CONSULTA 26/2018

Consulta 26/2018

 

Questão

 

Através de comunicação escrita rececionada nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados em (…) (entrada com o número de registo …), a Exma. Senhora Advogada Dra. (…) veio solicitar que o Conselho Regional de Lisboa emita parecer sobre uma situação de eventual procuradoria ilícita.

 

O enquadramento feito pela Senhora Advogada Consulente é o seguinte:

 

Foi lançado um concurso público com publicidade internacional por parte de um organismo público (…), cujo objeto consiste na “Aquisição de serviços de consultoria jurídica e de apoio administrativo”.

 

Nos termos do disposto nas Especificações Técnicas do Caderno de Encargos patenteado a concurso, o adjudicatário deverá assegurar a disponibilização e alocação de 5 (cinco) recursos humanos para a Direção de Assuntos Jurídicos e Contencioso da entidade adjudicante, a (…).

 

Quanto aos serviços a prestar, estipula a Cláusula 5ª das Especificações Técnicas do Caderno de Encargos:

  1. Consultor externo jurista para assegurar a área de proteção de dados e propriedade intelectual na Direção de Assuntos Jurídicos e Contencioso:
  • Identificação de todos os sistemas de informação da entidade adjudicante e definição de medidas preventivas e de gestão de modo a garantir a respetiva conformidade legal;
  • Definição de medidas preventivas e de gestão destinadas a garantir a atualização e divulgação interna, nomeadamente, através da elaboração de proposta de clausulado contratual e procedimental, notas informativas e fluxos;
  • Elaboração de manuais, regulamentos e relatórios;
  • Acompanhamento e elaboração de pedidos de parecer jurídico respeitantes a tais áreas;
  • Identificação do meio legal mais adequado a garantir uma eficaz proteção da propriedade de cada um dos sistemas de informação;
  • Criação de um registo sistematizado e organizado de propriedade intelectual existente na entidade adjudicante.

 

  1. Consultor externo jurista/advogado para assegurar a área da contratação pública na Direção de Assuntos Jurídicos e Contencioso:
  • Elaboração do respetivo manual de procedimentos de contratação pública e demais documentação de apoio;
  • Mapeamento de procedimentos;
  • Elaboração e validação de peças de procedimentos pré-contratuais;
  • Elaboração de informações jurídicas de enquadramento no âmbito da contratação pública e matérias conexas;
  • Acompanhamento da instrução de processos a submeter a fiscalização do Tribunal de Contas;
  • Assessoria jurídica nas áreas supramencionadas.

 

  1. Consultor externo jurista/advogado para assegurar a área do Direito do Trabalho:
  • Todos os serviços inerentes à assessoria jurídica nesta área.

 

  1. Consultor externo jurista/advogado para assegurar as áreas de Direito Administrativo/Legística:
  • Todos os serviços inerentes à assessoria jurídica nesta matéria.

 

Ao referido concurso público apresentaram propostas não apenas Sociedades de Advogados, mas também duas empresas de outsourcing/recrutamento de pessoal, as quais não são constituídas exclusivamente por Advogados e têm objeto diverso da advocacia.

 

A Senhora Advogada Consulente foi agora notificada do relatório preliminar de análise e avaliação de propostas, de acordo com o qual o júri do concurso propõe a adjudicação dos serviços de consultoria jurídica a uma das mencionadas empresas outsourcing/recrutamento de pessoal.

 

Neste conspecto, vem a Senhora Advogada Consulente colocar as seguintes questões:

 

  1. Os serviços de consultoria jurídica acima descritos e que constituem o objeto do concurso público com publicidade internacional acima descrito consubstanciam atos próprios de Advogado?
  2. Em caso afirmativo, poderão as empresas de outsourcing/recrutamento de pessoal, não constituídas exclusivamente por Advogados, nem tendo por objeto a prática da advocacia, concorrer a um procedimento pré-contratual cujo objeto consiste na disponibilização pelo adjudicatário de 5 (cinco) colaboradores seus para o exercício de atos próprios de Advogados, em regime de outsourcing?

 

Entendimento do Conselho Regional de Lisboa

 

A Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto, define o sentido e o alcance dos atos próprios dos Advogados e dos Solicitadores e veio tipificar o crime de procuradoria ilícita.

 

E a tipificação de todos esses atos próprios teve como objetivo, entre outros, claro está, defender os particulares das cada vez mais sofisticadas e existentes formas de procuradoria ilícita, a qual acarreta graves consequências para os cidadãos e a comunidade em geral por via do recurso ao apoio jurídico junto de quem não se encontra habilitado a prestá-lo.

 

A Lei veio assim reservar apenas aos licenciados em direito com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados e aos Solicitadores inscritos na Câmara dos Solicitadores a prática dos atos próprios dos Advogados e dos Solicitadores – cf. art.º 1.º, n.º 1.

 

Assim, sem prejuízo do disposto nas leis do processo, são atos próprios dos Advogados e dos Solicitadores:

  • O exercício do mandato forense, que corresponde ao mandato judicial conferido para ser exercido em qualquer tribunal, incluindo os tribunais ou comissões arbitrais e os julgados de paz – cf. art. 1.º, n.º 5 e art. 2.º;
  • A consulta jurídica, qualificando-se esta como a atividade de aconselhamento jurídico que consiste na interpretação e aplicação de normas jurídicas mediante solicitação de terceiro – cf. art. 1.º, n.º 5 e art. 3.º;
  • A elaboração de contratos e a prática de atos próprios tendentes à constituição, alteração ou extinção de negócios jurídicos, designadamente os praticados junto de conservatórias e cartórios notariais – cf. art. 1.º, n.º 6, alínea a);
  • A negociação tendente à cobrança de créditos - art. 1.º, n.º 6, alínea b);
  • O exercício do mandato no âmbito de reclamação ou impugnação de atos administrativos ou tributários - art. 1.º, n.º 6, alínea c).

 

São ainda atos próprios, neste caso apenas dos Advogados, todos os que resultem do exercício do direito dos cidadãos a fazer-se acompanhar por Advogado perante qualquer autoridade, bem como nos casos em que o processo penal determinar que o arguido seja assistido por defensor – cf. art. 1.º, n.ºs 9 e 10.

 

Da Lei decorre ainda que os atos reservados por lei a estas duas profissões apenas podem ser praticados por Advogado (aqui se incluindo também os Advogados Estagiários) ou Solicitador quando os serviços sejam prestados de forma isolada ou integrados em escritórios ou gabinetes compostos exclusivamente por Advogados, Solicitadores, Advogados e Solicitadores, Sociedades de Advogados e Sociedades de Solicitadores.

 

Fora deste contexto, a lei proíbe expressamente o funcionamento de escritório ou gabinete, constituído sob qualquer forma jurídica, que preste a terceiros serviços que compreendam, ainda que isolada ou marginalmente, a prestação de atos próprios dos Advogados e dos Solicitadores – cf. art. 6.º, n.º 1.

 

 

Traçado o quadro legal, olhemos agora para os factos.

 

Tal como decorre da análise dos elementos colocados à nossa disposição, o concurso púbico aqui em causa tem por escopo, nomeadamente para o que releva para a presente pronúncia, a “aquisição de serviços de consultoria jurídica” para a Direção de Assuntos Jurídicos e Contencioso.

 

Como atrás referimos, os serviços (jurídicos) a prestar estão elencados Cláusula 5ª das Especificações Técnicas do Caderno de Encargos.

 

Olhando para o tipo de serviços pretendidos pela entidade adjudicante – serviços de consultoria jurídica -, tal é suficiente para concluirmos que os mesmos, globalmente considerados, se enquadram no conceito de “consulta jurídica”, tal como se encontra tipificado na Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto.

 

E, assim sendo, a questão que se coloca será, no fundo, saber se a apresentação de propostas por parte das duas empresas de outsourcing/recrutamento de pessoal, no âmbito do concurso público aberto pela (…), viola o disposto no artigo 6º da Lei dos Atos próprios do Advogado e Solicitador. 

 

Estipula o normativo legal em causa que “com excepção dos escritórios ou gabinetes compostos exclusivamente por advogados, por solicitadores ou por advogados e solicitadores, as sociedades de advogados, as sociedades de solicitadores e os gabinetes de consulta jurídica organizados pela Ordem dos Advogados e pela Câmara dos Solicitadores, é proibido o funcionamento de escritório ou gabinete, constituído sob qualquer forma jurídica, que preste a terceiros serviços que compreendam, ainda que isolada ou marginalmente, a prática de actos próprios dos advogados e solicitadores.”

 

A simples leitura do programa do procedimento e do Caderno de Encargos permite-nos concluir que a apresentação de propostas por parte de empresas de outsourcing/recrutamento de pessoal (ou outras sociedades comerciais), viola, de forma clara e inequívoca, o normativo legal aqui chamado à colação. 

 

 

Tal como se encontra configurado o Cadernos de Encargos, não temos dúvidas de que a coordenação e a responsabilidade do serviço a prestar é do adjudicatário.

 

Resulta, também, inequívoco que será o adjudicatário quem, juridicamente, prestará os serviços a contratar, os quais, nos termos da lei, só podem ser prestados por Advogados.

 

Inclusive, é o adjudicatário que é pago pelos serviços jurídicos a prestar, os quais caem diretamente no conceito de ato próprio da profissão de Advogado e Solicitador (como atrás já vimos).

 

Ou seja, a apresentação de propostas por esse tipo de entidades é ilegal precisamente porque se traduz na apresentação de propostas relativamente a serviços, no caso jurídicos, cuja prática lhes está vedada por Lei.

 

Não podem essas entidades propor-se praticar atos próprios de Advogado a terceiros, ainda que por intermédio de Advogados.

 

É que a lei exige que esses atos sejam prestados a terceiros, por profissionais da advocacia, em prática isolada ou integrados em escritório composto, exclusivamente, e repita-se exclusivamente, por Advogados.

 

De facto, a Lei apenas permite a prática de atos próprios da advocacia a:

  • Escritórios ou gabinetes compostos, exclusivamente, por Advogados ou Solicitadores.
  • Sociedades de Advogados ou de Solicitadores.
  • Gabinetes de Consulta Jurídica organizados pela Ordem dos Advogados e pela Câmara dos Solicitadores.

 

Precisamente, porque o Advogado é único profissional que reúne todas as condições necessárias para a defesa dos direitos e dos legítimos interesses dos cidadãos, razão pela qual a advocacia merece, inclusive, tutela constitucional (artigo 208º da CRP).

 

Em suma, ao apenas permitir-se a prática de atos típicos da profissão a esta categoria de entidades, mais não se pretende do que evitar que os atos próprios de Advogado sejam praticados por quem o não seja ou, sendo-o, esteja inserido numa estrutura que não uma Sociedade de Advogados.

 

Assim, face ao exposto, é nosso entendimento que a apresentação de propostas por parte das empresas de recrutamento de pessoal (ou outras sociedades comerciais), ainda que recorrendo a Advogados para a prática dos serviços jurídicos a adjudicar, viola, de forma clara, o transcrito n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto, e que, a ser efetivado, poderá constituir crime de procuradoria ilícita, previsto e punido pelo artigo 7.º desse mesmo diploma legal, para além de o Advogado que colaborar em tal atividade ficar sujeito a eventual responsabilidade disciplinar.

 

É este, s.m.o., o nosso entendimento sobre a questão que nos foi colocada.

 

Lisboa, 14 de maio de 2018.

 

A Assessora Jurídica do CRL
Sandra Barroso

 

Concordo e homologo o Parecer anterior, nos precisos termos e limites aí fundamentados.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 14 de maio de 2018.

 

O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins

Sandra Barroso

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