Pareceres do CRLisboa

CONSULTA 39/2018

Consulta 39/2018

                                              

 

Enquadramento

 

Por requerimento que deu entrada nos serviços deste Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados no passado dia (…) (entrada com o número de registo …), vieram os Senhores Advogados Dr.  (…) e Dra. (…) solicitar a emissão de parecer sobre a existência (ou não) de incompatibilidade entre o exercício de Advocacia e a assunção da qualidade de sócio e gerente de sociedade comercial por quotas que tenha como objeto “a Construção Civil, Compra e Venda de Bens Imóveis para Revenda e Arrendamento de Bens Próprios”. Mais é dito expressamente pelos Senhores Advogados Consulentes que “não fica “abrangido no objeto da sociedade qualquer tipo de prospeção de imóveis em mediação imobiliária”.

 

OPINIÃO

 

Dispõe a alínea f) do n.º 1 do artigo 54.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante EOA), que cabe a cada um dos Conselhos Regionais da Ordem dos Advogados, no âmbito da sua competência territorial, “pronunciar-se sobre as questões de carácter profissional”.

 

Tem sido entendido pela jurisprudência da Ordem dos Advogados que estas “questões de carácter profissional” serão aquelas de natureza intrinsecamente estatutárias, ou seja, que decorrem dos princípios, regras, usos e praxes que comandam ou orientam o exercício da Advocacia, nomeadamente os que relevam das normas do EOA e do universo de normas emergentes do poder regulamentar próprio reconhecido por lei aos órgãos da Ordem.

 

É de toda a conveniência sublinhar que a competência material do Conselho Regional fixada no artigo 54.º, n.º 1, alínea f) do EOA se cinge, estritamente, à pronúncia abstrata sobre as questões de ética ou deontologia profissional.

 

Assim, concatenando o normativo legal em causa com o princípio da legalidade a que estamos adstritos no exercício daquelas que são as atribuições legais deste Conselho, a pronúncia a emitir apenas poderá ser feita de forma genérica e abstrata, alertando os Senhores Advogados Consulentes para as normas estatutárias que, em abstrato, poderão colidir com a assunção da qualidade de sócio e gerente de uma sociedade comercial com o objeto social pretendido.

 

Feita esta advertência, haverá, de seguida, que traçar as linhas gerais pelas quais os Senhores Advogados Consulentes deverão nortear-se no projeto em que pretendem envolver-se.

 

Olhando para as questões que nos foram colocadas e para a forma abstrata e genérica como o foram, haverá, prima facie, que chamar à colação as normas estatutárias que contendem com a matéria das incompatibilidades para o exercício da Advocacia. Trata-se de apurar se existe uma incompatibilidade, geral e abstrata, em cumular a qualidade de sócio e gerente nos termos pretendidos com o exercício da Advocacia.

 

A norma basilar em matéria de incompatibilidades para o exercício da advocacia é o artigo 81.º do EOA, que, sob a epígrafe “Princípios gerais”, prescreve o seguinte:

 “1. O advogado exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável.

  1. O exercício da advocacia é inconciliável com qualquer cargo, função ou atividade que possa afetar a isenção, a independência e a dignidade da profissão.”

 

Portanto, diz-nos o normativo legal em causa que existirá incompatibilidade sempre que a atividade, cargo ou função pretendida exercer afete, ou possa afetar, a isenção, a independência e a dignidade da profissão ou coarte a plena autonomia técnica, a isenção, a independência e a responsabilidade que ao Advogado são exigidas quando exerce a sua profissão de interesse público, com assento constitucional.

 

Esta norma pretende assim garantir a inexistência de colisão de interesses e deveres entre a Advocacia e o exercício de qualquer outra atividade que com ela possa conflituar.

 

Por seu turno, o artigo 82.º, n.º 1 do EOA especifica, de uma forma não taxativa, situações concretas de incompatibilidade que o legislador qualificou como objetivamente incompatíveis com o exercício da Advocacia.

 

Aqui chegados, haverá agora que analisar o caso concreto à luz dos normativos legais, cujo sentido e alcance, ainda que de forma perfuntória, acabamos de traçar.

 

No caso concreto, desde logo se assinala que os Senhores Advogados Consulentes referem expressamente que não irão incluir no objeto social da sociedade o exercício da mediação imobiliária, atividade que é incompatível com o exercício da advocacia, como expressamente consigna o artigo 82.º, n.º 1, al. n) do EOA.

 

Estando excluída do seu objeto social a atividade de mediação imobiliária, facilmente se extraia que a assunção da qualidade de sócio e gerente de uma sociedade comercial com o objeto social pretendido pelos Senhores Advogados Consulentes não consta das funções ou atividades enumeradas nas diversas alíneas artigo 82.º, n.º 1 do EOA, nem a elas se subsume, direta ou indiretamente.

 

E, assim sendo, haverá que verificar, à luz do artigo 81.º do EOA, que enuncia o critério (geral) em função do qual deve ser aferido se determinada atividade gera ou não impedimento para o exercício da Advocacia, se o facto de os Senhores Advogados Consulentes pretenderem assumir as funções em causa os colocará, em abstrato, numa situação de incompatibilidade para o exercício da Advocacia.

 

Ora, olhando para as atividades que irão constituir o objeto social da sociedade comercial e respetivo enquadramento legal, não vislumbramos que das atividades em causa resulte perturbação no exercício da atividade de Advogado do ponto de vista da isenção, da independência, dignidade e decoro exigíveis.

 

Em suma, diremos que não existe, à luz dos normativos legais contidos nos artigos 81.º, n.ºs 1 e 2 e 82.º, n.º 1, ambos do EOA, uma incompatibilidade, geral e abstrata, em cumular a qualidade de Advogado com a de sócio e gerente de uma sociedade comercial por quotas que tenha como objeto social “a Construção Civil, Compra e Venda de Bens Imóveis para Revenda e Arrendamento de Bens Próprios”.

 

Mas, muito embora se tenha concluído pela inexistência de qualquer incompatibilidade (geral e abstrata) à luz dos normativos legais que atrás analisámos, haverá que enfatizar que, ainda assim, os Senhores Advogados Consulentes continuam vinculados ao rigoroso cumprimento de todos (sem exceção) os deveres plasmados no EOA.

 

E é, precisamente, no cumprimento dos demais deveres estatutários que deve, a nosso ver, ser colocada a tónica desta nossa pronúncia. Pois que, será no incumprimento destes que aqueles que são os princípios basilares e norteadores da profissão poderão facilmente perigar.

 

Neste contexto, e olhando estritamente para a forma como o pedido de parecer se encontra recortado, iremos aqui destacar, sem qualquer preocupação de exaustividade, as matérias que, a nosso ver e com maior enfoco, se colocam no caso submetido à nossa pronúncia.

 

Começaremos por enfatizar que os Senhores Advogados Consulentes não poderão servir-se da atividade que pretendem desenvolver para divulgar, direta ou indiretamente, a sua atividade profissional enquanto Advogados, sob pena de violação dos deveres a que estão vinculados em matéria de publicidade por força do disposto no artigo 94.º do EOA.

 

O princípio geral é o de que “Os advogados e as sociedades de advogados podem divulgar a sua atividade profissional de forma objetiva, verdadeira e digna, no rigoroso respeito dos deveres deontológicos, do segredo profissional e das normas legais sobre publicidade e concorrência” – cf. o número 1 do mencionado preceito legal que fixa uma verdadeira cláusula geral.

 

Do exposto, podemos afirmar que, atualmente (e utilizamos este advérbio porque, consabidamente, só com a publicação do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 15/2005, de 26 de janeiro, o nosso Estatuto se colocou em linha com a tendência liberal mais recente da advocacia continental), a divulgação da atividade profissional pode ser feita por qualquer meio ou conteúdo, desde que seja verdadeira e digna, respeite os princípios deontológicos e as normas gerais sobre publicidade e concorrência.

 

O número 2 da citada disposição legal procede à concretização daquela cláusula geral, enumerando, a título meramente exemplificativo, o que deve entender-se por “informação objetiva”.

 

Por sua vez, o número 3 enumera exemplificativamente situações que correspondem a “atos lícitos de publicidade”.

 

Por sua vez, no seu número 4, o preceito legal em análise estipula, também de forma não taxativa, o que são “atos ilícitos de publicidade”, cabendo aqui uma referência particular à restrição de atos de publicidade com conteúdos de autoengrandecimento e de comparação.

 

A excelência dos atos do Advogado não é avaliável por critérios objetivos ou quantitativos e pode ser timbre de qualquer Advogado independentemente da forma como exerce a sua profissão, seja em sociedade, em prática individual ou no âmbito de uma empresa.

 

Por isso é que a excelência não é comparável com qualquer menção a conteúdos de autoengrandecimento, constituindo estes, sempre, informação ou publicidade não objetiva e não-verdadeira.

 

Atento o regime legal em vigor e atrás elencado (ainda que de forma sintética), forçoso é concluir que os Advogados (mas também as Sociedades de Advogados – vide o número 5 da citada norma legal), não estão estatutariamente impedidos de divulgar a sua atividade profissional. Deverão, contudo, fazê-lo de modo limitado e, naturalmente, que em nada coincida com uma publicidade comercial e/ou propagandística.

 

A informação e a publicidade do Advogado (e das Sociedades de Advogados) tem de ser, obrigatoriamente, objetiva, verdadeira e digna, respeitadora dos deveres deontológicos, do dever de sigilo profissional e das regras gerais da publicidade e da concorrência.

 

Assim, os deveres estatutários do Advogado em matéria de publicidade impedem os Senhores Advogados Consulentes de divulgar a sua atividade profissional, usando para o efeito a sociedade comercial de que serão sócios e gerentes. 

 

E esta conclusão remete-nos para um outro dever estatutário de primordial importância para o exercício de uma profissão de verdadeiro interesse público, precisamente o plasmado no artigo 90.º, n.º 2, alínea h) do EOA.

 

Diz-nos o normativo legal em causa que é dever do Advogado “Não solicitar clientes, por si ou por interposta pessoa”.

 

 

Como refere Fernando Sousa Magalhães “A proibição de angariação de clientela a que alude a alínea h) do n.º 2 do artigo 90.º está intimamente associada ao princípio da escolha livre do advogado pelo mandante ou interessado, por se entender que tal forma de escolha é a única que garante a necessária relação de confiança entre o advogado e o seu cliente como impõe radicialmente o artigo 97.º, n.º 1. Assim permanece intocado o princípio da escolha livre, agora consignado nos artigos 67.º nº 2 e 98.º n.º 1 do E.O.A. [1].

 

Apenas se mostra lícita a captação de clientela decorrente da projeção do nome, saber, honestidade, conseguidos através do exercício da profissão no estrito cumprimento dos deveres impostos pelo EOA.

 

O uso de uma sociedade comercial com o objeto social pretendido como forma de o Advogado angariar, direta ou indiretamente, clientes para si enquanto Advogado está vedado pelo Estatuto, para o que também nos permitimos alertar os Senhores Advogados Consulentes.

 

Por fim, e não de somenos importância, uma pequena nota no que respeita àquela que será a sede social da sociedade comercial a constituir.

 

Diz-nos o artigo 83.º, n.º 1 do Código Civil que a pessoa que exerce uma profissão tem, quanto às relações a que esta se refere, domicílio profissional no lugar onde a profissão é exercida. No caso do Advogado, o lugar onde a profissão é exercida será grosso modo o escritório.

 

Ora, o Estatuto é omisso quanto às condições que deverão envolver a instalação de escritório de um Advogado, nada se regulando, diretamente, quanto aos espaços onde este pode e não pode ser instalado.

 

Há, contudo, que ter em conta o estatuído na alínea h) do artigo 91.º do EOA, segundo a qual constitui dever do Advogado para com a Ordem dos Advogados manter um domicílio profissional dotado de uma estrutura que assegure o cumprimento dos seus deveres deontológicos, nos termos de regulamento a aprovar pelo Conselho Geral.

 

Não obstante a inexistência deste regulamento, o Advogado está sempre ligado, em qualquer local onde exerça a profissão, ao acervo de regras deontológicas – direitos e deveres – que enformam a profissão e o seu exercício e que decorrem, tanto do Estatuto da Ordem dos Advogados, como dos usos e praxes profissionais.

 

Neste conspecto, e considerando que a sociedade comercial a constituir terá a sua sede social, tanto quanto se alcança, no mesmo edifício onde atualmente os Senhores Advogados Consulentes têm os seus escritórios, deverá haver uma total separação física e funcional entre as duas atividades.

 

E esta questão da separação física e funcional entre ambas as atividades remete-nos, também e desde logo, para o primacial dever de guardar segredo profissional que sobre o Advogado recai no exercício da sua atividade profissional, por força do disposto no artigo 92.º do EOA, dever este que se estende a todas as pessoas que com ele colaboram no exercício da sua atividade profissional – cfr. n.º 7 da norma legal em causa. E, neste ponto, não podemos olvidar que a simples presença do cliente ou potencial cliente no escritório, só por si, já impõe (ou pode impor) ao Advogado total reserva.

 

Em suma:

 

  1. Não existe, à luz dos normativos legais contidos nos artigos 81.º, n.ºs 1 e 2 e 82.º, n.º 1, ambos do EOA, uma incompatibilidade, geral e abstrata, em cumular a qualidade de Advogado com a de sócio e gerente de uma sociedade comercial por quotas que tenha como objeto social “a Construção Civil, Compra e Venda de Bens Imóveis para Revenda e Arrendamento de Bens Próprios”, estando dele excluído o exercício da atividade de mediação imobiliária.

 

  1. Não obstante, os Senhores Advogados Consulentes continuam vinculados ao rigoroso cumprimento de todos (sem exceção) os deveres plasmados no EOA.

 

  1. E é, precisamente, no cumprimento dos demais deveres estatutários que deve, a nosso ver, ser colocada a tónica desta nossa pronúncia, pois que será no incumprimento destes que aqueles que são os princípios basilares e norteadores da profissão poderão facilmente perigar.

 

  1. De entre os deveres estatutários, destacamos as regras atinentes à publicidade do Advogado (cfr. artigo 94.º) e à proibição de angariação ilícita de clientela (cfr. artigo 90.º, n.º 2, alínea h).

 

  1. Nos termos do disposto no artigo 91.º, alínea h) do EOA, constitui dever do Advogado para com a Ordem dos Advogados manter um domicílio profissional dotado de uma estrutura que assegure o cumprimento dos seus deveres deontológicos.

 

  1. Neste conspecto, e considerando que a sociedade comercial a constituir terá a sua sede social, tanto quanto se alcança, no mesmo edifício onde atualmente os Senhores Advogados Consulentes têm os seus escritórios, deverá haver uma total separação física e funcional entre as duas atividades.

 

  1. A questão da separação física e funcional entre ambas as atividades remete-nos, também e desde logo, para o primordial dever de guardar segredo profissional que sobre o Advogado recai no exercício da sua atividade profissional, por força do disposto no artigo 92.º do EOA, dever este que se estende a todas as pessoas que com ele colaboram no exercício da sua atividade profissional – cfr. n.º 7 da norma legal em causa.

 

  1. É este, s.m.o, o nosso entendimento sobre a questão que nos foi colocada, no estrito cumprimento daquela que, por força da Lei, é a competência deste Conselho em matéria de parecerística.

 

Notifique-se pelo meio mais expedito.  

 

Lisboa, 16 de abril de 2019.

 

O Vice-Presidente do Conselho Regional de Lisboa

(por delegação de poderes de 23 de fevereiro de 2017)
João Massano

 

 

 

[1] In “Estatuto da Ordem dos Advogados, anotado e comentado”, 11ª Edição, Almedina, Coimbra, janeiro de 2017, pág. 132/133.

 

João Massano

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