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CONSULTA 31/2018

Consulta 31/2018

 

Questão

 

Através de comunicação rececionada nos Serviços do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados em (…) (entrada com o número de registo …), a Exma. Senhora Procuradora-Adjunta da (…) Secção do Departamento de Investigação e Ação Penal de (…) veio solicitar a pronúncia deste Conselho quanto à (i) legitimidade da escusa para depor apresentada pelo Exmo. Senhor Dr. (…), Ilustre Advogado, no âmbito do processo n.º (…), nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135.º, n.ºs 1, 2 e 4 do Código de Processo Penal (doravante apenas CPP).

 

Entendimento do Conselho Regional de Lisboa

 

A existência da obrigação de segredo profissional impede o Advogado de revelar factos sigilosos e, ou, os documentos onde esses mesmos factos possam estar contidos, exceto se devida e previamente autorizado pelo Presidente do Conselho Regional respetivo, verificados que estejam os requisitos exigidos pelo artigo 92.º, n.º 4 do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado em anexo à Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro (doravante apenas EOA), e pelo artigo 4.º do Regulamento de Dispensa do Segredo Profissional - Regulamento n.º 94/2006, de 12 de junho, DR, II Série, ainda em vigor por força do disposto no artigo 3.º, n.º 7 da lei preambular do EOA.

 

Ainda que dispensado nos termos referidos, o Advogado pode manter o segredo profissional. O Advogado é, pois, nos termos da lei, o único a quem é reconhecida legitimidade ativa para solicitar, se assim o entender, dispensa do dever segredo.

 

A lei processual penal[1], porém, consagra um regime de exceção, previsto no artigo 135.º.

 

 

De harmonia com este regime, que será o relevante no caso ora em apreço, a regra continua a ser a de o Advogado poder (e, à luz do Estatuto, “dever”) escusar-se a depor sobre factos abrangidos pelo dever de segredo profissional. Deduzida a escusa perante o Juiz ou perante a autoridade judiciária que presidir ao ato, poderão suscitar-se dúvidas, que deverão ser fundadas, acerca da legitimidade da invocação do sigilo profissional e da escusa em depor que o mesmo fundamenta – cfr. artigo 135.º, n.º 2 do CPP. Quando tal acontecer, como no caso vertente, o Juiz decide sobre a legitimidade da escusa depois de ouvida a Ordem dos Advogados – cfr. artigo 135.º, n.º 4 do CPP.

 

Nesta sede, o que terá de se aferir é se o Advogado está ou não a invocar corretamente o dever de segredo profissional, o que implica que os factos sobre os quais se pretende que venha a depor deverão constituir matéria abrangida no âmbito do sigilo.

 

Cumprirá, pois, indagar se os factos aos quais o depoimento do Senhor Dr. (…), Ilustre Advogado, é pretendido se deverão considerar abrangidos pela esfera de proteção do sigilo profissional.

 

Vejamos então.

 

Nunca é de mais referir o carácter fundamental, para não dizer, verdadeiramente basilar, que a obrigação de segredo profissional reveste para o exercício da Advocacia. Mais do que uma condição para o seu desempenho é, sobretudo, um traço essencial da sua própria existência.

 

Sem o segredo profissional erigido em regra de ouro não existe, nem pode existir, Advocacia livre e independente, ficando abalado o direito de defesa dos cidadãos que recorrem ao Advogado para proteção dos seus direitos, liberdades e garantias.

 

No fim da linha, é o próprio Estado de Direito Democrático que é atingido no seu âmago, porquanto o sigilo profissional entre o Advogado e o seu Constituinte é estruturante e conditio sine qua non do direito de defesa dos cidadãos. Assim o tem entendido a lei e a própria jurisprudência da Ordem dos Advogados.

 

Com efeito, Advogado é acometido, por força de lei ordinária e pela Constituição da República Portuguesa de uma verdadeira «missão de interesse público», competindo-lhe, designadamente:

- defender o Estado de direito e os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos;

- pugnar pela boa aplicação das leis;

- colaborar na administração da justiça e pugnar pelo seu rápido funcionamento;

- assegurar o acesso ao direito nos termos da Constituição, como defensores e patronos;

- opinar sobre os projetos de diplomas legislativos que interessem ao exercício da advocacia e o patrocínio judiciário em geral;

- propor alterações legislativas relevantes para o sistema de justiça.

(v. art.ºs 3.º nas suas diversas alíneas e o 85.º, n.º 1 do EOA).

 

São, assim, os Advogados garantes de importantes funções do Estado com consagração constitucional como é o “acesso ao direito e aos tribunais” e o “patrocínio judiciário” previstos no art.º 20.º, n.ºs 1 e 2 da Lei Fundamental e que constituem “elemento essencial da administração da justiça” como resulta do art.º 208.º da mesma Lei, sendo-lhes com esse propósito conferidas garantias e imunidades no exercício do mandato forense (art.º 150.º, n.º 2 do Código de Processo Civil), num claro e inequívoco reconhecimento da relevante função social de interesse público da profissão.

 

Atente-se, aliás, na redação do art.º 13.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/1013, de 26 de agosto –, com a epígrafe “Imunidade do mandato conferido a advogados”:

“Artigo 13.º

Imunidade do mandato conferido a advogados

1 — A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício dos atos próprios de forma isenta, independente e responsável, regulando-os como elemento indispensável à administração da justiça.

2 — Para garantir o exercício livre e independente de mandato que lhes seja confiado, a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz, designadamente:

 

 

  1. a) O direito à proteção do segredo profissional;
  2. b) O direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de atos conformes ao estatuto da profissão;
  3. c) O direito à especial proteção das comunicações com o cliente e à preservação do sigilo da documentação relativa ao exercício da defesa;
  4. d) O direito a regimes específicos de imposição de selos, arrolamentos e buscas em escritórios de advogados, bem como de apreensão de documentos”.

 

Se ao Advogado não fosse reconhecido o direito de guardar para si, e só para si, o conhecimento de tudo quanto o seu Constituinte, diretamente ou por via de terceiros, lhe confiou, ou não fosse obrigado a reservar a informação que obteve no exercício do mandato, então não haveria Advocacia livre e independente, transformando-se os Advogados em testemunhas da acusação e desse modo se desvirtuando a sua função na administração da Justiça e no acesso ao direito, como lídimos defensores dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos.

 

Ressalta de tudo o exposto, que os Advogados, nos termos da lei ordinária e da Constituição da República Portuguesa, são por excelência o reduto de defesa dos cidadãos, não lhes competindo, nem podendo em virtude das suas obrigações profissionais, colaborar com o Ministério Público em fazer vingar a tese da acusação.

 

Com efeito, o papel desempenhado pelos Advogados na colaboração com a boa administração da justiça é, proporcionar ao cidadão o exercício do direito ao contraditório em que se estriba o seu direito de defesa em processo penal, o que inclui o seu direito ao silêncio, o qual é vilipendiado se ao Advogado defensor pudesse ser exigido que revelasse o que ao arguido é permitido que silencie.

 

Uma cultura judiciária madura, com mais de quarenta anos de vivência em democracia, deve, salvo o devido respeito, resistir à tentação de ver no conhecimento privilegiado que os Advogados têm da factualidade que lhe foi dada a conhecer pelo arguido em processo penal, uma forma de contornar o direito ao silêncio constitucionalmente reconhecido aos arguidos. Não seja a comunidade judiciária a defender e reconhecer o papel fundamental que cada interveniente do judiciário tem na administração da justiça, ninguém estará em condições para o fazer. Em última análise, a vulgarização de tais condutas processuais põe em causa, pela sua repetição e adoção reiterada, o Estado de Direito Democrático.

 

Existem, em suma, segundo entendimento há muito perfilhado por este Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados[2] três grandes ordens de razões que estão na origem da consagração estatutária do dever (que é ao mesmo tempo direito) de o Advogado guardar segredo profissional sobre factos e documentos dos quais tome conhecimento no exercício da profissão:

  1. A indispensabilidade de tutelar e garantir a relação de confiança entre o Advogado e o cliente;
  2. O interesse público da função do Advogado enquanto agente ativo da administração da justiça;
  3. A garantia do papel do Advogado na composição extrajudicial de conflitos, contribuindo para a paz social.

 

Sob a epígrafe “Segredo Profissional”, dispõe o artigo 92º do EOA, o seguinte:

“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.

4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o Bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.

5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.

7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.

8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever”.

 

Vejamos então.

 

Corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de (…), sob o n.º (…), um procedimento especial de despejo em que é Requerente (…) e Requerido (…), inicialmente representado em juízo pelo Senhor Dr. (…).

 

 

No âmbito do mencionado processo, o Requerido prestou caução correspondente a seis meses de renda, no valor de € 7.800,00 (sete mil e oitocentos euros), tendo para o efeito apresentado uma garantia bancária emitida pelo “Banco (…)”.

 

Interpelado o “Banco (…)” para que confirmasse a veracidade da mencionada garantia, constatou o mesmo que o documento que materializa a garantia bancária “(…) não foi emitido pelo (…)”.

 

Em sequência, o “Banco (…)” apresentou participação criminal contra incertos pela prática do crime de falsificação de documento.

 

No âmbito do inquérito criminal onde se investigam os factos sumariamente descritos, o Senhor Dr. (…), foi chamado a depor na qualidade de testemunha.

 

Transcrevemos as declarações prestadas aquando a sua inquirição:

“(...) Refere ser advogado e conhece (…), do exercício das suas funções.

Sem prejuízo do sigilo profissional a que o ora depoente está sujeito, refere que patrocinou o denunciado no âmbito do proc. N.º (…), em que juntou a garantia bancária, cuja cópia consta de fls. 40 verso.

Diz que foi (…) quem lhe entregou essa garantia bancária para juntar ao processo.

Na altura em que juntou a garantia bancária ao referido processo, acreditou que esse documento era verdadeiro e que o denunciado sempre lhe disse que essa garantia bancária é verdadeira.

Neste momento, o depoente invoca o sigilo profissional e não responde a mais questões.”

 

Urge agora verificar, face aos elementos colocados à nossa disposição, se os factos sobre os quais incidirá o depoimento do Senhor Advogado Dr. (…) estão ou não abrangidos pelo dever de sigilo.

 

Compreendemos que, por vezes, seja difícil estabelecer a fronteira entre aquilo que chega ao conhecimento do Advogado num contexto de confidencialidade subsumível ao normativo legal contido no artigo 92º, n.º 1 do Estatuto e o que chega ao seu conhecimento fora desse contexto.

 

Contudo, a separação entre aquilo que está, ou não, sujeito a sigilo cabe num primeiro momento ao Advogado. É ao Advogado que cabe verificar se o conhecimento de determinado facto ou acervo de factos lhe chegou no exercício da profissão e por causa desse mesmo exercício.

 

Partindo desta premissa, e olhando para as declarações prestadas pelo Senhor Advogado (…) e para aqueles que são os factos em investigação no processo de inquérito em curso, concluímos, com meridiana clareza, que o depoimento pretendido terá por escopo factos conhecidos, direta ou indiretamente, por força e no âmbito do patrocínio do Requerido procedimento especial de despejo.

 

Assim sendo, forçados somos a concluir que o depoimento em causa incidirá sobre factos abrangidos pelo dever de sigilo e, portanto, sigilosos, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 92º, n.º 1 do EOA.

 

De facto, não podemos olvidar que, conforme dispõe o artigo 92º, n.º 1, alínea a) do EOA, o Advogado está obrigado a guardar sigilo profissional quanto aos factos revelados pelo cliente.

 

Sendo que a expressão “revelados pelo cliente” deve ser entendida em sentido lato, abrangendo, assim, todos os factos que envolvem a própria relação com o cliente.

 

Neste conspecto, recaindo sobre o Senhor Advogado Dr. (…), Il. Advogado, a obrigação de guardar sigilo, esta deverá ser mantida enquanto, pelos meios legalmente previstos, não cessar.

 

E, para o efeito, a lei estabelece apenas dois mecanismos que se diferenciam, desde logo, a propósito do sujeito que tem legitimidade para impulsionar o levantamento do segredo profissional:

  • Dispensa de segredo profissional, a qual é solicitada pelo Advogado detentor dessa obrigação ao Presidente do Conselho Regional competente, sendo concedida caso se verifiquem preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 92º, n.º 4 do EOA;
  • Incidente processual de quebra de sigilo profissional.

Tudo ponderado, salvo melhor opinião, é nosso entendimento que a escusa para depor apresentada pelo Senhor Dr. (…), Ilustre Advogado, é legítima, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 135.º n.ºs 1, 2 e 4 do Código de Processo Penal.

 

Notifique-se.

 

Lisboa, 30 de julho de 2018.

 

 O Presidente do Conselho Regional de Lisboa
António Jaime Martins

 

[1] Também aplicável ao processo civil – vide Artigos 417.º n.ºs 3 al. c) e 4 e 497.º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil.

[2] Parecer do Conselho Regional de Lisboa n.º 2/2001, aprovado em sessão plenária no dia 13.03.2003, no qual foi relator o Dr José Ferreira de Almeida.  

António Jaime Martins

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